terça-feira, 8 de maio de 2012

Nós e a poesia da vida.




Do supérfluo 


Também as cousas participam
de nossa vida. Um livro. Uma rosa.
Um trecho musical que nos devolve
a horas inaugurais. O crepúsculo
acaso visto num país
que não sendo da terra
evoca apenas a lembrança
de outra lembrança mais longínqua.

O esboço tão-somente de um gesto
de ferina intenção. A graça
de um retalho de lua
a pervagar num reposteiro
A mesa sobre a qual me debruço
cada dia mais temerosa
de meus próprios dizeres.
Tais cousas de íntimo domínio
talvez sejam supérfluas.

No entanto
que tenho a ver contigo
se não leste o livro que li
não viste a rosa que plantei
nem contemplaste o pôr-do-sol
à hora em que o amor se foi?

Que tens a ver comigo
se dentro em ti não prevalecem
as cousas — todavia supérfluas —
do meu intransferível patrimônio.



Henriqueta Lisboa, Pousada do Ser (1982)

Um comentário:

  1. Belíssimo!Sim, "Também as cousas participam
    de nossa vida. Um livro. Uma rosa.
    Um trecho musical que nos devolve
    a horas inaugurais.
    A partilha destas pequenas coisas é a coisa maior das nossas vidas.

    Um beijo

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