terça-feira, 25 de junho de 2013

Existe algo mais sufocante do que a cegueira moral?



"...a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam".

... se antes de cada ato nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar. Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala" (EC: 84).
O medo, o comodismo e o fatalismo levam uma pessoa a se habituar a tudo, "...sobretudo se deixou de ser pessoa..." (EC: 218).

"O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos..." (EC: 131)


Saramago : polêmico e arrasador, como sempre.


Ensaio sobre a cegueira ( síntese) aborda a emergência da epidemia de uma repentina cegueira que abate os moradores de uma localidade não identificada. Tudo se inicia quando um homem cega repentinamente ao volante de seu automóvel, enquanto aguardava a mudança das cores no sinal de trânsito que o permitiria continuar a seguir seu caminho. A cegueira repentina e inexplicável inicia então, lentamente, o seu alastramento.

No entanto, diferente da cegueira usual, em que os cegos possuem apenas a percepção da escuridão, essa é uma “cegueira branca”, como a define o narrador. No lugar da ausência de luz, as pessoas infectadas enxergam apenas a completa brancura de uma superfície aparentemente leitosa.

Ao perceber a gravidade dos problemas que tal epidemia poderia ocasionar, as autoridades decidem enviar os novos cegos e aqueles com quem eles tiveram algum tipo de contato a um manicômio desativado. Essas pessoas são colocadas em quarentena em condições que chegam a se tornar desumanas. Aos poucos, todos acabam cegos e reduzidos, pela obscuridade, a meros seres lutando por seus instintos. Somente uma mulher não é acometida pelo mal da epidemia. Resta apenas a sua visão em meio à completa cegueira, moral e física, que assola os homens, tornando-se ela a única testemunha da degradação a que foi capaz de alcançar essa sociedade absolutamente cega.

Mesmo para os habituados com leituras difíceis, "Ensaio sobre a cegueira" não é um livro fácil. A certa altura, lê-lo é bem parecido a padecê-lo.Mas isso conta como mérito para Saramago, também: sua parábola sobre o vazio e o desespero que nos cercam procura ser precisa, incômoda, inquietar ao máximo. É preciso um estado de espírito especial para enfrentá-la.

Não é um livro concessivo, nem flerta minimamente com o entretenimento. Em se tratando de romances que oferecem uma situação sufocante em crescendo, espera-se sempre que um final redentor clareie aquilo e nos liberte, nos alivie. Mas Saramago vai noutra direção: mostra evidente prazer em pormenorizar com crueldade uma situação cruel, implausível, uma enorme metáfora do mal-estar do mundo presente
através de sua epidemia de cegueira, que é curiosa: as pessoas não se tornam exatamente cegas, mas passam a enxergar uma claridade ofuscante, excessiva, que parece precisamente o negativo da visibilidade.

terça-feira, 11 de junho de 2013

Eu e eles...os livros, claro!


Minha relação com livros é transcendental.Às vezes, tenho a impressão de que há um entendimento entre "nós" que escapa até de mim mesma. 
Eu me sinto feliz ( não alegre) com um livro nas mãos : ouço-o, sinto-lhe o cheiro,as páginas parecem carícias, enfim o alumbramento.  Livrarias são um mundo maravilhoso , no qual eu gostaria de morar...rs.
A propósito,encontrei um texto que me identifica , e descubro que deve haver um exército de pessoas igual a mim. Tenho encontrado tantos  textos assim, que já nem sei qual e quem eu sou. 

Enfim,sempre fico feliz nesse meu mundinho particular : eu e eles   ...claro, os livros.

Os livros.

Os livros são um amor pesado.
 Arrastam-se atrás de nós como fantasmas, mesmo antes de arrastarmos fisicamente com eles, de lugar para lugar. Os livros tornam-nos conservadores: naqueles momentos em que nos apetece mudar de casa, de país, de mundo, eles perfilam-se diante dos nossos olhos, solenes, um exército de capas rijas desafiando o nosso desejo de mobilidade. 
Revoltamo-nos: decidimos deixá-los para trás, oferecê-los, esquecê-los - mas eles não deixam. Porque quando passamos as mãos nas estantes, medindo forças com eles, há-de tombar-nos aos pés um livro que no chão, aberto, tem alguma coisa para nos dizer, alguma coisa que esquecêramos ou que agora subitamente descobrimos. Alguma coisa tão nossa que não reparámos nela. Um verso sublinhado, uma imagem, uma página que nos acelera o bater do coração e o galope do cérebro. 

