quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Fim.

                                      
7.41hs .Chove
O silêncio da casa me incomoda.Os pardais no muro e os ipês mostram que a vida continua.E eu tenho medo...
Não quero chorar, mas ao olhar para a mesa vejo a chícara com um resto de café, o último de 24 anos.

Chovia mais forte , quando, ainda pela última vez, ouvi o barulho do alumínio na cozinha, o cheirinho adocicado do café na madrugada e ,com o coração aos pulos, me fiz a inevitável pergunta: estarei certa? 24 anos de vida em comum terminam como? Chora-se?Lamenta-se? Tenta-se fingir que nada está acontecendo e despede-se como gente civilizada?


 Simplesmente acabou.É apenas fim.Tudo acaba.

Chove.É preciso escrever para colocar para fora a sensação de fracasso e tristeza.Na mesa ao meu lado uma malha esquecida, contas atrasadas( a única herança...)duas crianças dormindo,cães no tapete, e uma certeza : é preciso ter coragem e recomeçar.Mas como é que se recomeça?

E enquanto tento inutilmente unir o começo e o fim...ah! de onde vem esse perfume?Busco à minha volta. Ficou também uma camisa usada , misto de colônia e suor da noite quente.

O que foi que aconteceu? Qualidades?...Defeitos?(como os meus).Não. Mentiras. Mentiras que se amontoaram como tijolos mal colocados e ruiram, afinal.Não há vida em comum que sobreviva a elas. É preciso admirar alguém para amá-lo.Quando essa admiração se esvai, sobra nada.


Éramos quatro. Agora, somos três, cheios de expectativa, de vazio , de medo e...esperança.

O que devo fazer dessa manhã? São 8,04hs. Clareou, mas o dia permanece acinzentado.Cor de nada.Não posso lavar a alma enlameada, mas posso lavar o rosto e tirar o vestígio das lágrimas.É hora de reconstrução.Por cima da dor.

E reconstrução nada tem de poesia.É sólida e real, tem nome de saldo bancário, de sobrevivência, de pé-no-chão.Não há tempo, nem lugar, para lágrimas.Tenho que buscar o que sobrou de vida, encontrar as crianças, para juntas alçarmos voo.Para onde?
Não importa desde que voemos juntas.Quem sabe para o alto e para o azul.

Ah! Guimarães Rosa , estou precisando de você! " Ás vezes , o mundo parece demais de grande; outras vezes é pequenininho demais. A gente deve de esperar o terceiro pensamento".

Tenho que encontrar o terceiro pensamento!Tenho!

Vou me levantar daqui e arrumar a casa, recolher os restos de algo que já passou.Tenho que fazer, sobretudo, essa limpeza dentro de mim.

8,17hs. Parou de chover(lá fora).


19 de janeiro de 1996.


(Hoje,16 anos depois,leitora e personagem,percebo como esse texto foi escrito a ferro e fogo na minha história.E naquela hora, escrever foi minha única saída.Uma ferida que o tempo cicatrizou, mas que continua a ser uma página triste da minha agenda de 96).
Finalmente livre do texto e da agenda, mas sobretudo da mágoa.

3 comentários:

  1. "Tenho que buscar o que sobrou de vida"???? meu Deus.... isso é forte demais para mim... Gizelda, ouço sua voz lendo esse texto iluminado... e embora sangre , ele é a perfeita lição . Talvez a mais difícil de aprender.... para mim...
    VErto algumas lágrimas aqui na esperança de, um dia, poder dizer que aprendi...
    Mil beijos ,
    muita saudade .

    ResponderExcluir
  2. Bravo!!!!!
    Seus textos são de longe muito melhor que os compilados! Não tenho dúvida!
    Derramei hoje, em cumplicidade, suas lágrimas de 24 anos passados.
    Tento hoje, reconstruir e juntar cacos de mim mesma, não para recuperar um vaso destruído, mas para um compor um único e lindo mosaico!
    Obrigada por compartilhar!
    bjs

    ResponderExcluir