sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Para sempre.Para nunca mais.



Pai. A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quieto nos rostos. Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Anoitecia devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos os preceitos e, seguindo regras certas, regavas as árvores e as flores do quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa indiferente deste mundo que finge continuar, os teus movimentos, o eclipse dos teus gestos. E tudo isto é agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei.

José Luís Peixoto
In Morreste-me, Lisboa, Temas e Debates, 2001


Esse texto inundou meu coração de saudade.Suave e intenso ..."E fico.Estou."




terça-feira, 27 de setembro de 2011

...quando quis tirar a máscara,estava pegada à cara.



Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente


Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.



in Tabacaria /Álvaro de Campos (F.P)


Em se tratando de Fernando Pessoa , meu preferido são todos.
Se, por hipótese, tiver que escolher um , fico com Bernardo Soares e o Livro do Desassossego. ( o homenageado pelo meu blog).
Livros exercem um poder absurdo sobre mim, porque fico possuída por eles dias inteiros,quando os leio e me agradam.Ontem, foi Álvaro de Campos. Difícil dormir com tantas perguntas sem respostas,com tantas palavras harmoniosas se juntando e criando labirintos de vida.
Assim, hoje, ele aqui está com um ínfimo de tudo que é. 

domingo, 25 de setembro de 2011

A beleza, como o amor, são mistérios proibidos


Nunca fui tão feliz como durante essas noites. Fechava os olhos e via-a dentro de mim. A mulher mais bonita do mundo. E ia conhecendo mais do seu rosto, ia conhecendo mais do seu olhar que me via e que brilhava. Ficávamos durante horas só a olharmos um para o outro. Às vezes, fechava os olhos para a ver quando era de noite. Depois, havia uma luz que começava lentamente a atravessar-me as pálpebras. Abria os olhos, e era já de dia. Naquelas horas, conhecemo-nos. Eu via uma mulher que me olhava: os seus olhos atentos a cada brilho com que os meus olhos interiores lhe diziam que qualquer coisa na beleza ou no mundo me conduzia para ela. Naquelas horas, sem falarmos, construíram-se certezas dentro de nós. Ainda hoje o não sei explicar. A beleza, como o amor, são mistérios proibidos. Naquelas horas, a beleza e o amor eram simples. Nos nossos olhares, abriam-se caminhos para a beleza e para o amor. Eu olhava para ela no mesmo momento em que ela olhava para mim. Esse era o mistério, o milagre, o labirinto simples que usámos para nos conhecermos e para dizermos palavras de silêncio: palavras maiores, profundas, abismos, palavras que eram de sangue e que ali, eu um rapaz, ela uma rapariga, pareciam palavras de sol terno, e de sol suave, e de sol brando. Sei hoje que, durante aquele tempo, amava e era amado. Durante aquele tempo, a beleza da mulher de luz que estava dentro de mim, tinha-se misturado com esse sentimento. Esse sentimento. Esse sentimento que era um entusiasmo a mandar em todos os meus instantes, uma febre de onde não conseguia sair mesmo que quisesse, esse sentimento que era uma palavra: amor: uma palavra estranha porque era importante, eu achava que era uma palavra importante, mas sabia que era uma palavra que eu, desde os meus dezesseis anos, tinha tornado vulgar. Esse sentimento que era uma palavra, e eu perguntava-me a mim próprio sobre quantas pessoas a teriam tornado vulgar. Eu sentia que sentia totalmente esse sentimento. Amava e era amado.

 Uma Casa na Escuridão : José Luís Peixoto.

Um texto absolutamente suave, como se possível viver sempre assim.Mas...O texto plácido esconde surpresas de medo , apreensão, dor,enfim...não é fácil viver.

“O tempo passa depressa quando queremos sentir cada instante. O tempo passa lentamente quando se espera. O tempo passa ainda mais lentamente quando já não se espera nada, quando já não há nada a esperar.” 

A poesia de Uma Casa na Escuridão é atroz, de sofrimento continuado e exerce uma carga de tristeza imensa.O narrador vive um amor impossível: ama uma mulher que vive no seu interior e só consegue tocar-la pela escrita, noite após noite. A casa na escuridão dentro da escuridão é habitada por montes de gatos, pelo narrador, a mãe e a escrava . Há o amor e as palavras de amor: puro, verdadeiro, despido e por isso impossível de ser vivido. Não são só palavras melodiosas, amor e palavras de amor: há a dor, brutal e cruel.Há mais, medo dentro do medo.

Simplesmente imperdível.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

...em silêncio, ouve o teu coração.