Quantas vezes utilizámos os livros como refúgios do cérebro contra as investidas do coração? Quantas vezes os usámos como trincheiras sentimentais contra as razões da vida? Quantas vidas vivemos dentro deles, por procuração? Quantos anos passámos escondidos nas esquinas daquelas páginas, à espera que delas saltasse a surpresa redentora que, de tanto esperarmos, se esfumou? Os livros são os guardiões das nossas culpas: da muda acusação inscrita nas lombadas velhas e virgens dos que nunca lemos ao grito silencioso dos que se desmoronam nas nossas mãos, riscados, batidos, cheios de areia, manchas de café, marcas de lágrimas e até - nefando crime - sombras de tabaco.

Por que gostamos tanto de alguns livros maus e nos negamos a conhecer tantos livros bons? Por que insistimos em levar até ao fim alguns livros que parecem recusar-nos? Por que mergulhamos em livros que sabemos que nos vão magoar? O que faremos às horas que perdemos a ler livros de que não recordamos uma frase? Poderemos ainda reencontrar aqueles que só depois de perdidos descobrimos que amávamos de verdade? Quantas vezes sacrificámos a escuta das nossas verdades à leitura das verdades de um livro? Quantas vezes nos enganámos nos livros, quantas vezes nos enganámos por fugirmos dos livros?

Decidimos então escolher - mas os livros ensinaram-nos também a precariedade das escolhas e das decisões. Há uma época da vida em que descobrimos que aquilo a que chamámos escolhas fundamentais resultou de um conjunto de factores e circunstâncias que, afinal, não dominámos. Fomos arrastados na enxurrada, sobrevivendo a temporais diversos - e agora, no promontório a que damos o nome de maturidade (porque ganhámos nos livros o vício de dar nome a tudo, classificar, organizar, compreender, explicar) olhamos para as escolhas que esboçámos e abandonámos, e esforçamo-nos por recomeçar o desenho da nossa vida, numa página em branco. Mas aprendemos que o branco puro não existe - nem o negro, nem o amarelo, nem o azul ou o vermelho. Nenhuma cor é afinal absoluta como nós pensávamos, nesse tempo em que chamávamos razão ao instinto, paixão ao desejo, amor ao medo, originalidade à arrogância e ousadia à provocação. Ou vice-versa - tínhamos um feixe de certezas absolutas, e uma incapacidade atávica de escutar as várias versões de uma mesma história. Talvez fosse apenas impaciência - mas nós chamavamos-lhe idealismo. Gostávamos tanto de livros que nos tornámos caçadores de palavras - e deixávamo-nos balear por elas, como se fossem canções. Agora olhamos para os livros como sinfonias, feitas de deambulações em torno de um tema recorrente, que se vai revelando em diferentes tons - à semelhança das nossas vidas.

Quando éramos jovens, sabíamos arrumar os livros. Agora não sabemos - cresceram, multiplicaram-se, por dentro e por fora. Sociologia ou Filosofia? História ou Economia? Quanto mais lemos, mais difícil se torna decidir. A Ficção nas estantes de cima - como se lêssemos um romance de cada vez; sempre pensámos que quando acabássemos de crescer seríamos menos sôfregos. Mas o que fazer aos romances que nos habituamos a reler como ensaios ou poemas, e que sentimos necessidade de folhear ao acaso, com uma saudade sensual, numa tarde de chuva?
Os inclassificáveis empilham-se pelos cantos da casa, à espera de uma hora iluminante - e os recém-chegados acabam por se misturar com eles. Ao fim de uma semana já não conseguimos encontrar nada, e odiamos os livros por atacado, bradamos contra eles, juramos livrar-nos deles. Depois folheamos um e dizemos: vamos escolher, separar, deixar para trás, mudar. Mas os livros agarram-nos, lambem-nos as mãos, atiram-se ao chão para que olhemos para eles, seduzem-nos através do cheiro, do toque, do pó das memórias.

 Encaixotamo-los, e mudamo-nos, de novo, com eles - embora saibamos que nunca teremos tempo para os ler todos, e que continuaremos a ser injustos com eles, a amá-los mal, a perdê-los, a maltratá-los, a emprestá-los e a arrependermo-nos. 
"Antes a experiência que a nostalgia", disse-me certa vez uma amiga. Um bom conselho serve para tudo, até para arrumar bibliotecas e perder o medo do caos e o travo da culpa que assombra o amor dos livros."

Inês Pedrosa / Crônica  /2008

domingo, 9 de junho de 2013

É diferentemente que vale cada coisa.



“Não busque mais, no futuro, reencontrar um dia o passado. Apreende a novidade dessemelhante de cada momento e não prepares tuas alegrias, ou saibas que em seu lugar preparado outra alegria te surpreenderá.

Como não compreendeste que toda felicidade é casual e se apresenta a ti em cada instante como um mendigo em teu caminho. Infeliz de ti se disseres que tua felicidade é morta porque não a tinha sonhado igual a isso – e que só a admites conforme com teus princípios e desejos.

