sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Meu Natal 2013 tem nome : Saudades.



Todos os anos eu espero pacientemente ( ou ansiosa? ...) o Natal. Passei a vida amealhando objetos, dezenas de papais-noéis, castiçais, velas, flores, talheres, pratos, enfim...tudo verde e vermelho, brilhante e iluminado. Transformo minha casa em uma “toca do Papai Noel”. E adoro viver nela em um mês de sonho.
Mas, nesse ano, mesmo com a casa enfeitada, uma sensação estranha e vazia fez-me sentir uma pária. Onde andaria o Natal? A casa pronta , mas eu não . O que acontecera?
No entanto, a vida surpreende a cada curva- e são muitas.

De repente, deparo-me aqui com uma foto que não sei bem se saltou da tela ou do meu coração : a igreja iluminada da aldeia em que nasci e onde estive há dois anos, pela última vez, para depositar os restos mortais da minha mãe.
E na imagem colorida e silenciosa desfilaram vultos dos que me amavam e amei sempre. Infância e adolescência , época de sonhos em que se acredita que temos que correr atrás da felicidade , porque " ela está onde a pomos e nunca a pomos onde nós estamos".

Olho a foto entre lágrimas e vou muito além: vejo nela as pessoas que não mais lá estão, mas eu os vejo, sim, com cada caraterística, o sorriso, ouço-lhes o timbre de voz. Tão nítido agora, o que estava esmaecido na minha memória.. Poderia mencioná-los um a um, mas não consigo registrar em ordem as lembranças que me vêm aos borbotões. Tantos e tão próximos.

Em nosso Natal não havia ceia, comilança e bebedeira não eram sinônimo dessa festa: havia uma lindíssima missa do galo, onde íamos vestidos de pastorinhas entregar frutas ao menino Jesus. Depois da missa , em casa, o famoso e esperado bolo xadrez da minha mãe, com um cálice de vinho Palmeiras Rosé, que nos era proibido.
Íamos dormir na expectativa dos presentes que eram modestos, os que cabiam no bolso do meu pai. Parcos presentes e ricas presenças. 


Jamais me esqueci de um livro ganho aos 10 anos “ A Rainha da Neve “ de Andersen, cuja capa era inacreditavelmente linda. Aqui nasceu meu amor pelos livros que cresce cada vez mais. Um Natal permanente.
E então ,o almoço da família : éramos tantos que a mesa crescia e crescia, mas nela sempre cabiam os amigos que iam aparecendo e a alegria ia se multiplicando.

Sim, Felizes, Felizes Natais! E foram muitos .

No meu mundo particular, aquele que é só meu,no qual ninguém entra, onde as companhias são personagens de ficção e as histórias têm vida, sempre há um texto que exprime o que eu sinto e quero dizer. Agora é Fernando Pessoa :

O sino da minha aldeia

O sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro de minha alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
 

Fernando Pessoa

Finalmente, felizmente, o Natal 2013 chegou à minha vida e ao meu coração!

19/12/2013 -8h43min.

Silvana Barradas Tizziotti e Sônia Ap Godoy...muito obrigada!

Feliz Natal, Sales Oliveira!

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

O primeiro dia.



O que o acordou foi o silêncio. Primeiro, o do despertador que não tocou à hora
combinada todas as manhãs. Depois, o de outra respiração, que devia ouvir e não ouvia.
Estendeu a mão para o quente do outro lado da cama e encontrou o frio. Apalpou e
encontrou vazio. Então, sim, despertou completamente.
Um prenúncio de tragédia desceu por ele abaixo, como um arrepio. O que acabara de
se lembrar era que não acordara só por acaso ou por acidente: aquele era o primeiro dia, a
primeira manhã da sua separação - o primeiro de quantos dias? - em que acordaria sempre
sozinho, com metade da cama fria, metade do ar por respirar.

Era Abril, sábado e chovia. Sentado na cama, lembrou-se das instruções que dera a si
mesmo para aquela manhã: fazer peito forte à desgraça. Nada é inteiramente bom, mas
nada é inteiramente mau - pensou. Posso ler à noite até me apetecer sem me mandarem
apagar a luz, posso dormir atravessado na cama, posso-me livrar daquele rol de cobertores
com o qual ela me esmagava, fizesse sol, chuva ou frio, porque as mulheres são mais
friorentas que eu sei lá, posso usar a casa-de-banho todo o tempo que quiser, posso
espalhar as roupas, os jornais e os papéis pelo quarto à vontade e até - oh, suprema
liberdade - posso fumar à noite na cama.