                                
“(…) Sabes qual é o erro que cometemos sempre? Acreditar que a vida é imutável, que, mal escolhemos um carril, temos de o seguir até ao fim. Contudo, o destino tem muito mais imaginação do que nós... Precisamente quando se pensa que se está num beco sem saída, quando se atinge o cúmulo do desespero, com a velocidade de uma rajada de vento tudo muda, tudo se transforma, e de um momento para o outro damos por nós a viver uma nova vida.

-Se, esteja onde estiver, arranjar maneira de te ver, só ficarei triste, como fico triste sempre que vejo uma vida desperdiçada, uma vida em que o caminho do amor não conseguiu cumprir-se.
Tem cuidado contigo. Sempre que à medida que fores crescendo, tiveres vontade de converter as coisas erradas em certas, lembra-te que a primeira revolução a fazer é dentro de nós próprios, a primeira e a mais importante. Lutar por uma ideia sem se ter uma ideia de si próprio é uma das coisas mais perigosas que se pode fazer.

Quando te sentires perdida, confusa, pensa nas árvores, lembra-te da forma como crescem. Lembra-te que uma árvore com muita ramagem e poucas raízes é derrubada à primeira rajada de vento, e que a linfa custa a correr numa árvore com muitas raízes e pouca ramagem. As raízes e os ramos devem crescer de igual modo, deves estar nas coisas e estar sobre as coisas, só assim poderás dar sombra e abrigo, só assim, na estação apropriada, poderás cobrir-te de flores e de frutos.

E quando à tua frente se abrirem muitas estradas e não souberes a que hás-de escolher, não metas por uma ao acaso, senta-te e espera.
Respira com a mesma profundidade confiante com que respiraste no dia em que vieste ao mundo, e sem deixares que nada te distraia, espera e volta a esperar.

Fica quieta, em silêncio, e ouve o teu coração. Quando ele te falar, levanta-te, e vai onde ele te levar.
(…)"


Susanna Tamaro, "Vai onde te leva o coração"





Creio que só a contemplação mística do silêncio nos permite ouvir o coração . Levantar-se e segui-lo  seria fácil se as memórias adormecessem.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Melhor acender um fósforo do que lamentar a escuridão.


Se não quiser adoecer - "Fale de seus sentimentos":
Emoções e sentimentos que são escondidos, reprimidos, acabam em doenças como gastrite, úlcera, dores lombares, dor na coluna. Com o tempo, a repressão dos sentimentos, a magoa, a tristeza, a decepção degenera até em câncer. Então vamos confidenciar, desabafar, partilhar nossa intimidade, nossos desejos, nossos pecados. O diálogo, a fala, a palavra é um poderoso remédio e poderosa terapia.

Se não quiser adoecer - "Tome decisão":
A pessoa indecisa permanece na dúvida, na ansiedade, na angústia. A indecisão acumula problemas, preocupações, agressões. A história humana é feita de decisões. Para decidir é preciso saber renunciar, saber perder vantagens e valores para ganhar outros. As pessoas indecisas são vítimas de doenças nervosas, gástricas e problemas de pele.

Se não quiser adoecer - "Busque soluções":
Pessoas negativas não enxergam soluções e aumentam os problemas. Preferem a lamentação, a murmuração, o pessimismo. Melhor acender o fósforo que lamentar a escuridão. Pequena é a abelha, mas produz o que de mais doce existe. Somos o que pensamos. O pensamento negativo gera energia negativa que se transforma em doença.

Se não quiser adoecer - "Não viva de aparências":
Quem esconde a realidade, finge, faz pose, quer sempre dar a impressão de estar bem, quer mostrar-se perfeito, bonzinho , está acumulando toneladas de peso ... uma estátua de bronze, mas com pés de barro. Nada pior para a saúde que viver de aparências e fachadas. São pessoas com muito verniz e pouca raiz. Seu destino é a farmácia, o hospital, a dor.

Se não quiser adoecer - "Aceite-se":
A rejeição de si próprio, a ausencia de auto-estima faz com que sejamos algozes de nós mesmos. Ser eu mesmo é o núcleo de uma vida saudável. Os que não se aceitam são invejosos, ciumentos, imitadores, competitivos, destruidores. Aceitar-se, aceitar ser aceito, aceitar críticas, é sabedoria, bom senso e terapia.

Se não quiser adoecer - "Confie":
Quem não confia, não se comunica, não se abre, não se relaciona, não cria liames profundos, não sabe fazer amizades verdadeiras. Sem confiança, não há relacionamento. A desconfiança é falta de fé em si, nos outros e em Deus.

