quinta-feira, 29 de abril de 2010

in O Nome da Rosa.


Os homens de outrora eram grandes e belos (agora são crianças e anões), mas esse fato é apenas um dos muitos que testemunham a desventura de um mundo que vai envelhecendo.
A juventude não quer aprender mais nada, a ciência está em decadência, o mundo inteiro caminha de cabeça para baixo, cegos conduzem outros cegos e os fazem precipitar-se nos abismos, os pássaros se lançam antes de alçar voo, o asno toca lira, os bois dançam. Maria não ama mais a vida contemplativa e Marta não ama mais a vida ativa, Léa é estéril, Raquel tem olhos lúbricos, Catão frequenta os lupanares, Lucrécio vira mulher.
Tudo está desviado do próprio caminho. Sejam dadas graças a Deus por eu naqueles tempos ter adquirido de meu mestre a vontade de aprender e o sentido do caminho reto, que se conserva mesmo quando o atalho é tortuoso.



Umberto Eco - O Nome da Rosa

Livros obrigatórios para entender a vida, eis um deles.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Ameixas em calda com chantilly.


A maioria das minhas lembranças não são filmes, nem músicas: são cheiros e sabores.

Não me recordo quando foi que meu pai me prometeu que me levaria a S.Paulo. Pelas minhas contas, hoje, pareceria impossível, porque meu cérebro infantil não conseguia contabilizar a distancia entre o lugarejo em que morávamos e a capital.Mas, se era uma promessa, eu , um dia, iria lá, com certeza.

Quantos anos eu tinha? 10? Não sei.A promessa se cumpriu.Viajamos á noite e chegamos de manhãzinha.Enquanto eu guardava a visão da cidade, absorvendo aquela paisagem inusitada, não sobrava memória para nada mais.

Foi um grande dia...Cinzento, enevoado, e da janelinha do vagão restaurante do trem o que me descortinava era algo muito além das minhas expectativas.

São Paulo me chegou, pela primeira vez, como algo que nunca acabava, poderosa,maior do que cabia na minha imaginação.Tudo era novo e o burburinho de pessoas – de onde vinham tantas ? - me deixava atônita.

Entretanto, a impressão definitiva aconteceu quando fui levada ao “ Restaurante Leão”.Que rua era aquela? Avenida São João...um prédio sisudo, ambiente escuro de mesas com toalhas imaculadamente brancas, tilintar de copos e talheres.

Lembro-me tão bem!Se me pusessem nele , ainda hoje, 50 anos depois, eu seria capaz de parar naquela mesa, bem no meio, encostada numa pilastra quadrada e escura. O cardápio, a escolha por “Tutu à mineira” e então, ela...a sobremesa, irresistível : ameixas em calda com chantilly!

A cada bocado , eu tinha certeza de que não queria que aquilo acabasse. Mas , como tudo, acabou. Meu pai também se acabou... Entretanto, quando me lembro dele em 49 anos convivendo juntos,sinto que esse foi o momento de maior proximidade entre nós dois. Cumplicidade silenciosa e encantada na hora do almoço.

Em minha geladeira nunca faltam ameixas em calda, mesmo que eu não as consuma.Porém aquele gosto nunca mais...

Descobri assim que o que eu sempre busquei não era a sobremesa, mas o sabor da presença do meu pai...Este ficou para sempre, atrelado à imagem de São Paulo, mesmo que eu nunca mais coma ameixas em calda com chantilly...

Gizelda/02/04/2003

Eu e minhas velhas agendas...

Esse texto foi escrito para o meu pai, e publicado pela Revista Época em Agosto de 2009 , no dia dos pais.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Livros devoradores



Saudade de devorar um livro e de ser devorada por ele.

De não conseguir largar o coitado. Ficar pensando nele. Sonhar com os personagens. Sentir a falta deles na rua quando o livro está em casa.

A questão aqui não é voltar aos clássicos, como se com eles a fome fosse certa. Não é. Há muitos chatos, há muitos maravilhosos.

