O mistério do
nascimento é mais profundo, escreveu em algum lugar Simone Weil, e mais rico
para meditar que o mistério da morte. É que ele nos confronta com o acaso, que
é a verdadeira necessidade, ao passo que a morte nos entrega apenas ao destino,
que é uma necessidade programada ou retrospectiva. Quer eu morra totalmente ou
não, ou melhor, quer eu ressuscite ou não, minha vida nesta terra nem por isso
deixará de ter sido a mesma. Mas, e se eu não tivesse nascido? Ou se tivesse
nascido de pais diferentes? Ou simplesmente, com os mesmos pais, se tivesse
sido recebido a partir de um outro óvulo, de um outro espermatozóide? Seria
outra pessoa, ou melhor, não seria. Toda morte é inevitável (mesmo que ocorra
por acaso: de qualquer modo é preciso morrer). Nenhum nascimento o é, mesmo que
tenha sido desejado ou programado pelos pais. Morrer é um destino. Nascer, uma
sorte.
Se nossos pais não
tivessem feito amor naquele dia, ou se o tivessem feito algumas horas depois,
ou antes, ou talvez simplesmente em uma outra posição, não estaríamos aqui hoje
para pensar a respeito. Acasos do desejo. Loteria da vida. Nascer é para cada
um a primeira grande sorte, necessariamente a mais importante, pois condiciona
todas as outras. Mas isso não é tudo. A mesma improbabilidade extrema valeu
também para a concepção de nosso pai e de nossa mãe, para cada um de nossos
quatro avós, para cada um de nossos oito bisavós…Essas sucessivas
improbabilidades, cada uma delas condicionada pelas que as precedem,
multiplicam-se uma à outra. Ao fim de algumas gerações, a probabilidade de cada
nascimento, embora não nula, é tão ínfima que nenhum estatístico sério
aceitaria prevê-la de antemão. Ganhar na loto é, ao lado disso, brincadeira de
criança.
É isso que nos deve
tornar exigentes. Essa vida tão improvável que nos é dada, cabe a nós não a
desperdiçar. A vida não é um destino, é uma aventura. Ninguém escolheu nascer;
ninguém vive sem escolher. Cada qual é inocente de si, mas responsável por seus
atos. E responsável, portanto, ao menos em parte, por aquilo que se tornou.
Aristóteles mais profundo que Sartre. É forjando que alguém se torna forjador.
É realizando ações virtuosas que alguém se torna virtuoso. “Fazer”, dizia
Lequier, “e, fazendo, fazer-se”. Isso não fará de nós outra pessoa, o que
ninguém consegue. Mas impede de nos resignarmos rápido demais ao que somos, o que
ninguém deve fazer.
André Comte-Sponville, A vida humana (Martins Fontes, pg. 24-26)
Está aí uma bela discussão: se formos pensar racionalmente, há momentos - e pessoas - em que morrer é sorte, nascer foi um destino, um mau destino.
Está aí uma bela discussão: se formos pensar racionalmente, há momentos - e pessoas - em que morrer é sorte, nascer foi um destino, um mau destino.
Eu acompanhava atenciosamente linha por linha e suspeitava conhecer este texto. Só ao cabo da leitura vi a referência "A vida humana". Vejo que seguiu minha sugestão. Vai adorar cada página. Aproveito para sugerir também o livro "Bom dia, angústia!", do mesmo autor. Bem, esse trecho parece ter sido escolhido para mim. Lembro-me de que escrevi em uma de nossas comunicações no face sobre a contigência do nascimento, sobre nascer de determinados pais e não de outros... enfim... o mistério mais profundo, como escreve o autor... No que estou de acordo...
ResponderExcluirBeijos!
Adorei!