O marinheiro (excerto) Drama estático
PARA LER, RELER, REFLETIR,ADMIRAR, ENFIM, FERNANDO PESSOA NA SUA PLENITUDE GENIAL
Um quarto num castelo antigo, à noite. Em um caixão no centro do quarto circular uma donzela morta é velada por outras três donzelas. A presença da morte é indelével nesse cenário e parece deixar as veladoras desconfortáveis a ponto de logo manifestarem o desejo de uma fuga da realidade.
(...)
PRIMEIRA - Vejo pela janela um navio ao longe. É talvez aquele que vistes...
SEGUNDA - Não, minha irmã; esse que vedes busca sem dúvida um porto qualquer... Não podia ser que aquele que eu vi buscasse qualquer porto...
PRIMEIRA - Por que é que me respondestes?... Pode ser. . Eu não vi navio nenhum pela janela... Desejava ver um e falei-vos dele para não ter pena... Contai-nos agora o que foi que sonhastes à beira-mar...
SEGUNDA - Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha longínqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas passavam por elas... Não vi se alguma vez pousavam... Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia ali... Como ele não tinha meio de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido: pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de país com outras espécies de paisagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem das janelas... Cada hora ele construía em sonho esta falsa pátria, e ele nunca deixava de sonhar, de dia à sombra curta das grandes palmeiras, que se recortava, orlada de bicos, no chão areento e quente; de noite, estendido na praia, de costas e não reparando nas estrelas.
PRIMEIRA - Não ter havido uma árvore que mosqueasse sobre as minhas mãos estendidas a sombra de um sonho como esse!...
TERCEIRA - Deixai-a falar... Não a interrompais... Ela conhece palavras que as sereias lhe ensinaram... Adormeço para a poder escutar... Dizei, minha irmã, dizei... Meu coração dói-me de não ter sido vós quando sonháveis à beira-mar...
SEGUNDA - Durante anos e anos, dia a dia, o marinheiro erguia num sonho contínuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha uma pedra de sonho nesse edifício impossível... Breve ele ia tendo um país que já tantas vezes havia percorrido. Milhares de horas lembrava-se já de ter passado ao longo de suas costas. Sabia de que cor soíam ser os crepúsculos numa baía do norte, e como era suave entrar, noite alta, e com a alma recostada no murmúrio da água que o navio abria, num grande porto do sul onde ele passara outrora, feliz talvez, das suas mocidades a suposta...
(uma pausa)
PRIMEIRA - Minha irmã, por que é que vos calais?
SEGUNDA - Não se deve falar demasiado... A vida espreita-nos sempre... Toda a hora é materna para os sonhos, mas é preciso não o saber... Quando falo de mais começo a separar-me de mim e a ouvir-me falar. Isso faz com que me compadeça de mim própria e sinta demasiadamente o coração. Tenho então uma vontade lacrimosa de o ter nos braços para o poder embalar como a um filho... Vede: o horizonte empalideceu... O dia não pode já tardar... Será preciso que eu vos fale ainda mais do meu sonho?
PRIMEIRA - Contai sempre, minha irmã, contai sempre... Não pareis de contar, nem repareis em que dias raiam... O dia nunca raia para quem encosta a cabeça no seio das horas sonhadas... Não torçais as mãos. Isso faz um ruído como o de uma serpente furtiva... Falai-nos muito mais do vosso sonho. Ele é tão verdadeiro que não tem sentido nenhum. Só pensar em ouvir-vos me toca música na alma...
SEGUNDA -- Sim, falar-vos-ei mais dele. Mesmo eu preciso de vo-lo contar. À medida que o vou contando, é a mim também que o conto... São três a escutar... (De repente, olhando para o caixão, e estremecendo). Três não... Não sei... Não sei quantas...
TERCEIRA - Não faleis assim... Contai depressa, contai outra vez... Não faleis em quantos podem ouvir... Nós nunca sabemos quantas coisas realmente vivem e vêem e escutam... Voltai ao vosso sonho... O marinheiro. O que sonhava o marinheiro?
