domingo, 5 de dezembro de 2010

Drummond ,um alumbramento.

NOITE
Há tantas coisas germinando na noite, que nem sei como enumerá-las. À noite nascem as revoluções tanto as que vão triunfar como as que só se realizam em pensamento, e são quase todas. Os revolucionários viram-se, inquietos, na cama. E também os que se converterão, pela manhã, a religiões novas. E os amorosos. Análises emocionais levadas ao extremo da tortura arrastam-se pela horas lentas da noite. Como a noite é rica! A noite é o tempo de não dormir; é o de velar e procurar; de criar mundos.

Demétrio quis prolongar a noite obturando todas as frestas do quarto, para que não entrasse a luz. Luz não entrou. Demétrio gozou da noite plena, continuada, e todos os pensamentos lhe floresciam. Construiu sistemas filosóficos. A escuridão era propícia a teorias políticas. Nenhum crítico foi mais perspicaz do que Demétrio, na literatura e nas artes. Aquela noite era fantástica. Demétrio quis experimentar as sensações de horror, êxtase, humilhação, glória, poder e morte. Morreu, mesmo no escuro. Tendo sentido a morte em seu interior físico, não pôde mais tirá-la de si. É o único morto, conscientemente morto, de que já ouvi falar nesta vida. A noite é fantástica.

Contos Plausíveis, (1992): Poesia e Prosa, Rio de Janeiro: Aguilar, pg. 1240´
Carlos Drummond de Andrade


O SOBREVIVENTE
Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.
Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.

Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.
Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta
muito para atingirmos um nível razoável de
cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.

Os homens não melhoram
e matam-se como percevejos.
Os percevejos heróicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.
(Desconfio que escrevi um poema.)


Drummond por ele mesmo:
— A crônica eu faço profissionalmente, porque preciso ganhar dinheiro. O jornal me paga, então eu debulho aquilo como uma coisa até meio mecânica. Uma vez ou outra é que me sinto assim com mais prazer; fora disso, faço aquilo por obrigação. Não é uma obrigação tediosa porque procuro fazer corretamente, para não chatear demais o leitor. Mas sinto que às vezes chateia, porque aparecem reações. Um sujeito me escreveu de São Paulo, sem se identificar, dizendo: “Pára de escrever ‘O avesso das coisas’, você está muito chato!”. Eu recebo isso com humildade, é um direito do leitor, que comprou o jornal e não gostou daquilo. Já o professor Idel Becker, que é autor de um dicionário espanhol–português, ficou entusiasmado, mandou os recortes pra um amigo latino-americano, ele achou as máximas formidáveis, melhores que as de Ramón Gómez de la Serna. Só que Ramón Gómez de la Serna não tem boas máximas, ser melhor do que ele não é grande coisa, não… Mas eu escrevo prosa por obrigação. Meu tesão, mesmo, é a poesia.


In Drummond: a lição do poeta. Teresina, Corisco, 2002:

Foi acidental...Passeando pela Net ,encontrei alguns textos de Drummond que não são usuais na coletânea  que todos conhecem. Não são menores , nem melhores que os demais. São Drummond, um universo poético em prosa e verso que dispensa  apresentação. São apenas "escondidos", porque não divulgados.
Poderia ter publicado um e seguido adiante, afinal há um acervo literário riquíssimo a ser desvendado.Mas...não consegui.Quanto mais enveredo pelos caminhos de Drummond, mais quero permanecer ali.Um homem tímido,doce,APARENTEMENTE insignificante,um gigante em sensibilidade e talento para escrever.Ele se foi, sem nunca ter ido.


Ele escreveu prosa para ganhar dinheiro, e poesia por tesão. Essa é a opinião DELE...e a sua?

8 comentários:

  1. Gizelda,

    É um doce fascinio te ler!!!


    Beijos!
    AL

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  2. Olá Gizelda!

    Drummond é realmente fascinante! Toca a alma muito fácil. Por coincidencia, citei uma de suas poesias em meu mais recente post.

    Adorei os três textos deles e vou citar os pontos que mais me tocaram:

    Só que Ramón Gómez de la Serna não tem boas máximas, ser melhor do que ele não é grande coisa, não… Mas eu escrevo prosa por obrigação. Meu tesão, mesmo, é a poesia.

    Como a noite é rica! A noite é o tempo de não dormir; é o de velar e procurar; de criar mundos.

    Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
    E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.
    (Desconfio que escrevi um poema.)

    Deixou-me a sonhar... sempre em tempos melhores...

    E vamos confiar no SONHO! :)

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  3. Al...

    Depois da gentileza do comentário, só posso agradecer pela luz.

    Beijo.

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  4. Você tem razão, Paula...

    Vamos confiar na vida, mas...também no sonho.

    Drummond sabe ser ácido, doce,crítico, hermético, enfim, tudo o que alguém espera de um grande autor.Do que você escolheu, fico com o terceiro excerto.

    Beijo, querida.
    Obrigada.

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  5. Gizelda,
    Não me vou alongar muito, pois estou muito longe de dominar a obra de Drummond.
    A sua poesia é, de facto, aquilo que mais desperta calor em mim. Mas, curiosamente, conheci-o através da crónica, pois durante muitos anos o jornal aqui da terra, o Jornal do Fundão, publicou religiosamente as suas crónicas.
    Ainda estou a conhecê-lo, e quanto mais conheço mais gosto.

    Beijo :)

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  6. Gizelda,

    Também eu sempre gostei da noite, poderia dizer que durante muitos anos vivi a noite (como o dia era passado na escola, só sobrava a noite para... estudar, estudar e estudar, por vezes, dançar, sair... e também gritar, rir, chorar...
    Acho que a noite encerra mistérios, enigmas que nos prendem/libertam o imaginário ... e como gosto da lua e dos segredos que sabe guardar!...
    Depois as estrelas, em noites de céu limpo... como gosto de as olhar!
    Quanto a Drummond, não saberia comentar este "gigante em sensibilidade e talento". Apenas digo que tenho lido pela blogosfera muitos dos seus textos e tenho gostado imenso! Normalmente é assim, no ser "APARENTEMENTE insignificante" brilha a verdadeira luz, que ilumina a Humanidade, desde que não fechemos os olhos...

    Mais uma vez, é noite e aqui passei um bom momento dela (seu), com ela (consigo)!:)

    Beijinhosss

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  7. Querido AC...

    Tenho certeza de que você gostará muito da poesia de Drummond. Alguém com seu talento irá ver nele muito mais do que eu, é apenas questão de oportunidade.

    De qualquer maneira, sempre que voc~e passa por aqui fico muito feliz.

    Obrigada. beijos.

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  8. Nem tem dúvida,JB, que seu comentário é de uma poetisa...

    Também gosto da noite, desde que esteja aconchegada em algum lugar que me proteja.Adoro noites estreladas e lua cheia ...vistas pela janela. A noite "lá fora" me amedronta um pouco, assim como barulho de ventania.
    deve haver um motivo, mas não sei qual é.

    De qualquer maneira, há muito Drummond e , aos pouquinhos vou buscá-lo para colocar aqui.

    beijos, querida.

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