A questão não é contrapor clássico X contemporâneo como se agora não se escrevesse livros devoradores. Essa visão seria simplista, anacrônica. Se escreve, sim, livros devoradores.

Nem colocar em pauta a experimentação X tradição, medindo as duas forças e qualificando uma em detrimento da outra.

Até porque entre uma e outra dou a mão aos que colocaram a linguagem ao avesso e ainda tentam levá-la a caminhos originais.

A questão é uma certa percepção de que há uma idéia meio formada de que experimentar na linguagem significa abandonar história e personagens.

Quando digo história, digo experiência, vivência, não uma historinha careta com início-meio-fim. Às vezes a experiência de um segundo na vida de alguém, um pensamento, uma descoberta.

O resultado muitas vezes monótono é uma voz falante e vertiginosa que na verdade não tem vertigem nenhuma dentro de si, apenas o movimento que se acha que a vertigem tem. Muito racional.

Quanto mais leio mais concretizo a idéia de que experimentar na linguagem é experimentar os modos de contar a história, os modos de tratar o personagem, tirar dos parâmetros estabelecidos, fazer de outra forma. É a relação original entre os elementos da escrita que faz a narrativa ser única e apaixonante.

A forma é muito importante, mas ela nasce de algum lugar, e, ao meu ver, não é do escritor. Da vontade pessoal do escritor. Ela nasce do imaginário, faz parte deste lugar que é a literatura.

A literatura é um universo próprio. E, por mais que seja praticamente irresistível, sedutor e fascinante, não é o escritor que mora nesse universo, é a escrita.


Claudia Lage in A pequena morte e outras naturezas.

O maravilhoso é constatar que eu me sinto assim sempre,em busca de livros devoradores que me comem a alma e a devolvem melhor do que era.

terça-feira, 20 de abril de 2010

A todos que , sendo águias, são reduzidos a galinhas.



“Era uma vez, um camponês que foi à floresta vizinha, apanhar um pássaro para mantê-lo cativo em sua casa. Conseguiu pegar num filhote de águia. Colocou-o no galinheiro junto com as galinhas. Comia milho e ração própria para galinhas. Embora a águia fosse o rei/a rainha de todos os pássaros.
Depois de cinco anos este homem recebeu em sua casa a visita de um naturista. Enquanto passeavam pelo jardim, disse o naturista:
- Esse pássaro aí não é uma galinha. É uma águia.
- De facto, disse o camponês. É águia. Mas eu criei-a como galinha. Ela não é mais uma águia. Transformou-se em galinha como as outras, apesar das asas de quase três metros de extensão.
- Não, retrucou o naturalista. Ela é e será sempre uma águia. Pois tem um coração de águia este coração a fará um dia voar às alturas.
- Não, não, insistiu o camponês. Ela virou galinha e jamais voará como águia.
Então decidiram fazer uma prova. O naturalista tomou a águia, ergueu-a bem alto e desafiando-a disse:
- Já que você de facto é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, então abra suas asas e voe!
A águia ficou sentada sobre o braço estendido do naturalista. Olhava distraidamente ao redor. Viu as galinhas lá em baixo, ciscando grãos. E pulou para junto delas.
O camponês comentou:
- Eu lhe disse, ela virou uma simples galinha!
- Não, tornou a insistir o naturalista. Ela é uma águia. E uma águia será sempre uma águia. Vamos experimentar novamente amanhã.
No dia seguinte, o naturalista subiu com a águia no tecto da casa. Sussurrou-lhe:
- Águia, já que você é uma águia, abra suas asas e voe!
Mas quando a águia viu lá em baixo as galinhas, ciscando o chão, pulou e foi para junto delas.
O camponês sorriu e voltou à carga:
- Eu havia-lhe dito, ela virou galinha!
- Não, respondeu firmemente o naturalista. Ela é águia, possuirá sempre um coração de águia. Vamos experimentar ainda uma última vez. Amanhã a farei voar.
No dia seguinte, o naturalista e o camponês levantaram bem cedo. Pegaram a águia, levaram-na para fora da cidade, longe das casas dos homens, no alto de uma montanha. O sol nascente dourava os picos das montanhas.
O naturalista ergueu a águia para o alto e ordenou-lhe:
- Águia, já que você é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, abra suas asas e voe!
A águia olhou ao redor. Tremia como se experimentasse nova vida. Mas não voou. Então o naturalista segurou-a firmemente, bem na direcção do sol, para que seus olhos pudessem se encher da claridade solar e da vastidão do horizonte.
Nesse momento, ela abriu suas potentes asas, grasnou com o típico kau, kau das águias e ergueu-se, soberana, sobre si mesma. E começou a voar, a voar para o alto, a voar cada vez mais alto. Voou… voou… até confundir-se com o azul do firmamento…
(…)

