sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Meu Natal 2013 tem nome : Saudades.



Todos os anos eu espero pacientemente ( ou ansiosa? ...) o Natal. Passei a vida amealhando objetos, dezenas de papais-noéis, castiçais, velas, flores, talheres, pratos, enfim...tudo verde e vermelho, brilhante e iluminado. Transformo minha casa em uma “toca do Papai Noel”. E adoro viver nela em um mês de sonho.
Mas, nesse ano, mesmo com a casa enfeitada, uma sensação estranha e vazia fez-me sentir uma pária. Onde andaria o Natal? A casa pronta , mas eu não . O que acontecera?
No entanto, a vida surpreende a cada curva- e são muitas.

De repente, deparo-me aqui com uma foto que não sei bem se saltou da tela ou do meu coração : a igreja iluminada da aldeia em que nasci e onde estive há dois anos, pela última vez, para depositar os restos mortais da minha mãe.
E na imagem colorida e silenciosa desfilaram vultos dos que me amavam e amei sempre. Infância e adolescência , época de sonhos em que se acredita que temos que correr atrás da felicidade , porque " ela está onde a pomos e nunca a pomos onde nós estamos".

Olho a foto entre lágrimas e vou muito além: vejo nela as pessoas que não mais lá estão, mas eu os vejo, sim, com cada caraterística, o sorriso, ouço-lhes o timbre de voz. Tão nítido agora, o que estava esmaecido na minha memória.. Poderia mencioná-los um a um, mas não consigo registrar em ordem as lembranças que me vêm aos borbotões. Tantos e tão próximos.

Em nosso Natal não havia ceia, comilança e bebedeira não eram sinônimo dessa festa: havia uma lindíssima missa do galo, onde íamos vestidos de pastorinhas entregar frutas ao menino Jesus. Depois da missa , em casa, o famoso e esperado bolo xadrez da minha mãe, com um cálice de vinho Palmeiras Rosé, que nos era proibido.
Íamos dormir na expectativa dos presentes que eram modestos, os que cabiam no bolso do meu pai. Parcos presentes e ricas presenças. 


Jamais me esqueci de um livro ganho aos 10 anos “ A Rainha da Neve “ de Andersen, cuja capa era inacreditavelmente linda. Aqui nasceu meu amor pelos livros que cresce cada vez mais. Um Natal permanente.
E então ,o almoço da família : éramos tantos que a mesa crescia e crescia, mas nela sempre cabiam os amigos que iam aparecendo e a alegria ia se multiplicando.

Sim, Felizes, Felizes Natais! E foram muitos .

No meu mundo particular, aquele que é só meu,no qual ninguém entra, onde as companhias são personagens de ficção e as histórias têm vida, sempre há um texto que exprime o que eu sinto e quero dizer. Agora é Fernando Pessoa :

O sino da minha aldeia

O sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro de minha alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
 

Fernando Pessoa

Finalmente, felizmente, o Natal 2013 chegou à minha vida e ao meu coração!

19/12/2013 -8h43min.

Silvana Barradas Tizziotti e Sônia Ap Godoy...muito obrigada!

Feliz Natal, Sales Oliveira!

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

O primeiro dia.



O que o acordou foi o silêncio. Primeiro, o do despertador que não tocou à hora
combinada todas as manhãs. Depois, o de outra respiração, que devia ouvir e não ouvia.
Estendeu a mão para o quente do outro lado da cama e encontrou o frio. Apalpou e
encontrou vazio. Então, sim, despertou completamente.
Um prenúncio de tragédia desceu por ele abaixo, como um arrepio. O que acabara de
se lembrar era que não acordara só por acaso ou por acidente: aquele era o primeiro dia, a
primeira manhã da sua separação - o primeiro de quantos dias? - em que acordaria sempre
sozinho, com metade da cama fria, metade do ar por respirar.

Era Abril, sábado e chovia. Sentado na cama, lembrou-se das instruções que dera a si
mesmo para aquela manhã: fazer peito forte à desgraça. Nada é inteiramente bom, mas
nada é inteiramente mau - pensou. Posso ler à noite até me apetecer sem me mandarem
apagar a luz, posso dormir atravessado na cama, posso-me livrar daquele rol de cobertores
com o qual ela me esmagava, fizesse sol, chuva ou frio, porque as mulheres são mais
friorentas que eu sei lá, posso usar a casa-de-banho todo o tempo que quiser, posso
espalhar as roupas, os jornais e os papéis pelo quarto à vontade e até - oh, suprema
liberdade - posso fumar à noite na cama.

