domingo, 4 de abril de 2010

A Ressurreição


Excerto
(...)
É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa — voltar a ser crianças! Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo.


Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre.

Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser.

Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão — sofrimentos cujas causas ignoramos.Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.

Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: PUF!! — e ela aparece como outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.

Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro.
"Morre e transforma-te!" — dizia Goethe.

Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas, descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar.

Meu amigo William, extraordinário professor pesquisador da Unicamp, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia, as explicações científicas não valem.

Por exemplo: em Minas "piruá" é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: "Fiquei piruá!" Mas acho que o poder metafórico dos piruás é maior.

Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem.

Ignoram o dito de Jesus: "Quem preservar a sua vida perdê-la-á".A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo a panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.

Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira...

Nunca imaginei que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu.


Rubem Alves ( perfeito...como sempre.)

6 comentários:

  1. Olá Gizelda!
    Primeiramente, Feliz Páscoa!!!

    Não sei se lembra de mim (quase certeza que não)... mas eu jamais me esqueceria daquela velha professora (não tão velha assim), que como uma avó, contava as mais belas histórias para seus netinhos.

    E novamente a encontrei, contando histórias mais belas ainda, dum modo mais moderno, digital... mas que ainda assim continuam tocando a alma!
    Nos incentivando a não ser pipocas que se recusam a estourar....

    Beijos!
    Deus a abençoe muito!

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  2. Belissimo texto, Gi! Dizem que as pessoas pelo amor ou pela dor. Eu acredito mais na segunda opção. Como diria uma música do U2: "Sempre há dor antes de uma criação nascer." Então não só as mudanças, mas as belas coisas acabam passando pela dor antes.
    Essa é mais uma das belas e sutis lições que a vida nos ensina.

    Um beijão, querida e eterna mestra!

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  3. lindo texto..total o que estou passando...o seu desassossego sempre combina com o meu!! que venha o fogo, sempre! que bom que estamos no mesmo saco de milho de pipoca...e vamos ser as pipocas que vão pular mais alto!!! hehe...sabe, sempre penso: como é bom poder ter você por perto, pelo menos por aqui!

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  4. Oi, Marquinhos...

    Pois é , a "velha professora", mais velha agora (rs) continua insistindo para que grandes obras e respectivos autores sejam conhecidos.
    Acredite, aos pouquinhos estou chegando lá.

    Bjs.

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  5. Nossa, Gui, eterna não...

    Transitória, aprenedendo e tentando partilhar o que aprendo, como a sensibilidade e a delicadeza de Rubem Alves, por exemplo.

    Bjs. Fico muito feliz quando vc escreve aqui e no seu blog.

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  6. Oi, Gabi...

    Esse texto é prova definitiva de que a poesia está nos olhos de quem vê, porque jamais vi coisa mais prosaica que pipoca e o assunto rendeu essa bela criação.

    Rubem Alves é especial, porque fala com a maior simplicidade coisas absolutamente fundamentais.
    O melhor disso é que vc é pipoca , não piruá. (rs)
    Bjs.

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