Outono.
Segundo o dicionário, outono não é apenas a estação dourada do ano, mas a idade em que se deixa de ser jovem. Willie estava quase com 60 e eu percorria com passo ainda firme a década dos 50, mas minha juventude acabou junto com você, Paula, no corredor dos passos perdidos daquele hospital madrileno. Senti a maturidade como uma viagem para dentro e o começo de uma nova forma de liberdade: podia usar sapatos confortáveis e já não tinha que fazer dieta nem agradar a meio mundo, só àqueles que realmente me importam. Antes tinha as antenas sempre prontas para captar a energia masculina no ar; depois dos 50 as antenas enferrujaram e agora só Willie me atrai. Bem, Antonio Banderas também, mas isso é puramente teórico. Willie e eu tivemos o corpo e a mente mudados. A memória prodigiosa dele começou a dar uns tropeços, já não conseguia lembrar os números de telefone de todos os seus amigos e conhecidos. Suas costas e joelhos enrijeceram, suas alergias pioraram, e me acostumei a ouvi-lo pigarrear a todo instante como uma locomotiva velha. Por sua vez, ele se resignou às minhas peculiaridades: os problemas emocionais me provocam cólicas e dor de cabeça, não posso ver filmes sanguinários, não gosto de reuniões sociais, devoro chocolate às escondidas, me irrito com facilidade e torro dinheiro como se crescesse em árvores.
Neste outono da vida, por fim, nos conhecemos e nos aceitamos inteiramente; nossa relação enriqueceu. Estarmos juntos nos parece tão natural como respirar, e a paixão sexual cedeu lugar a encontros mais tranquilos e ternos. Nada de castidade. Nós nos apegamos, já não queremos nos separar, mas isso não significa que não tenhamos algumas brigas; nunca largo minha espada, por via das dúvidas.
Isabel Allende in A Soma dos Dias
Não sei se o amor amadurece e se enquadra no que somos ou...nós amadurecemos e nos enquadramos no que se chama amor.Quem lê Isabel e conhece sua consciência política admira-se da placidez e da leveza com que ela criou A Soma dos Dias. Em verdade, depois de ler "Paula", no qual, em um exercício de estoicismo, ela entregou aos poucos a filha jovem a uma doença implacável , tornei-me sua admiradora inconteste pela superação , pelo menos , aparente.
Lindo excerto!
ResponderExcluirTalvez o próprio amor mesmo se torne outono... Lindo poder ter uma expectatica de um amor maduro, tranquilo e briguento vez ou outra!!! rss
Bjs e bom dia!
Gizelda,
ResponderExcluirTalvez devido a ideias feitas, habituámo-nos a ver o amor numa perspectiva de eternos jovens. O cinema pouco fala da subtileza das coisas do amor, almejadas com o passar dos dias, pois isso não faz bilheteiras. Os próprios livros, mais libertos duma pressão imediata, não são imunes à lei da oferta e da procura. Mas há todo um percurso na descoberta da cumplicidade, percurso esse que tem a ver com o acesso à sabedoria. E esse é um campo restrito. Que vende pouco, obviamente.
Chegado a este ponto, apetece discorrer sobre a efemeridade das relações que se vive actualmente, sem tempo para a constante (re)descoberta do outro. Mas há-de haver nova oportunidade, que o Desassossego prima por mexer em todas as feridas abertas.
Beijo :)
Querida Van...
ResponderExcluirAcho que são poucos os que conseguem, mas...se chegam lá , esse apego é segurança emocional( se é que isso existe).
Uma coisa é certa, o amor na juventude é arroubo, aventura,extase, paixão e muita ansiedade, inquietação, desconfiança, dor...
Aff...quem sou eu para tentar descrever o amor? Mas, concordo com você, o amor descrito no texto é lindo.
Sem dúvida, AC...
ResponderExcluirO amor cantado pela mídia , em geral, é jovem e fogoso.Seria preciso que as pessoas lessem " O amor no tempo do cólera" de Garcia Marquez, para ter noção do que é Amor ( com maiúscula)construído durante uma vida inteira.
Beijo.
querida Gizelda,
ResponderExcluireu sou uma admiradora da Isabel Allende desde que publicou "A casa dos espíritos". o seu realismo mágico sempre me atraíu.Claro que a doença e a morte de Paula exerceram sobre ela um efeito apaziguador na forma como passou a encarar o quotidiano.daí o viver este amor maduro com o seu Willie.
beijo
Em@ ...
ResponderExcluireu também sou admiradora dela por muitas obras, a começar pela Casa dos Espíritos.
Acho que a morte da Paula tirou-lhe o encantamento de viver em sociedade e carregou-a definitivamente para a ficção entremeada de mágoa.
Nesse texto aí acima, ainda que pese a beleza dele, há um tom conformista muito triste.
Beijo, querida.
Olá Gizelda!
ResponderExcluirGosto de Isabel Allende. Li uma boa parte da sua obra, mas "A Soma dos Dias" ainda não. Obrigada por ter trazido este excerto que me vai obrigar a procurar o livro mais depressa.
Obrigada também pela generosidade das suas palavras nas minhas "searas".
Um beijo
Oi, Lídia...
ResponderExcluirBom dia! Eu é que preciso agradecer os belos poemas com que vc iluminou a blogosfera em 2010.
E também pela sua presença no Desassossego.
beijos