Se não quiser adoecer - "Não viva sempre triste":
O bom humor, a risada, o lazer, a alegria, recuperam a saúde e trazem a vida longa. A pessoa alegre tem o dom de alegrar o ambiente em que vive. "O bom humor nos salva das mãos do doutor". Alegria é saúde e terapia. 


Dr. Dráuzio Varella

Doenças da  alma. Quem não as tem? Talvez, o verbo seja " aceitar-se" na  plenitude .É fácil????!!! Claro que não, mas quem disse que viver é fácil ? A vida tem a " cara" que nós lhe damos , por isso...

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs...




Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
(...)


Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.


A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta entrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
Desta turbulência tranquila de sensações desencontradas,
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
Desta sociedade antecipada na asa de todas as chávenas,
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.


Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
Consanguinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.


Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.



Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...
Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,
Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...
Que há de ser de mim? Que há de ser de mim?
(...)

Alvaro de Campos (F P) in Passagem das Horas

Nossa vivência íntima diverge, e não pouco, das certezas que proferimos com a boca. Teríamos todos duas vidas: a verdadeira, “que é a que sonhamos na infância e que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa”, e a falsa, “que é a que vivemos em convivência com outros”, prática, útil, mas aquela em que acabam por “nos meter em um caixão”. Deriva talvez desse contraste, entre vidas dentro da mesma vida, um dos mais belos versos do livro: “o que é a necessidade de escrever versos senão a vergonha de chorar?”.
GB

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Vivo de luz.



Se vale a pena viver a vida esplêndida - esta fantasmagoria de cores, de grotesco, esta mescla de estrelas e de sonho? .
Só a luz! só a luz vale a vida!
 A luz interior ou a luz exterior.
 Doente ou com saúde, triste ou alegre, procuro a luz com avidez.

A luz é para mim a felicidade. Vivo de luz. Impregno-me, olho-a com êxtase. Valho o que ela vale. Sinto-me caído quando o dia amanhece baço e turvo. Sonho com ela e de manhã é a luz o meu primeiro pensamento. Qualquer fio me prende, qualquer reflexo me encanta. E agora mais doente, mais perto do túmulo, busco-a com ânsia. 

Raul Brandão, in ' Se Tivesse de Recomeçar a Vida '





Se eu tivesse que recomeçar a vida ...seria mais pássaro e menos pedra.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Os ninguéns



As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a
pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte
a cântaros; mas a boa sorte não choveu ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca,
nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e
mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o
ano mudando de vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns : os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e
mal pagos:
Que não são, embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais
da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.

Eduardo Galeano.


Dispensa qualquer apreciação...Esse texto se basta.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Uma crônica deliciosa...



A Arte de Ser Avó
                                           Rachel de Queiroz

Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu. É, como dizem os ingleses, um ato de Deus. Sem se passarem as penas do amor, sem os compromissos do matrimônio, sem as dores da maternidade. E não se trata de um filho apenas suposto, como o filho adotado: o neto é realmente o sangue do seu sangue, filho de filho, mais filho que o filho mesmo...
Quarenta anos, quarenta e cinco... Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem as suas alegrias, as suas compensações - todos dizem isso embora você, pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas acredita.
Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade. Não de amores nem de paixões: a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são os filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento a prestações, você não encontra de modo nenhum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não são mais aqueles que você recorda.
---
E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis - nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino seu que lhe é "devolvido". E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo e decepção se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor recalcado que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.
Sim, tenho certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis. Aliás, desconfio muito de que netos são melhores que namorados, pois que as violências da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos. Se o Doutor Fausto fosse avó, trocaria calmamente dez Margaridas por um neto...
No entanto - no entanto! - nem tudo são flores no caminho da avó. Há, acima de tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe. Não importa que ela, em si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser a mãe do garoto. Não importa que ela, hipocritamente, ensine o menino a lhe dar beijos e a lhe chamar de "vovozinha", e lhe conte que de noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você. São lisonjas, nada mais. No fundo ela é rival mesmo. Rigorosamente, nas suas posições respectivas, a mãe e a avó representam, em relação ao neto, papéis muito semelhantes ao da esposa e da amante dos triângulos conjugais. A mãe tem todas as vantagens da domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe de comer, dá-lhe banho, veste-o. Embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da rotina, a obrigação de educar e o ônus de castigar.
Já a avó, não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance e do imprevisto. Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a passear, "não ralha nunca". Deixa lambuzar de pirulitos. Não tem a menor pretensão pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o último recurso nos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia. Uma noite passada em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma aventura. Lá não há linha divisória entre o proibido e o permitido, antes uma maravilhosa subversão da disciplina. Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e comer roquetes, tomar café - café! -, mexer no armário da louça, fazer trem com as cadeiras da sala, destruir revistas, derramar a água do gato, acender e apagar a luz elétrica mil vezes se quiser - e até fingir que está discando o telefone. Riscar a parede com o lápis dizendo que foi sem querer - e ser acreditado! Fazer má-criação aos gritos e, em vez de apanhar, ir para os braços da avó, e de lá escutar os debates sobre os perigos e os erros da educação moderna...
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Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta os mais requintados prazeres da alma. Porém, esses prazeres não estarão muito acima da alegria de sair de mãos dadas com o seu neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui embaixo você ainda tem o direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será defeso. Meu Deus, o olhar das outras avós, com os seus filhotes magricelas ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso neto!
E quando você vai embalar o menino e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz: "Vó!", seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.
E o misterioso entendimento que há entre avó e neto, na hora em que a mãe o castiga, e ele olha para você, sabendo que se você não ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional cumplicidade...
Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menininho - involuntariamente! - bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beiço pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque "ninguém" se zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, Vó? Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague...
(O brasileiro perplexo, 1964.)




