segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A gente se acostuma para não sofrer. E sofre.



Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma a acender cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar o café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma à poluição.
Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias de água potável.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.

Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se o trabalho está duro a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito.

A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que gasta de tanto se acostumar, e se perde de si mesma.


Marina Colassanti

Replay.

Acomodar-se,calar-se,poupar-se, consolar-se,preservar-se,esquecer-se...verbos que sangram, mas com os quais a gente se ACOSTUMA, porque estamos perdendo a capacidade de sonhar e realizar sonhos.

Como esse texto é triste!Como a nossa vida é triste!

11 comentários:

  1. Gizelda,

    Vim dizer-lhe que estou a tentar regressar... após momentos difíceis...
    Vim dizer-lhe que agradeço a sua força e apoio que deixou lá no nosso cantinho azul...
    Vim dizer-lhe que a vida nos prega com cada partida... e não há volta a dar iremos sempre sofrer
    Vim dizer-lhe OBRIGADA!

    Beijinhos!

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  2. Apego-me a Drummond.... " como é livre a navegação se é proibido fazer barcos?" e acho que a gente não se acostuma nunca, por isso a tristeza férrea, a dor dilacerando, a vida esvaindo-se .... Que droga...
    mil beijos!

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  3. Querida JB...

    Somos diante da vida a força que temos para lutar contra e a favor de tudo que nos atinge.

    Desconheço o porquê de sua dor, mas aqui no Desassossego sempre haverá um ombro onde você poderá se recostar,um abraço profundo de aconchego , uma porta aberta para você chegar.

    Não há noite eterna, o sol logo há de voltar.

    Beijo

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  4. Querida Thaís...

    Quando concordamos com um cotidiano medíocre, é porque já nos acostumamos a ele.Isso, no mínimo, é doloroso.

    Ando muito introspectiva,acomodada, e não gosto nada do que tenho visto dentro de mim.

    Mesmo quando dói quero ser tumulto.

    beijooooo.

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  5. Querida Gi, realmente. Você tem razão. A sorte é que você ainda é tumulto.
    Eu, covardemente, ainda tento ,de todas as maneiras, achar na mesmicie a lógica ; dar a ela a minha alma, julgando-me louca. Serei eu capaz, algum dia, de sair disso? Terei desassossego suficiente?
    Suas palavras vão debruçando-se sobre as coisas, quando elas já estão bem resolvidas em seu íntimo. Deus lhe traga força, porque na intensidade com que fala, já imagino mudanças de ventos, das mais ruidosas...é, vida...
    beijos

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  6. Um texto profundo e que nos leva
    a profundas reflexões... Obrigada
    amiga, por compartilhar!
    Carinhos meus a ti, viu? Bjsss

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  7. Gizelda.
    Parabéns por esta postagem.Este texto tem tudo aquilo que pode tornar um vida num "mero ver passar os comboios (trens)"

    beijo no Coração

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  8. Gizelda,
    Mais uma vez um tema bem escolhido, como é seu apanágio.
    Acerca o que nos propõe para reflexão direi apenas, à laia de conclusão, que, na generalidade, o ser humano tudo faz para ter cada vez mais e, a determinada altura - há sempre, mais tarde ou mais cedo, um ajuste de contas com a nossa consciência - apercebe-se que gastou o seu crédito de vida naquilo que não era essencial.

    Beijo :)

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  9. Querida Em@...

    Muito bom tê-la aqui, ainda que seja para comentar um texto "doloroso".Sim ,é isso,esse texto mexe com o nosso cotidiano, porque , talvez, por comodismo a gente aceita tudo sem questionar.

    E torna-se um hábito, transforma-se em dias, semanas, meses...vida afora.

    Esse texto me incomoda, deveras.

    Beijos.

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  10. Um crédito de vida mal gasto...eu não saberia expressar melhor, meu querido AC.

    Obrigada por seu comentário sempre tão preciso e oportuno.

    Beijo

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  11. Oi, Flor...

    Desejo que essa reflexão produza bons frutos. Que a gente saia da mesmice, do acomodamento e consiga VIVER com plenitude.

    Afinal, nunca é tarde.

    beijo, querida.

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