sábado, 8 de janeiro de 2011

A tarefa da educação é ensinar a ver.

EXCERTO :

Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".

Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinicius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa - garrafa, prato, facão - era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".


.A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas - e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos.


.Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".


.Por isso - porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver - eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...

O texto acima foi extraído da seção "Sinapse", jornal "Folha de S.Paulo", versão on line, publicado em 26/10/2004.
http://imagensdapoesia.blogspot.com/2009/03/complicada-arte-de-ver-por-rubem-alves.html

 
 
Quando alguém escreve assim, não tenho mais, absolutamente , nada a dizer. O texto se basta.

6 comentários:

  1. Gizelda,
    A questão que levanta é deveras pertinente. O que ensinar?
    Infelizmente no mundo ocidental a questão educativa está muito circunscrita ao TER. Se o ramo escolhido tem ou não saída, se os alunos estão preparados para enfrentar um mundo cão onde a concorrência é condição natural. No educar para SER, nenhum governo investe. Tudo é visto no filtro do cifrão, em investir no que poderá trazer retorno.
    Quem investe na formação integral do ser humano? Ninguém, é a constatação óbvia. Cada um tem que se bastar, e beneficiar, quando os há, de alguns mestres mais imunes à pressão das mais valias.
    Mas fico contente que tenha trazido consigo Alberto Caeiro. Talvez um dia haja disponibilidade para olhar para as coisas simples (por ora tão complexas) da vida.

    Beijo :)

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  2. Pois é, AC...

    Tenho comigo que há duas vertente abandonadas na educação e que deveriam ser prioritárias : ética e valores pessoais.

    SER deixou de ser relevante em um mundo que prioriza o lucro, o dinheiro, o poder e outros.
    A competitividade da vida contemporãnea tem reificado pessoas, tirando-lhes o essencial : respeito ao próximo, solidadiedade, honra, dignidade.
    O que es escolas tem ensinado não passa de informações que qualquer computador pode dar aos jovens com muito mais vantagem do que giz e lousa.Nessa hora, fico muito feliz por dar aulas de Redação e Literatura para adolescentes, porque ambas me permitem voos mais altos.

    Se todos lessem e ENTENDESSEM Caeiro , talvez fosse mais fácil ser professor.

    Beijo.Você sempre enriquece meus posts.Obrigada.

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  3. Este texto merece ser respondido sem pressa. Voltarei, querida amiga, porque hoje tenho um jantar de reis.
    Beijinho, Gizelda.

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  4. Que delícia, Ibel!

    Tenha uma linda noite! Há muito tempo não vejo uma genuina festa de reis , por aqui.

    Beijos

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  5. Gizelda,

    Adorei!!! Esta postagem é magnífica!

    Onde guardamos os olhos? Questão para a qual nos devemos voltar e olhar com "olhos que estão na caixa de brinquedos". Por isso o olhar de criança é sempre tão verdadeiro... elas vêem para além do olhar. O que não carece de ensinamento, sem dúvida!
    Neste momento a educação passou a Ter um preço demasiado alto e deixou de Ser das crianças, infelizmente... E como se diz muitas vezes "o verdadeiro cego é aquele que não quer olhar"... e sabemos que esses têm na íris apenas cifrões.

    Enquanto aqui estive na sua companhia fui tomando um chazinho (que desde já lhe ofereço :))!

    Obrigada, por partilhar estes temas tão pertinentes!

    Beijinhos e boa noite!

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  6. Oi, querida JB...

    Tudo que diz respeito à educação nos toca, sensivelmente.Infelizmente , aos poderosos não convém enxergar ...

    Adorei o chá, porque me ternsportei para o inverno daí e fugi dos 42 graus que fez aqui, hoje.(rsrsrsr)

    Muitos beijos.

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