Leonardo Boff – A águia e a galinha (uma metáfora da condição humana)

Ao ver uma galinha e uma águia, você vai ver mais que uma galinha e uma águia. Você vai se confrontar com duas dimensões fundamentais da existência humana. A dimensão do enraizamento, do cotidiano, do prosaico, do limitado: o símbolo da galinha. A dimensão da abertura, do desejo, do poético, do ilimitado: o símbolo da águia. Como equilibrar estes dois pólos? Como impedir que a cultura da homogeneização afogue a águia dentro de nós e nos tolha voar?
Para dar uma resposta convincente a esses desafios, o autor visita a moderna cosmologia, a psicologia profunda, a nova antropologia, a ecologia, a espiritualidade e a mística. O resultado é uma reflexão instigante que provoca entusiasmo na busca da identidade humana através da inclusão das contradições e da superação dos eventuais obstáculos a nível pessoal, social e planetário.

Cada um hospeda dentro de si uma águia. Sente-se portador de um projeto infinito. Quer romper os limites apertados de um arranjo existencial.
Há movimentos na política, na educação e no processo de mundialização que pretendem reduzir-nos a simples galinhas, confinadas aos limites do terreiro. Como vamos dar asas à águia, ganhar altura, integrar também a galinha e sermos heróis de nossa própria saga? Este livro sugere caminhos, mostra uma direção e projeta um sonho
promissor.

Dedico este livro:

– aos sensíveis à dimensão feminina, a águia mais aprisionada e reprimida de
nossa cultura. Sem ela,]ames Aggrey jamais teria contado a história que contou. Eu,
certamente, não teria tido a sensibilidade para guardá-Ia e refleti-Ia no coração. E
vocês não seriam capazes de experienciá-Ia.
– a todos os que, sendo águias, são impedidos de o ser e se vêem reduzidos à condição de galinhas.
– de maneira especial ao povo negro e às nações indígenas, naturalmente portadores da ânsia de ser-águia.

Por: http://hermesgama.files.wordpress.com/2008/09/leonardo-boff-a-aguia-e-a-galinha.pdf .
Extensível :http://www.anped.org.br/concurso/curriculos/20mhdanielarezende/danielarezendemonog.pdf .

Por FREI Leonardo

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Não sei quem sou ou o que sou.




Não sei o que quero ou o que não quero.

Deixei de saber querer, de saber como se quer, de saber as emoções ou os pensamentos com que ordinariamente se conhece que estamos querendo, ou querendo querer.

Não sei quem sou ou o que sou.

Como alguém soterrado sob um muro que se desmoronasse, jazo sob a vacuidade tombada do universo inteiro.

E assim vou, na esteira de mim mesmo, até que a noite entre e um pouco do afago de ser diferente ondule, como uma brisa, pelo começo da minha impaciência de mim."

Texto 184 -Livro do Desassossego -Bernardo Soares (F.P.)