   para Cíntia ... há quinze anos - dores, prazeres e amor.
Cíntia 


                        para  Violeta...  longe pela distância e no fundo do coração.
Vivi


Para o Raphael, doce, lindo, o amor perfeito

Raphael

domingo, 4 de setembro de 2011

A difícil arte do amor.



Há uma grande diferença entre viver com alguém e viver em alguém. Pessoas há em quem somos capazes de viver sem que consigamos viver com elas. E há os casos inversos. Só uma extrema pureza do amor e da amizade está em condições de juntar as duas coisas.

O homem só pode viver com os que se lhe assemelham. E ao mesmo tempo não pode viver com eles, porque não suporta que alguém se lhe assemelhe eternamente.

Quando duas pessoas estão inteiramente satisfeitas uma com a outra, podemos ter quase sempre a certeza de que estão ambas enganadas.


Wolfgang von Goethe

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A vertigem de uma recordação perdida.




Nunca se tinha demorado nos prazeres da memória. As impressões resvalavam sobre ele, momentâneas e vividas; o vermelhão de um oleiro, a abóbada carregada de estrelas que também eram deuses, a lua, de que tinha caído um leão, a lisura do mármore sob as lentas gemas sensíveis, o sabor da carne de javali, que gostava de rasgar com dentadas brancas e bruscas, uma palavra fenícia, a sombra negra que uma lança projecta na areia amarela, a proximidade do mar ou das mulheres, o pesado vinho cuja aspereza o mel mitigava, podiam abarcar por inteiro a sua alma.


Conhecia o terror mas também a cólera e a coragem, e uma vez foi o primeiro a escalar um muro inimigo. Ávido, curioso, casual, sem outra lei que a fruição e a indiferença imediata, percorreu a terra vária e olhou, numa e noutra margem do mar, as cidades dos homens e os seus palácios. Nos mercados populosos ou no sopé de uma montanha de cume incerto, em que bem podia haver sátiros, tinha escutado complicadas histórias, que recebeu como recebia a realidade, sem imaginar se eram verdadeiras ou falsas.
Gradualmente, o formoso universo foi-o abandonando; uma teimosa neblina confundiu-lhe as linhas da mão, a noite despovoou-se de estrelas, a terra era insegura sob os seus pés. Tudo se afastava e confundia.


Quando soube que estava a ficar cego, gritou; o pudor estóico não tinha sido inventado e Heitor podia fugir sem deslustre. Já não verei (percebeu) nem o céu cheio de pavor mitológico, nem esta cara que os anos transformarão. Dias e noites passaram sobre esse desespero da sua carne, mas uma manhã acordou, olhou (já sem assombro) as indistintas coisas que o rodeavam e inexplicavelmente sentiu, como quem reconhece uma música ou uma voz, que tudo isso já lhe tinha acontecido e que o havia encarado com temor, mas também com júbilo, esperança e curiosidade.


Então desceu à sua memória, que lhe pareceu interminável, e conseguiu tirar daquela vertigem a recordação perdida que reluziu como uma moeda sob a chuva, talvez porque nunca a tivesse olhado, salvo, quem sabe, num sonho..."

Jorge Luis Borges, in O Fazedor, (Difel 2002)


Se pudéssemos selecionar as recordações, teríamos o paraíso.Escolheríamos  todas as pessoas e fatos que nos fizeram felizes, ainda que por um breve momento. Porém, a memória se incumbe de guardar tantas lembranças que gostaríamos de esquecer, apagar! Estas com uma nitidez espantosa, intermináveis, e não as podemos descartar.Isto é, no mínimo, doloroso.