segunda-feira, 12 de setembro de 2011
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs...
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
(...)
Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.
A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta entrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
Desta turbulência tranquila de sensações desencontradas,
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
Desta sociedade antecipada na asa de todas as chávenas,
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.
Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
Consanguinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.
Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.
Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...
Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,
Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...
Que há de ser de mim? Que há de ser de mim?
(...)
Alvaro de Campos (F P) in Passagem das Horas
Nossa vivência íntima diverge, e não pouco, das certezas que proferimos com a boca. Teríamos todos duas vidas: a verdadeira, “que é a que sonhamos na infância e que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa”, e a falsa, “que é a que vivemos em convivência com outros”, prática, útil, mas aquela em que acabam por “nos meter em um caixão”. Deriva talvez desse contraste, entre vidas dentro da mesma vida, um dos mais belos versos do livro: “o que é a necessidade de escrever versos senão a vergonha de chorar?”.
GB
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Uma excelente escolha...
ResponderExcluirEu fico sempre rendido a Fernando Pessoa!
Bjs
http://rabiscosincertossaltoemceuaberto.blogspot.com/
Gostei muito. Uma bela escolha. Beijos e ótima semana!
ResponderExcluirSmareis
Nossa Gizelda que bela escolha! Todo um desassossego, um sentimento de desimportancia, uma certa tristeza que derepente se apossou de mim! Você perceber que algo que parecia tão sólido, derepente escapa de ti... O laço não era tão forte. Mas emfim... a vida não me doeu tanto assim! Bjusss
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