...é por isso que esse blog é Desassossego - alguém consegue descrever melhor alguém com a alma precisando de pouso???!!

quarta-feira, 14 de abril de 2010

De cara lavada.



hoje me desfiz dos meus bens
vendi o sofá cujo tecido desenhei
e a mesa de jantar onde fizemos planos

o quadro que fica atrás do bar
rifei junto com algumas quinquilharias
da época em que nos juntamos

a tevê e o aparelho de som
foram adquiridos pela vizinha
testemunha do quanto erramos

a cama doei para um asilo
sem olhar pra trás e lembrar
do que ali inventamos

aquele cinzeiro de cobre
foi de brinde com os cristais
e as plantas que não regamos

coube tudo num caminhão de mudança
até a dor que não soubemos curar
mas que um dia vamos


Martha Medeiros

segunda-feira, 12 de abril de 2010

A hora do cansaço.


As coisas que amamos
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável no limite
de nosso poder de respirar a eternidade

Pensá-las é pensar que não acabam nunca,
dar-lhes moldura de granito.
De outra maneira se tornam absoluta
numa outra (maior) realidade.

Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nos cansamos,
por um outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.

Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos cada ser e coisa à condição precária
e baixamos o amor ao estado de utilidade.

Do sonho eterno fica esse gozo acre na boca ou na mente,
sei lá, talvez no ar"


Carlos Drummond de Andrade

domingo, 11 de abril de 2010

...e o mundo não nos dá garantia alguma.



Uma pequenina mudança hoje acarreta-nos um amanhã profundamente diferente. São grandes as recompensas para aqueles que optam pelos caminhos duros e difíceis, mas essas recompensas acham-se ocultas pelos anos.

Toda escolha é feita inteiramente às cegas, e o mundo não nos dá garantia alguma. A única maneira de evitar todas as escolhas assustadoras consiste em deixar a sociedade e tornar-se um ermitão, e também isso é uma escolha assustadora. O bom caráter advém de seguirmos nosso supremo senso de retidão, de confiarmos nos ideais sem querer estarmos certos de que darão certo.

Um dos desafios de nossa aventura na terra consiste em nos elevarmos acima de sistemas mortos... guerras, religiões, nações, destruições... recusarmos a fazer parte deles, e em vez disso exprimirmos o que temos de melhor dentro de nós.

Não importa qual seja nossa habilitação ou nosso merecimento, nunca alcançaremos uma vida melhor até conseguirmos imaginá-la para nós próprios e permitir-nos tê-la. Deus sabe que isso é verdade!”


Richard Bach – texto livro: Fugindo do Ninho)

quinta-feira, 8 de abril de 2010

O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo.


Sobre a escrita...


Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina é macio.

Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma idéia. Cada palavra materializa o espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento.

Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é identificável por um extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras que digo - é por esconderem outras palavras.

Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei porque não ouso dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto não é proibido. Mas acontece que eu quero é exatamente me unir a essa palavra proibida. Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca fechada, para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por toda a eternidade. Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que existia uma fruta proibida. As palavras é que me impedem de dizer a verdade.

Simplesmente não há palavras.

O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo. Acho que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal também. Sim, mas é a sorte às vezes.

Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse ao mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranqüilidade ou simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras. Meu livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever. Eu tenho uma falta de assunto essencial. Todo homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de um crepúsculo e pode ser uma aurora.

Simplesmente as palavras do homem.


Clarice Lispector

domingo, 4 de abril de 2010

A Ressurreição


Excerto
(...)
É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa — voltar a ser crianças! Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo.


Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre.

Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser.

Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão — sofrimentos cujas causas ignoramos.Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.

Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: PUF!! — e ela aparece como outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.

Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro.
"Morre e transforma-te!" — dizia Goethe.

Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas, descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar.

Meu amigo William, extraordinário professor pesquisador da Unicamp, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia, as explicações científicas não valem.

Por exemplo: em Minas "piruá" é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: "Fiquei piruá!" Mas acho que o poder metafórico dos piruás é maior.

Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem.

Ignoram o dito de Jesus: "Quem preservar a sua vida perdê-la-á".A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo a panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.

Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira...

Nunca imaginei que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu.


Rubem Alves ( perfeito...como sempre.)

sábado, 3 de abril de 2010