terça-feira, 27 de abril de 2010

Ameixas em calda com chantilly.


A maioria das minhas lembranças não são filmes, nem músicas: são cheiros e sabores.

Não me recordo quando foi que meu pai me prometeu que me levaria a S.Paulo. Pelas minhas contas, hoje, pareceria impossível, porque meu cérebro infantil não conseguia contabilizar a distancia entre o lugarejo em que morávamos e a capital.Mas, se era uma promessa, eu , um dia, iria lá, com certeza.

Quantos anos eu tinha? 10? Não sei.A promessa se cumpriu.Viajamos á noite e chegamos de manhãzinha.Enquanto eu guardava a visão da cidade, absorvendo aquela paisagem inusitada, não sobrava memória para nada mais.

Foi um grande dia...Cinzento, enevoado, e da janelinha do vagão restaurante do trem o que me descortinava era algo muito além das minhas expectativas.

São Paulo me chegou, pela primeira vez, como algo que nunca acabava, poderosa,maior do que cabia na minha imaginação.Tudo era novo e o burburinho de pessoas – de onde vinham tantas ? - me deixava atônita.

Entretanto, a impressão definitiva aconteceu quando fui levada ao “ Restaurante Leão”.Que rua era aquela? Avenida São João...um prédio sisudo, ambiente escuro de mesas com toalhas imaculadamente brancas, tilintar de copos e talheres.

Lembro-me tão bem!Se me pusessem nele , ainda hoje, 50 anos depois, eu seria capaz de parar naquela mesa, bem no meio, encostada numa pilastra quadrada e escura. O cardápio, a escolha por “Tutu à mineira” e então, ela...a sobremesa, irresistível : ameixas em calda com chantilly!

A cada bocado , eu tinha certeza de que não queria que aquilo acabasse. Mas , como tudo, acabou. Meu pai também se acabou... Entretanto, quando me lembro dele em 49 anos convivendo juntos,sinto que esse foi o momento de maior proximidade entre nós dois. Cumplicidade silenciosa e encantada na hora do almoço.

Em minha geladeira nunca faltam ameixas em calda, mesmo que eu não as consuma.Porém aquele gosto nunca mais...

Descobri assim que o que eu sempre busquei não era a sobremesa, mas o sabor da presença do meu pai...Este ficou para sempre, atrelado à imagem de São Paulo, mesmo que eu nunca mais coma ameixas em calda com chantilly...

Gizelda/02/04/2003

Eu e minhas velhas agendas...

Esse texto foi escrito para o meu pai, e publicado pela Revista Época em Agosto de 2009 , no dia dos pais.

3 comentários:

  1. Mais uma página valiosa das suas agendas. Os cheiros e os sabores são sem dúvida uma das maiores riquezas da nossa memória. Através deles somos transportados no tempo e conseguimos reviver lugares e pessoas, ainda que os mesmos não existam mais.

    Também tenho os meus... o cheiro do leite coalhado com açúcar e o sabor das amoras silvestres, colhidas directamente das silvas que me picavam os dedos.

    É tão bom recordar... obrigada!

    Beijinho :)

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  2. Amores silvestres...posso até sentir o gostinho, mas gosto de memórias cada um de nós trás muito mais no coração e do que na boca!

    Beijinho prá vc também, Helga.

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  3. Gizelda

    Postei um enorme comentário, mas foi ao ar...
    Amanhã, se tiver tempo, tento reconstruí-lo.
    Beijinho

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