quinta-feira, 27 de maio de 2010
Cegos são os que têm olhos e não vêem.
Existe algo mais sufocante do que a cegueira moral?
Ensaio sobre a cegueira ( síntese) aborda a emergência da epidemia de uma repentina cegueira que abate os moradores de uma localidade não identificada. Tudo se inicia quando um homem cega repentinamente ao volante de seu automóvel, enquanto aguardava a mudança das cores no sinal de trânsito que o permitiria continuar a seguir seu caminho. A cegueira repentina e inexplicável inicia então, lentamente, o seu alastramento.
No entanto, diferente da cegueira usual, em que os cegos possuem apenas a percepção da escuridão, essa é uma “cegueira branca”, como a define o narrador. No lugar da ausência de luz, as pessoas infectadas enxergam apenas a completa brancura de uma superfície aparentemente leitosa.
Ao perceber a gravidade dos problemas que tal epidemia poderia ocasionar, as autoridades decidem enviar os novos cegos e aqueles com quem eles tiveram algum tipo de contato a um manicômio desativado. Essas pessoas são colocadas em quarentena em condições que chegam a se tornar desumanas. Aos poucos, todos acabam cegos e reduzidos, pela obscuridade, a meros seres lutando por seus instintos. Somente uma mulher não é acometida pelo mal da epidemia. Resta apenas a sua visão em meio à completa cegueira, moral e física, que assola os homens, tornando-se ela a única testemunha da degradação a que foi capaz de alcançar essa sociedade absolutamente cega.
Mesmo para os habituados com leituras difíceis, "Ensaio sobre a cegueira" não é um livro fácil. A certa altura, lê-lo é bem parecido a padecê-lo.Mas isso conta como mérito para Saramago, também: sua parábola sobre o vazio e o desespero que nos cercam procura ser precisa, incômoda, inquietar ao máximo. É preciso um estado de espírito especial para enfrentá-la.
Não é um livro concessivo nem flerta minimamente com o entretenimento. Em se tratando de romances que oferecem uma situação sufocante em crescendo, espera-se sempre que um final redentor clareie aquilo e nos liberte, nos alivie. Mas Saramago vai noutra direção: mostra evidente prazer em pormenorizar com crueldade uma situação cruel, implausível, uma enorme metáfora do mal-estar do mundo presente
através de sua epidemia de cegueira, que é curiosa: as pessoas não se tornam exatamente cegas, mas passam a enxergar uma claridade ofuscante, excessiva, que parece precisamente o negativo da visibilidade.
"... se antes de cada ato nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar. Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala" (EC: 84).
O medo, o comodismo e o fatalismo levam uma pessoa a se habituar a tudo, "...sobretudo se deixou de ser pessoa..." (EC: 218).
Para o narrador e suas personagens, a tolerância às situações de opressão são também sintomas de cegueira:
"O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos..." (EC: 131)
Saramago : polêmico e arrasador, como sempre.
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Gizelda, sei que até parece mal dizer o que vou dizer, mas na verdade nunca li nada de José Saramago. O pouco que conheço é apenas de trechos como este seu, que vou lendo aqui e ali.
ResponderExcluirO que não me impede de concordar com a sua narrativa; o pior cego é aquele que não quer ver - já diz o povo - e é bem verdade. Pessoalmente não sou muito tolerante com esse tipo de cegueira, com aqueles que se acomodam por medo de ousar ver mais além.
As nossas decisões, boas ou más, são nossas, e seremos sempre o resultado das mesmas. A escolha de errar e aprender com isso ou não fazer nada e não viver sequer, é nossa. Quem não vive, já quase morreu...
Mais uma excelente reflexão!
Um beijinho :)
Helga...
ResponderExcluirTenho conhecimento via-imprensa de que Saramago não é muito querido em sua terra e, lendo-o com frequencia, até posso entender porquê.
Acho que tenho a maioria dos livros dele e gosto muito. Ele me instiga. Porém, ele fala algumas coisas inconvenientes ,às vezes, que poderia evitar.Ignoro o que ele diz, mas, confesso, ainda acho-o brilhante e corajoso, escrevendo.
Obrigada por vir aqui mais uma vez.
Beijos, querida.