Um homem chegou aos quarenta anos e assumiu a tristeza de
não ter um filho. Chamava-se Crisóstomo. Estava sozinho, os seus amores haviam
falhado e sentia que tudo lhe faltava pela metade, como se tivesse apenas
metade dos olhos, metade do peito e metade das pernas, metade da casa e dos
talheres, metade dos dias, metade das palavras para se explicar às pessoas.
Via-se metade ao espelho e achava tudo demasiado breve, precipitado, como se as
coisas lhe fugissem, a esconderem-se para evitar a sua companhia. Via-se metade
ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de
silêncios como os precipícios ou poços fundos. Para dentro do homem era um sem
fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do
homem o homem caía.
Um dia, depois de ter comprado um grande boneco de pano que encontrou à venda numa feira, o Crisóstomo sentou-se no sofá abraçando-o. Abraçava o boneco e procurava pensar que seria como um filho de verdade, abanando a cabeça igual a estar a dizer-lhe alguma coisa. Afagava-lhe os cabelos enquanto fantasiava uma longa conversa sobre as coisas mais importantes de aprender. Começava sempre as frases por dizer: sabes, meu filho. Era o que mais queria dizer. Queria dizer meu filho, como se a partir da pronúncia de tais palavras pudesse criar alguém.
A certa altura, abraçou mais forte o boneco, encolhendo-o
até por o espremer de encontro ao peito, e acabou chorando muito, mas não
chorou sequer metade das lágrimas que tinha para chorar. Achando que tudo era
ausência, achava também que vivia imerso, como no fundo do mar. Pensava em si
como um pescador absurdamente vencido e até a idade lhe parecia maior. O
Crisóstomo começou a pensar que os filhos se perdiam, por vezes, na confusão do
caminho. Imaginava crianças sozinhas como filhos à espera. Crianças que viviam
como a demorarem-se na volta para casa por terem sido enganadas pela vida.
Acreditou que o afeto verdadeiro era o único desengano, a grande forma de
encontro e de pertença. A grande forma de família. Sentia uma urgência grave
sem saber ainda o que fazer.
Valter Hugo Mãe in " O filho de mil homens"
A felicidade possível não importa como,onde,ou com quem.
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