segunda-feira, 16 de julho de 2012

Os livros e eu.


Minha relação com livros é transcendental.às vezes, tenho a impressão de que há um entendimento entre "nós" que escapa do que seria normal. Eu me sinto feliz ( não alegre) com um livro nas mãos : ouço-o, sinto-lhe o cheiro,as páginas parecem carícias, enfim o alumbramento.  Livrarias são um mundo maravilhoso , no qual eu gostaria de morar...rs.
A propósito,encontrei um texto que me identifica , e descubro que deve haver um exército igual a mim. Tenho encontrado tantos  textos assim, que já nem sei qual e quem eu sou. Enfim, continuo feliz nesse meu mudinho particular : eu e eles...claro, os livros.


Os livros.
Os livros são um amor pesado.
 Arrastam-se atrás de nós como fantasmas, mesmo antes de arrastarmos fisicamente com eles, de lugar para lugar. Os livros tornam-nos conservadores: naqueles momentos em que nos apetece mudar de casa, de país, de mundo, eles perfilam-se diante dos nossos olhos, solenes, um exército de capas rijas desafiando o nosso desejo de mobilidade. 
Revoltamo-nos: decidimos deixá-los para trás, oferecê-los, esquecê-los - mas eles não deixam. Porque quando passamos as mãos nas estantes, medindo forças com eles, há-de tombar-nos aos pés um livro que no chão, aberto, tem alguma coisa para nos dizer, alguma coisa que esquecêramos ou que agora subitamente descobrimos. Alguma coisa tão nossa que não reparámos nela. Um verso sublinhado, uma imagem, uma página que nos acelera o bater do coração e o galope do cérebro. 


Quantas vezes utilizámos os livros como refúgios do cérebro contra as investidas do coração? Quantas vezes os usámos como trincheiras sentimentais contra as razões da vida? Quantas vidas vivemos dentro deles, por procuração? Quantos anos passámos escondidos nas esquinas daquelas páginas, à espera que delas saltasse a surpresa redentora que, de tanto esperarmos, se esfumou? Os livros são os guardiões das nossas culpas: da muda acusação inscrita nas lombadas velhas e virgens dos que nunca lemos ao grito silencioso dos que se desmoronam nas nossas mãos, riscados, batidos, cheios de areia, manchas de café, marcas de lágrimas e até - nefando crime - sombras de tabaco.

Por que gostamos tanto de alguns livros maus e nos negamos a conhecer tantos livros bons? Por que insistimos em levar até ao fim alguns livros que parecem recusar-nos? Por que mergulhamos em livros que sabemos que nos vão magoar? O que faremos às horas que perdemos a ler livros de que não recordamos uma frase? Poderemos ainda reencontrar aqueles que só depois de perdidos descobrimos que amávamos de verdade? Quantas vezes sacrificámos a escuta das nossas verdades à leitura das verdades de um livro? Quantas vezes nos enganámos nos livros, quantas vezes nos enganámos por fugirmos dos livros?


Decidimos então escolher - mas os livros ensinaram-nos também a precariedade das escolhas e das decisões. Há uma época da vida em que descobrimos que aquilo a que chamámos escolhas fundamentais resultou de um conjunto de factores e circunstâncias que, afinal, não dominámos. Fomos arrastados na enxurrada, sobrevivendo a temporais diversos - e agora, no promontório a que damos o nome de maturidade (porque ganhámos nos livros o vício de dar nome a tudo, classificar, organizar, compreender, explicar) olhamos para as escolhas que esboçámos e abandonámos, e esforçamo-nos por recomeçar o desenho da nossa vida, numa página em branco. Mas aprendemos que o branco puro não existe - nem o negro, nem o amarelo, nem o azul ou o vermelho. Nenhuma cor é afinal absoluta como nós pensávamos, nesse tempo em que chamávamos razão ao instinto, paixão ao desejo, amor ao medo, originalidade à arrogância e ousadia à provocação. Ou vice-versa - tínhamos um feixe de certezas absolutas, e uma incapacidade atávica de escutar as várias versões de uma mesma história. Talvez fosse apenas impaciência - mas nós chamavamos-lhe idealismo. Gostávamos tanto de livros que nos tornámos caçadores de palavras - e deixávamo-nos balear por elas, como se fossem canções. Agora olhamos para os livros como sinfonias, feitas de deambulações em torno de um tema recorrente, que se vai revelando em diferentes tons - à semelhança das nossas vidas.