Levantou-se para se olhar ao espelho da casa-de-banho. Sorriu à sua própria imagem,
ensaiou-a calma, tranquila, confiante. Imaginou mentalmente o texto que poderia redigir
sobre si mesmo para a secção de anúncios pessoais do jornal: «Divorciado, 40 anos, bom
aspecto, licenciado, rendimento médio-alto, casa própria e espaçosa, desportos, ar livre,
terno e com sentido de humor». Mulheres compatíveis? Deus do céu, dezenas delas! Sou
um partidão - concluiu para o espelho.

Calmo, tranquilo e confiante, passou aos outros aposentos da casa para dar uma vista
de olhos ao resultado da partilha dos móveis, aliás feita sem grandes problemas, como é
próprio de gente civilizada. Por alto, entre o living, o hall, o escritório, a cozinha, o quarto
de casal e as duas casas-de-banho, estimou nuns setecentos contos o preço da reposição
das coisas em falta. Mais metade dos livros e dos CD's, quase todas as fotografias dos
últimos dez anos das suas vidas e algumas outras coisas cujo verdadeiro valor era o vazio
que encontrava se olhasse para o lugar onde elas costumavam estar.

«Até agora vou-me aguentando», considerou ele. Entre perdas e danos e a certeza
adquirida de que nada dura para sempre, restavam-lhe várias razões e objectos e
sentimentos para olhar em frente sem um sobressalto.

Enquanto fazia, com um prazer insuspeitado, o seu primeiro pequeno-almoço de
homem só, passou à fase seguinte do que chamara o «plano de sobrevivência»: desfolhar a
agenda de telefones em busca de amigos igualmente sós com quem fazer «programas de
homens» ou de antigas namoradas, que se tinham separado ultimamente ou outras que
achava acessíveis mas que nunca tivera a coragem e a oportunidade de aproximar. A
primeira desilusão foi com os amigos: de A a Z, realizou que só tinha dois amigos sem
mulher e, para agravar as coisas, com nenhum deles lhe apetecia sair e entrar numa de
«anda daí e mostra-me lá como é o mundo lá fora».

 Quanto às mulheres que julgava sortables, sempre eram cinco, mas o resultado foi quase patético. Duas já não moravam naqueles telefones, outra tinha-se casado entretanto, e o marido estava ao lado a ouvir a conversa, o que o deixou completamente idiota a inventar pretextos absurdos para otelefonema. Do número da quarta atendeu uma criancinha e ele desligou e foi só na última da lista que finalmente teve sorte: sim, a Joana morava ali, era ela própria ao telefone. Não, não estava casada nem, pelo que, esforçadamente, percebeu, tinha namorado. Sim, ok, por que não irem jantar logo, para falar do projecto que ele tinha e onde ela poderia caber. «Ah,a tua mulher não vem? Separados? Não, não sabia. Recente? Pois, essas coisas são tão chatas, mas ainda bem que reages e tens projectos novos e tudo! Ok, às oito e meia vensme buscar». Ele teria desligado quase em êxtase, não fosse a frase final dela, à despedida, que o deixou verdadeiramente abalado. «Olha, vais-me achar uma grande diferença. A idade não perdoa a ninguém, não é?»

Enfim, sempre era um date. O primeiro, certamente, de uma longa lista. O que
interessa se for um flop - achas que ias encontrar uma mulher super logo ao virar da
esquina? É preciso é entrar no circuito, pá, começar a sair, a ser visto, fazer com que as
pessoas saibam que estás disponível. O resto vem por arrasto.

Passeou-se pela casa, pensativo, fumando o primeiro cigarro do dia. De repente
lembrou-se que ainda não tinha visto o quarto do filho. A cama e a escrivaninha tinham
ido, assim como praticamente todos os brinquedos. Sobrava um boneco de peluche, três
ou quatro carrinhos semi-partidos, uns legos e um quadro para fazer desenhos, com os
respectivos marcadores, pousados, à espera de uma mão de criança. A mesa-de-cabeceira
ficara e parecia absurda no meio do quarto, sem a cama nem os outros móveis, com um
retrato dele e do filho numa praia do Algarve, sorrindo, abraçados um ao outro. 

Sem saber porquê, sentou-se no chão encostado à parede, muito devagar, a olhar para a fotografia. Duas grossas lágrimas escorregaram-lhe pela cara abaixo e caíram na madeira do chão, entre as pernas. Foi só então que ele percebeu que estava a chorar.

Miguel Sousa Tavares.