Levantou-se para se olhar ao espelho da casa-de-banho. Sorriu à sua própria imagem,
ensaiou-a calma, tranquila, confiante. Imaginou mentalmente o texto que poderia redigir
sobre si mesmo para a secção de anúncios pessoais do jornal: «Divorciado, 40 anos, bom
aspecto, licenciado, rendimento médio-alto, casa própria e espaçosa, desportos, ar livre,
terno e com sentido de humor». Mulheres compatíveis? Deus do céu, dezenas delas! Sou
um partidão - concluiu para o espelho.

Calmo, tranquilo e confiante, passou aos outros aposentos da casa para dar uma vista
de olhos ao resultado da partilha dos móveis, aliás feita sem grandes problemas, como é
próprio de gente civilizada. Por alto, entre o living, o hall, o escritório, a cozinha, o quarto
de casal e as duas casas-de-banho, estimou nuns setecentos contos o preço da reposição
das coisas em falta. Mais metade dos livros e dos CD's, quase todas as fotografias dos
últimos dez anos das suas vidas e algumas outras coisas cujo verdadeiro valor era o vazio
que encontrava se olhasse para o lugar onde elas costumavam estar.

«Até agora vou-me aguentando», considerou ele. Entre perdas e danos e a certeza
adquirida de que nada dura para sempre, restavam-lhe várias razões e objectos e
sentimentos para olhar em frente sem um sobressalto.

Enquanto fazia, com um prazer insuspeitado, o seu primeiro pequeno-almoço de
homem só, passou à fase seguinte do que chamara o «plano de sobrevivência»: desfolhar a
agenda de telefones em busca de amigos igualmente sós com quem fazer «programas de
homens» ou de antigas namoradas, que se tinham separado ultimamente ou outras que
achava acessíveis mas que nunca tivera a coragem e a oportunidade de aproximar. A
primeira desilusão foi com os amigos: de A a Z, realizou que só tinha dois amigos sem
mulher e, para agravar as coisas, com nenhum deles lhe apetecia sair e entrar numa de
«anda daí e mostra-me lá como é o mundo lá fora».

 Quanto às mulheres que julgava sortables, sempre eram cinco, mas o resultado foi quase patético. Duas já não moravam naqueles telefones, outra tinha-se casado entretanto, e o marido estava ao lado a ouvir a conversa, o que o deixou completamente idiota a inventar pretextos absurdos para otelefonema. Do número da quarta atendeu uma criancinha e ele desligou e foi só na última da lista que finalmente teve sorte: sim, a Joana morava ali, era ela própria ao telefone. Não, não estava casada nem, pelo que, esforçadamente, percebeu, tinha namorado. Sim, ok, por que não irem jantar logo, para falar do projecto que ele tinha e onde ela poderia caber. «Ah,a tua mulher não vem? Separados? Não, não sabia. Recente? Pois, essas coisas são tão chatas, mas ainda bem que reages e tens projectos novos e tudo! Ok, às oito e meia vensme buscar». Ele teria desligado quase em êxtase, não fosse a frase final dela, à despedida, que o deixou verdadeiramente abalado. «Olha, vais-me achar uma grande diferença. A idade não perdoa a ninguém, não é?»

Enfim, sempre era um date. O primeiro, certamente, de uma longa lista. O que
interessa se for um flop - achas que ias encontrar uma mulher super logo ao virar da
esquina? É preciso é entrar no circuito, pá, começar a sair, a ser visto, fazer com que as
pessoas saibam que estás disponível. O resto vem por arrasto.

Passeou-se pela casa, pensativo, fumando o primeiro cigarro do dia. De repente
lembrou-se que ainda não tinha visto o quarto do filho. A cama e a escrivaninha tinham
ido, assim como praticamente todos os brinquedos. Sobrava um boneco de peluche, três
ou quatro carrinhos semi-partidos, uns legos e um quadro para fazer desenhos, com os
respectivos marcadores, pousados, à espera de uma mão de criança. A mesa-de-cabeceira
ficara e parecia absurda no meio do quarto, sem a cama nem os outros móveis, com um
retrato dele e do filho numa praia do Algarve, sorrindo, abraçados um ao outro. 

Sem saber porquê, sentou-se no chão encostado à parede, muito devagar, a olhar para a fotografia. Duas grossas lágrimas escorregaram-lhe pela cara abaixo e caíram na madeira do chão, entre as pernas. Foi só então que ele percebeu que estava a chorar.

Miguel Sousa Tavares.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Professores são oleiros...