Quando éramos jovens, sabíamos arrumar os livros. Agora não sabemos - cresceram, multiplicaram-se, por dentro e por fora. Sociologia ou Filosofia? História ou Economia? Quanto mais lemos, mais difícil se torna decidir. A Ficção nas estantes de cima - como se lêssemos um romance de cada vez; sempre pensámos que quando acabássemos de crescer seríamos menos sôfregos. Mas o que fazer aos romances que nos habituamos a reler como ensaios ou poemas, e que sentimos necessidade de folhear ao acaso, com uma saudade sensual, numa tarde de chuva?
Os inclassificáveis empilham-se pelos cantos da casa, à espera de uma hora iluminante - e os recém-chegados acabam por se misturar com eles. Ao fim de uma semana já não conseguimos encontrar nada, e odiamos os livros por atacado, bradamos contra eles, juramos livrar-nos deles. Depois folheamos um e dizemos: vamos escolher, separar, deixar para trás, mudar. Mas os livros agarram-nos, lambem-nos as mãos, atiram-se ao chão para que olhemos para eles, seduzem-nos através do cheiro, do toque, do pó das memórias.


 Encaixotamo-los, e mudamo-nos, de novo, com eles - embora saibamos que nunca teremos tempo para os ler todos, e que continuaremos a ser injustos com eles, a amá-los mal, a perdê-los, a maltratá-los, a emprestá-los e a arrependermo-nos. 
"Antes a experiência que a nostalgia", disse-me certa vez uma amiga. Um bom conselho serve para tudo, até para arrumar bibliotecas e perder o medo do caos e o travo da culpa que assombra o amor dos livros."


Inês Pedrosa / Crônica  /2008

2 comentários:

  1. "Quantas vezes utilizámos os livros como refúgios do cérebro contra as investidas do coração? Quantas vezes os usámos como trincheiras sentimentais contra as razões da vida? Quantas vidas vivemos dentro deles, por procuração? Quantos anos passámos escondidos nas esquinas daquelas páginas, à espera que delas saltasse a surpresa redentora que, de tanto esperarmos, se esfumou? Os livros são os guardiões das nossas culpas: da muda acusação inscrita nas lombadas velhas e virgens dos que nunca lemos ao grito silencioso dos que se desmoronam nas nossas mãos, riscados, batidos, cheios de areia, manchas de café, marcas de lágrimas e até - nefando crime - sombras de tabaco."

    Este trecho me chamou a atenção. Lembrou-me uma frase que escrevi, faz tempo: "Há sempre um livro entre mim e o outro". Ela foi mais verdadeira naquela época para mim. Mas sua força emocional ainda persiste. Não poderia negar que vivo maior parte do tempo do meu dia-a-dia debruçado sobre os livros. Eles preenchem o espaço deixado pelos 'amigos' que passam. O problema que os livros nos convocam ao diálogo, eles nos interpelam. Qual não é meu prazer ao apropriar-me da compreensão de um autor ou de perceber que entre minha compreensão e a dele há uma afinidade! Claro que nem sempre é assim; por vezes, discordo, objeto... Ler é ilhar-se... onde está o livro, o mundo está ausente... coloco o mundo entre parênteses, quando estou imerso em suas páginas... depois descobro que o mundo sempre esteve ali, eu é que o ignorei por horas... Livros têm uma capacidade impressionante de nos fazer reexperimentar... é como se as experiências que outrora tivemos ficassem impregnadas em suas páginas... Nenhuma leitura é igual a outra... podemos ler um mesmo livro quantas vezes quisermos em diferentes momentos, e cada vez que o fizermos descobriremos coisas que ignoramos... Cada leitura é um olhar diferente que se projeta... Por isso também são valiosos, eles não se esgotam e nós não nos cansamos de refazer o percurso, porque, afinal, ele nunca é o mesmo...

    Beijos!
    Adorei o texto.

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  2. Eu nem sei definir, ao certo, o que um livro pode representar na minha vida. Vez ou outra é meu amigo melhor, meu companheiro e amante. Noutras vezes, é um refúgio ou uma opção num dia frio. O ler é um presente pra alma, que eu acolho com o coração saltitante!

    Adorei o teu espaço, fiquei!

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