Envelhecer : com mel ou fel ?
Conheço muitas pessoas que estão envelhecendo mal. Desconfortavelmente. Com uma
infelicidade crua na alma. Estão ficando velhas, mas não estão ficando sábias.
Um rancor cobre-lhes a pele, a escrita e o gesto. São críticos azedos, aliás
estão ficando cítricos sem nenhuma doçura nas palavras. Estão amargos. Com fel
nos olhos.
E alguns desses, no entanto, teriam tudo para ser o contrário : aparentemente
tiveram sucesso em suas atividades. Maior até do que mereciam. Portanto a gente
pensa : o que querem? Por que essa bílis ao telefone e nos bares ? Por que esse
resmungo pelos cantos e esse sarcasmo que se pensa humor ? Isto está errado.
Errado, não porque esteja simplesmente errado, mas porque tais pessoas vivem
numa infelicidade abstrusa. E, ademais, deveria-se envelhecer maciamente. Nunca
aos solavancos. Nunca aos trancos e barrancos. Nunca como alguém caindo num
abismo e se agarrando nos galhos e pedras, olhando enquanto despenca. Jamais
também, como quem está se afogando, se asfixiando ou morrendo numa câmara de
gás.
Envelhecer deveria ser como plainar. Como quem não sofre mais (tanto), com os
inevitáveis atritos. Assim como a nave que sai do desgaste da atmosfera e vai
entrando noutro astral, e vai silente, e vai gastando nenhum-quase combustivel,
flutuando como uma caravela no mar ou uma cápsula no cosmos.
Os elefantes, por exemplo, envelhecem bem. E olha que é uma tarefa enorme. Não
se queixam do peso dos anos, e nem da ruga do tempo, e , quando percebem a hora
da morte, caminham pausadamente para um certo lugar - o cemitério dos
elefantes, e aí morrem, completamente, com a grandeza existencial só aos sábios
permitida.
Os vinhos envelhecem melhor ainda. Ficam ali nos limites de sua garrafa, na
espessura de seu sabor, na adega do prazer. E vão envelhecendo e ganhando vida,
envelhecendo e sendo amados, e, porque velhos, desejados. Os vinhos envelhecem
densamente. E dão prazer.
O problema da velhice também se dá com certos instrumentos. Não me refiro aos
que enferrujam pelos cantos, mas a um envelhecimento atuante como o da faca.
Nela o corte diário dos dias a vai consumindo. E no entanto, ela continua
afiadíssima, encaixando-se nas mãos da cozinheira como nenhuma outra faca nova.
Vai ver, a natureza deveria ter feito os homens envelhecerem diferente. Como as
facas, digamos, por desgaste, sim, mas nunca desgastante. Seria uma suave
solução: a gente devia ir se gastando, se gastando, se gastando até se
evaporar. E aí iam perguntar: cadê fulano? E alguém diria: gastou-se foi
vivendo, vivendo, e acabou. Acabou, é claro, sem nenhum gemido ou resmungo.
Isto seria muito diferente de ir envelhecendo por um processo de humilhações
sucessivas, como essa coisa de ir deixando rins, pulmões, dentes e intestinos
pelas mesas de cirurgia, numa mutiladora dispersão.
Acho que o que atrapalha alguns maus envelhecedores é a desmesurada projeção
que fizeram de si mesmos. Se dimensionaram equivocadamente. Deveria ser
proibido, por algum mecanismo biológico, colocarmos metas acima de nossas
forças.
Seria a única solução de acabar com a fábula da raposa e as uvas. Assim a
raposa não envelheceria resmungando por não ter devorado o que não lhe
pertencia. Deveria, portanto, haver um relais, que desligasse nossos impulsos
toda vez que quiséssemos saltar obstáculos para os quais não temos músculos.
Assim sofreríamos menos e não amargaríamos não ter tido certas mulheres,
conquistado certos reinos, escrito certas obras primas.
A literatura tem lá seus personagens-símbolos a esse respeito: o Fausto e
Dorian Gray. Apavorados com a velhice e a morte, venderam a alma ao diabo, e em
troca pediram a juventude de volta. Não deu certo. O diabo não joga para
perder. Dizem que a única vez que foi realmente derrotado foi naquela disputa
com o próprio Deus a respeito de Jó. Mesmo assim, deu um trabalho danado.
Especialistas vão dizer que envelhece mal o indivíduo que não realizou suas
pulsões eróticas assenciais; que deixou coagulada ou oculta uma grande parte de
seus desejos. Isto é verdade. Parcial porém. Pois não se sabe por que estranhos
caminhos de sublimação, há pessoas que, embora roxas de levar tanta pancada da
vida, têm, contudo, um arco-íris na alma.
Bilac dizia que a gente deveria aprender a envelhecer com as velhas árvores.
Walt Whitman tem um poema onde vai dizendo: " Penso que podia viver com os
animais que são plácidos e bastam-se a si mesmos".
Ainda agora tirei os olhos do papel e olhei a natureza em torno. Nunca vi o sol
se queixar no entardecer. Nem a lua chorar quando amanhece.
Affonso Romano de Sant'anna
Jornal do Brasil
30/07/87.
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