Esse blog tem andado abandonado, triste,vazio, talvez porque, em uma análise simplista, todo blog reflita o que vai na alma de quem o cria. E minha alma anda desencantada.
Entretanto há momentos e textos que eu quero preservar porque eles merecem ser lidos  e apreciados.
Fui agraciada, ao lado de muitos colegas, com essa preciosidade.Fui às lágrimas, porque vi minha vida descortinada por alguém que ainda não a viveu.
Obrigada, Esther! Beijo.



Dia dos Professores por Esther Ferreira Alves

Meu pai acredita que minha mãe criou seus três filhos do jeito errado: eu troquei a engenharia mecânica pela filosofia, minha irmã é formada em História e meu irmão cursa biologia. O que vamos fazer da vida? Dar aula? Ser professor? 
Minhas aulas de licenciatura na Faculdade de Educação reiteram a suspeita: a carreira de professor é árdua, ingrata, beira o impossível. São diret
ores que tolham o jeito de ser de cada professor, são pais que menosprezam e criticam o professor, são alunos que, revoltados e mal-criados, voltam-se contra a figura do professor, seja falando em aula, xingando ou, hoje em dia, até agredindo fisicamente. Professor tem que ser psicólogo de cada um e de todos, tem que ser mediador entre uma diretoria que quer notas altas no vestibular e um aluno que não sabe mais quem é e nem sabe ao menos o significado da palavra respeito, afinal de contas, é o aluno que paga o salário do professor... Professor precisa dar aula mesmo com dor nas costas, rouco e com sono atrasado porque ficou a noite corrigindo exercícios, professor precisa lidar com o pagamento baixo, o baixo status e as altas contas de livros e cursos de especialização e impostos para pagar. Tem que lidar com o olhar de pena quando as pessoas perguntam sua profissão: ah,você é professor...
Dizem que os pais têm uma vingança 'cármica' quando seus filhos têm filhos. Algo similar acontece quando nós alunos entramos na via de dar aulas. Nós fomos o aluno pentelho, que dorme e finge que não presta atenção, nós fomos o aluno puxa-saco, o que falava demais e passava bilhete na aula, nós fomos todos e cada um deles. E agora somos nós que temos que aprender a como lidar com essas pessoas. Tenho que admitir: dá vontade de desistir. Depois de toda aula de licenciatura, eu saio com a convicção que só é professor quem não é são. E aposto que todos os meus professores já chegaram no limite muitas vezes e até se arrependeram de seguir essa carreira. Alguns provavelmente optaram por outro rumo.
Por isso, agora, a admiração que eu tinha por todos os meus professores se transforma em algo de profundo respeito e quase-veneração. Eles são como heróis num palco trágico de muitas desventuras e aporias. São como semi-deuses, nascendo com uma força hercúlea e (sobre)vivendo no mundo terreno, cheio de intemperanças e lutas e desventuras. E como semi-deuses, deixam uma impressão indelével por onde passam: eu me lembro de quase todos os professores que tive, de como faziam as paredes da sala sumirem e nos transportavam para um mundo paralelo. Todos os professores que tive, tenho e hei de ter são como oleiros, manuseando um barro sem forma transformando-me num ser que parece humano. Eles são grandes responsáveis por quem sou hoje (e eu gosto de quem sou).
Agradeço a todos esses bravos heróis; que a roda da Fortuna seja agradável a todos eles. Por fim, agradeço a minha mãe: você criou seus filhos com valores e princípios, com livros e histórias e música, agradeço minha mãe, que foi nossa primeira professora. Um brinde de ambrosia a todos vocês e minha sincera gratidão.

Dedicado a:
Professora Gizelda Nogueira 
Professor Diego López Silva 
Professor Flávio Ribeiro 
Professora Isabella Tardin Cardoso
Professor Marcos Pereira 
Professor Paulo Sérgio Vasconcellos 
Professora Patrícia Prata
Professor Trajano Vieira 
aos PADs e PEDs que muito me ensinaram:
Quel Faustino 
Lilian Costa 
Carol Martins da Rocha 
Felipe Weinmann 
Rafael Testa

domingo, 1 de setembro de 2013

Um prenúncio de primavera...presente prá alma.


Quando você acorda em uma manhã enevoada de domingo e encontra algo assim na sua página, você decobre que não viveu em vão. 
Lindo demais para não ser compartilhado. Bruno...você não imagina o que fez com a minha alma , hoje. E prá sempre.
Obrigada. Beijo.


Bruno De Oliveira Pinto publicou em Gizelda Nogueira
há 5 horas próximo a Ribeirão Preto, São Paulo

Fiz um poema pra você, minha querida:

"Nunca mais o dia de hoje será de novo,
nunca mais o dia de ontem será de novo
as vírgulas de hoje ocuparão lugares novos
as interrogações estarão sempre criando novas
dúvidas, medos, angústias........... de novo.