SEGUNDA (mais baixo, numa voz muito lenta) - Ao princípio ele criou as paisagens, depois criou as cidades; criou depois as ruas e as travessas, uma a uma, cinzelando-as na matéria da sua alma - uma a uma as ruas, bairro a bairro, até às muralhas dos cais de onde ele criou depois os portos... Uma a uma as ruas, e a gente que as percorria e que olhava sobre elas das janelas... Passou a conhecer certa gente, como quem a reconhece apenas... Ia-lhes conhecendo as vidas passadas e as conversas, e tudo isto era como quem sonha apenas paisagens e as vai vendo... Depois viajava, recordando, através do país que criara... E assim foi construindo o seu passado... Breve tinha uma outra vida anterior... Tinha já, nessa nova pátria, um lugar onde nascera, os lugares onde passara a juventude, os portos onde embarcara... Ia tendo tido os companheiros da infância e depois os amigos e inimigos da sua idade viril... Tudo era diferente de como ele o tivera - nem o país, nem a gente, nem o seu passado próprio se pareciam com o que haviam sido... Exigis que eu continue?... Causa-me tanta pena falar disto!... Agora, porque vos falo disto, aprazia-me mais estar-vos falando de outros sonhos...
TERCEIRA - Continuai, ainda que não saibais porquê... Quanto mais vos ouço, mais me não pertenço...
PRIMEIRA - Será bom realmente que continueis? Deve qualquer história ter fim? Em todo o caso falai... Importa tão pouco o que dizemos ou não dizemos... Velamos as horas que passam... O nosso mister é inútil como a Vida...
SEGUNDA - Um dia, que chovera muito, e o horizonte estava mais incerto, o marinheiro cansou-se de sonhar... Quis então recordar a sua pátria verdadeira..., mas viu que não se lembrava de nada, que ela não existia para ele... Meninice de que se lembrasse, era a na sua pátria de sonho; adolescência que recordasse, era aquela que se criara... Toda a sua vida tinha sido a sua vida que sonhara... E ele viu que não podia ser que outra vida tivesse existido... Se ele nem de uma rua, nem de uma figura, nem de um gesto materno se lembrava... E da vida que lhe parecia ter sonhado, tudo era real e tinha sido... Nem sequer podia sonhar outro passado, conceber que tivesse tido outro, como todos, um momento, podem crer... Ó minhas irmãs, minhas irmãs... Há qualquer coisa, que não sei o que é, que vos não disse... Qualquer coisa que explicaria isto tudo... A minha alma esfria-me... Mal sei se tenho estado a falar... Falai-me, gritai-me, para que eu acorde, para que eu saiba que estou aqui ante vós e que há coisas que são apenas sonhos...
PRIMEIRA (numa voz muito baixa) - Não sei que vos diga... Não ouso olhar para as cousas... Esse sonho como continua?...
SEGUNDA - Não sei como era o resto.... Mal sei como era o resto... Por que haverá mais?...
PRIMEIRA - E o que aconteceu depois?
SEGUNDA - Depois? Depois de quê? Depois é alguma cousa?... Veio um dia um barco... Veio um dia um barco... - Sim sim... só podia ter sido assim... - Veio um dia um barco, e passou por essa ilha, e não estava lá o marinheiro
TERCEIRA - Talvez tivesse regressado à pátria... Mas a qual?
PRIMEIRA - Sim, a qual? E o que teriam feito ao marinheiro? Sabê-lo-ia alguém?
SEGUNDA - Por que é que mo perguntais? Há resposta para alguma coisa?
(uma pausa)
TERCEIRA - Será absolutamente necessário, mesmo dentro do vosso sonho, que tenha havido esse marinheiro e essa ilha?
SEGUNDA - Não, minha irmã; nada é absolutamente necessário.
PRIMEIRA - Ao menos, como acabou o sonho?
SEGUNDA - Não acabou... Não sei... Nenhum sonho acaba... Sei eu ao certo se o não continuo sonhando, se o não sonho sem o saber, se o sonhá-lo não é esta coisa vaga a que eu chamo a minha vida?..
...
Os grifos são nossos.
A passagem do marinheiro, um sonho da segunda veladora, único que, apresentado como sonho, e não como passado, é questionado quanto a possibilidade de ter sido real: “Porque não será a única coisa real nisto tudo o marinheiro, e nós e tudo isto aqui apenas um sonho dele?” (57). O marinheiro narrado, náufrago que cria sua própria pátria em sonho, pode ser considerado um ponto de encontro entre as veladoras e sua consciência ficcional, uma vez que, após o relato, o drama de consciência se intensifica. Na narrativa do marinheiro, a recordação aparece como um exercício de construção do passado e de vivência da criação, capaz de recriar, e não de lembrar: “Depois viajava, recordado, através do país que criara, e assim foi construindo seu passado...”
Cansada de sonhar...qual é a minha vida?
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