O sonho de amanhã é uma alegria, mas a alegria de amanhã outra alegria é, e nada felizmente se assemelha ao sonho que se tenha tido; porque é diferentemente que vale cada coisa.

Não quero que me digas: vem, preparei-te tal ou qual alegria; não gosto mais senão das alegrias casuais, e as que minha voz faz que jorrem do rochedo. Escorrerão assim para nós, novas e fortes, como os vinhos abundam no lagar.

Não gosto que minha alegria se enfeite, para beijá-la não limpei de minha boca as manchas que os cachos de uvas deixaram; depois dos beijos bebi o vinho doce sem refrescar a minha boca; e comi com a cera o mel da colmeia.


 Não prepares nenhuma de tuas alegrias.”

André Gide in Frutos da Terra.


















quarta-feira, 5 de junho de 2013

O impossível não se corrige.




“Abracei o corpo da minha mulher, segurei-lhe a mão, a sua cabeça no meu ombro, criei um pequeno embalo, como para adormecê-la, ou como se faz a quem chora e queremos confortar. vai ficar tudo bem, vai correr tudo bem. o que era impossível, e o impossível não melhora, não se corrige. estávamos encostados à parede, sobre o cortinado, como fazíamos na juventude para os beijos e para as partilhas tolas de enamorados. estávamos escondidos de todos, eu e a minha mulher morta que não me diria mais nada, por mais insistente que fosse o meu desespero, a minha necessidade de respirar através dos seus olhos, a minha necessidade vital de respirar através do seu sorriso.
 eu e a minha mulher morta que se demitia de continuar a justificar-me a vida e que, abraçando-me como podia, entregava-me tudo de uma só  vez. e eu, incrível, deixava tudo de uma só vez ao cuidado nenhum do medo e recomeçava a gritar.
com a morte, também o amor devia acabar. ato contínuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutrira pela pessoa que deixou de existir.

 “a máquina de fazer espanhóis” de valter hugo mãe

segunda-feira, 3 de junho de 2013

"O que a memória amou fica eterno"


Alguma
coisa mudou nos meus olhos. Suspeitei de doença e fui procurá-la nos textos de
oftalmologia. Mas, por mais que a procurasse, não a encontrei sequer
mencionada, fosse nos títulos de capítulos, fosse nos índices de assuntos. Os médicos
me disseram que consultei os livros errados. Falaram que melhor teria sido que
eu tivesse lido livros de poesia. Saudade,me explicaram, não é doença de olho. Não há colírio, óculos ou cirurgia que a curem. Aceito o veredito da ciência mas continuo sem entender.

 Por
favor, que me expliquem essa transformação estranha que acontece nos meus olhos
- deve ser doença rara, síndrome desconhecida, ainda não descrita, valendo
comunicação em congresso. A transformação é assim: quando a saudade bate, os
olhos param de ver o que dantes viam, e começam a ver coisas que dantes não
viam. Aquela mãe, da canção do Chico, olhou para o quarto do filho morto é pôs
flor na jarra: certamente, loucura da saudade: ela via algo que os outros não.
É parecido com o que acontece quando se olha as pranchas coloridas do livro OIho Mágico com olhar perdido. Isso que os autores do livro apresentam como novidade, eu já sabia, fazia tempo. Primeiro mudavam as cores. Depois certas coisas desapareciam, deixavam de ser vistas. Por fim, outras que não se viam, apareciam. E tudo ficava diferente.

 Certo
estava aquele que me mandou ler poesia. Lembrei-me que, de fato, eu já havia
lido antes sobre essa transformação do olhar, num texto de Octávio Paz.

"Todos
os dias atravessamos a mesma rua ou o mesmo jardim. Todas as tardes os nossos
olhos batem no mesmo muro avermelhado, feito de tijolos e tempo urbano.De
repente, num dia qualquer, a rua dá para um outro mundo, o jardim acaba de
nascer, o muro fatigado se cobre de signos. Nunca os tínhamos visto e agora
ficamos espantados por eles serem assim: tanto e tão esmagadoramente reais.
 Isso que estamos vendo pela primeira vez já havíamos visto antes. Em algum lugar, no
qual nunca estivemos, já estavam o muro, a rua, o jardim. E à surpresa segue-se
a nostalgia. Parece que nos recordamos e quereríamos voltar para lá, para esse
lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiquíssima e ao
mesmo tempo acabada de nascer. Nós também somos de lá. Um sopro nos golpeia a
fronte. Estamos encantados, suspensos no meio da tarde imóvel."

 É
assim que ficam os meus olhos, é assim que fica o meu mundo, quando a saudade
se aconchega no meu colo, quando a velhice brinca comigo... Os olhos normais
vêem as ruas, os muros, os jardins, do jeito mesmo como eles são, do jeito
mesmo como apareceriam se deles se tirasse uma fotografia. Já os olhos que a
saudade encantou ficam dotados de estranhos poderes mágicos: eles vêem as
ausências, o que não está lá mas que o coração deseja.

