quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Nunca te amei tudo. Vou-te amar no absoluto.



«E devagar, ao centro de convergência de toda a bruta inquietação, rígida a procura do teu abismo interior. Refreio o ímpeto, quero entrar com a consciência difícil do que procuro, o impossível do teu ser. Rebento no limite de reter-me no sofrimento. Mas quero entender, entender. O modo único de nada me escapar ao prazer de ti. Do mistério irritante do que acontece no amar-te agora por sobre quanto te amei.

Entender. Amar-te na conglomeração de todas as vezes e formas e impossível em que te amei. Mónica, minha querida. Minha doença insuportável. Porque o teu corpo não é só o teu corpo. Não é isso, não é isso. É entrar em ti, e a tua pessoa estar lá, seres tu ainda no íntimo de te tocar e estares aí como no teu riso, na tua presença. Seres tu ainda quase reconhecível como se não soubesse que eras tu e entrar em ti e reconhecer-te como se aí fosses reconhecível.

Preciso de entender, não te vou agora amar à toa. Seres por dentro única como nas impressões digitais. Saber que és tu, mesmo sendo cego e surdo. Entrar em ti e tu estares toda lá dentro como estás por fora. Tocar o intransmissível de ti, reconhecer que és tu, inconfundível, no igual do teu íntimo ao de toda a mulher. Porque tu és tão diferente. No riso no ar na voz, na totalidade do teu corpo. E sentir que isso tudo é lá também esse tudo. Diferente na sua igualdade.

Entrar em ti e ir reconhecendo pouco a pouco no meu entrar a mulher que amo até à estupidez. Reconhecer encontrar dentro o que amei fora. Nunca te amei toda, vou-te amar o que sempre faltou. Nunca te amei tudo, aproveitei sempre uma fatia de te amar.

O teu olhar, o teu riso, a exemplaridade do teu corpo, o seu espectáculo, o encantamento às vezes, o teu andar, o prazer rápido, o prazer trabalhado para te submeter a tê-lo. Coisas assim avulsas. Vou-te amar agora, vou-te amar no absoluto. Amar-te no prazer e rebentar.»

Vergílio Ferreira, «Em nome da terra», Quetzal, pág.143]

3 comentários:

  1. Meu Deus!

    O que é isso?

    Só um verdadeiro afortunado tem a sensibilidade - aliada à competência - para escrever um texto desses.

    Não me canso de dizer a você: muito obrigado pela oportunidade do conhecimento!

    Beijo.

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  2. Oi, João...

    Incrível, não é? O melhor é que ele é apenas um dos muitos autores portugueses contemporâneos que fazem uma literatura de alta qualidade.
    Não temos nem um terço aqui que seja parecido com o que acontece em Portugal, hoje.
    Que bom que vc gostou.Obrigada pela presença.

    Bjs.

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  3. Meu Deus! Que coisa linda!
    Sabe quando você clica num link e sabe que vai encontrar coisa boa? Então... é assim que eu me sinto ao clicar no seu Desassossego!

    Beijos
    Tassi

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