 Quando
eu estava no grupo me fizeram memorizar muitas coisas. A maioria eu esqueci.
Algumas eu decorei. Destas eu ainda me lembro. Faço distinção entre memorizar e decorar. Memorizar é coisa mecânica. Decorar, como a própria etimologia revela, é coisa de amor. Decorar vem da palavra latina cor, que quer dizer coração. Decorar é escrever no
coração. O que é escrito no coração passa a fazer parte do corpo; não é esquecido nunca. Palavras da Adélia: "O que a memória amou fica eterno".

 A
meditação sobre os olhos e a saudade trouxe-me à lembrança este poema de Tomás
Antônio Gonzaga, decorado. Se, menino, o decorei, é porque vinha misturado com
o golinho de velhice que eu bebia todo dia.
"Acaso
são estes os sítios formosos,/ aonde passava os anos gostosos?/ São estes os
prados aonde brincava,/ enquanto pastava o manso rebanho/ que Alceu me deixou?/
Daquele penhasco um rio caía;/ ao som do sussurro/ que vezes dormia!/ Agora não
cobrem espumas nevadas/ as pedras quebradas: parece que o rio o curso voltou./
Meus versos, alegre, aqui repetia;/ o eco as palavras três vezes dizia./ Se
chamo por ele, já não me responde;/ parece se esconde,/ cansado de dar-me/ os
ais que lhe dou./ Aqui um regato corria sereno/ por margens cobertas de flores
e feno;/ à esquerda se erguia um bosque fechado,/ e o tempo apressado, que nada
respeita,/ já tudo mudou./ Mas como discorro?/ Acaso podia já tudo mudar-se no
espaço de um dia?/ Existem as fontes e os freixos copados;/ dão flores os
prados, e corre a cascata,/ que nunca secou./ Minha alma, que tinha liberta a
vontade,/ agora já sente amor e saudade./ Os sítios formosos, que já me
agradaram,/ ah! não se mudaram.../ ...mudaram-se os olhos,/ de triste que
estou./ São estes os sítios?/ São estes./ Mas eu o mesmo não sou./ Marília, tu
chamas?/ Espera, que eu vou."

 E,
para terminar, mais um golinho de velhice, um verso de Rilke: "Quem nos
desviou assim, para que tivéssemos um ar de despedida em tudo o que fazemos?
Como aquele que, partindo, se detém na última colina a contemplar o vale na
distância - e ainda uma vez se volta, hesitante, e aguarda - assim vivemos nós,
numa incessante despedida."

Velhice

é assim. Miguilim sabia muito bem.

Rubem Alves /1992

sábado, 1 de junho de 2013

Ser o que se pode é a felicidade.


Um homem chegou aos quarenta anos e assumiu a tristeza de não ter um filho. Chamava-se Crisóstomo. Estava sozinho, os seus amores haviam falhado e sentia que tudo lhe faltava pela metade, como se tivesse apenas metade dos olhos, metade do peito e metade das pernas, metade da casa e dos talheres, metade dos dias, metade das palavras para se explicar às pessoas. Via-se metade ao espelho e achava tudo demasiado breve, precipitado, como se as coisas lhe fugissem, a esconderem-se para evitar a sua companhia. Via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía.

Um dia, depois de ter comprado um grande boneco de pano que encontrou à venda numa feira, o Crisóstomo sentou-se no sofá abraçando-o. Abraçava o boneco e procurava pensar que seria como um filho de verdade, abanando a cabeça igual a estar a dizer-lhe alguma coisa. Afagava-lhe os cabelos enquanto fantasiava uma longa conversa sobre as coisas mais importantes de aprender. Começava sempre as frases por dizer: sabes, meu filho. Era o que mais queria dizer. Queria dizer meu filho, como se a partir da pronúncia de tais palavras pudesse criar alguém.

A certa altura, abraçou mais forte o boneco, encolhendo-o até por o espremer de encontro ao peito, e acabou chorando muito, mas não chorou sequer metade das lágrimas que tinha para chorar. Achando que tudo era ausência, achava também que vivia imerso, como no fundo do mar. Pensava em si como um pescador absurdamente vencido e até a idade lhe parecia maior. O Crisóstomo começou a pensar que os filhos se perdiam, por vezes, na confusão do caminho. Imaginava crianças sozinhas como filhos à espera. Crianças que viviam como a demorarem-se na volta para casa por terem sido enganadas pela vida. Acreditou que o afeto verdadeiro era o único desengano, a grande forma de encontro e de pertença. A grande forma de família. Sentia uma urgência grave sem saber ainda o que fazer.

Valter Hugo Mãe in " O filho de mil homens"

A felicidade possível não importa como,onde,ou com quem.