Os dias vividos ao seu lado, ao som da sua voz
às letras, às palavras, às viagens que nos fazia
Sempre novas
Sempre surpreendentes
Não diziam muito quem você era...

Mas o olhar nunca, veja bem, eu disse nunca
esconde o futuro, ele é misterioso e mágico
mesmo quando só consegue ser trágico
Este olhar renova
inova
E remove o passado olhando sempre
para o que nunca foi
Para o que sempre ficará
E para o que é.

Você é amada... Todos os dias da sua vida.
0,00001% da população terrestre gostaria de ser...

Matemática não combina muito com poema...
Ou não...

Mas ela realmente equaciona todas as variáveis
cujas imagens estão contidas no seu olhar.

Um beijo.

Seu sempre amigo e aluno, Bruno.

terça-feira, 2 de julho de 2013

No caminho inexistente


.


Ia a filha muda guiando o pai cego quando, depois de muito caminhar, chegaram ao deserto. E sentindo o pai a areia nas sandálias, acreditou ter chegado ao mar e alegrou-se.

O mar estava para sempre gravado na sua memória, disse ele à filha que nunca o havia visto. E contou como podiam ser altas as ondas, e obedientes ao vento. E como, coroadas de espuma, faziam e desfaziam seu penteado. O mar, contou ainda, ocupa nossos olhos por inteiro e, se o vemos nascer, o fim não vemos. O mar sempre se move e sempre está parado. O mar, à noite, veste-se de lua.

O mar pareceu duas vezes belo à menina, pelo que era e pelas palavras do pai. Olhou à sua frente, viu as altas dunas e chamou-as ondas no seu coração. Elas obedeciam ao vento e no alto entregavam-lhe seus cabelos para que os desmanchasse com dedos ligeiros.

Sentaram-se os dois, o pai olhando no escuro o mar que guardava na memória, a filha deixando que o mar de luz sem fim ocupasse todo o espaço do seu olhar. Parado diante dela, ainda assim se movia. E quando a noite chegou, vestiu o cetim que a lua lhe entregara.

Dormiram ali os dois, pai e filha, deitados na areia, sonhando com o que haviam visto. E ao amanhecer seguiram caminho, afastando-se do deserto.

Andaram, que o mundo é vasto. Até que um dia, numa curva do caminho, desembocaram na praia.

O velho, sentindo a areia nas sandálias, alegrou-se, certo de ter chegado ao deserto, talvez o mesmo deserto que atravessara quando jovem.

Sentaram. O deserto, disse o pai à menina, é filho dileto do sol. E a menina olhando à frente, viu os raios deitando na superfície, partindo-se, rejuntando-se, mosaico de sol, e sorriu. Os pés afundam no deserto, acrescentou o pai, e ele acaricia nossos tornozelos. A menina soltou sua mão da dele e foi molhar os pés, deixando que a água lhe acariciasse os tornozelos. O deserto, disse ainda o pai, é plano como um lençol ao vento, sem montanhas, ondeando nas costas das dunas. A menina correu o olhar pela linha do horizonte que nenhuma montanha interrompia, viu as ondas, e em seu coração chamou-as dunas.

No deserto, disse ainda o pai à filha tentando explicar o mundo sobre o qual não podia fazer perguntas, anda-se sempre em frente porque não há caminhos, e a pegada do pé direito já se apaga quando o pé esquerdo pisa adiante.

Levantaram-se, caminhando. E porque o velho pisava seguro no deserto da sua lembrança, e porque a menina pisava tranquila no deserto que lhe havia sido entregue pelo pai, seguiram adiante serenos por cima da água que lhes acolhia os pés acarinhando os tornozelos, enquanto suas pegadas se apagavam no caminho inexistente.

23 histórias de um viajante. Marina Colasanti.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Existe algo mais sufocante do que a cegueira moral?



"...a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam".

... se antes de cada ato nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar. Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala" (EC: 84).
O medo, o comodismo e o fatalismo levam uma pessoa a se habituar a tudo, "...sobretudo se deixou de ser pessoa..." (EC: 218).

"O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos..." (EC: 131)


Saramago : polêmico e arrasador, como sempre.


Ensaio sobre a cegueira ( síntese) aborda a emergência da epidemia de uma repentina cegueira que abate os moradores de uma localidade não identificada. Tudo se inicia quando um homem cega repentinamente ao volante de seu automóvel, enquanto aguardava a mudança das cores no sinal de trânsito que o permitiria continuar a seguir seu caminho. A cegueira repentina e inexplicável inicia então, lentamente, o seu alastramento.

No entanto, diferente da cegueira usual, em que os cegos possuem apenas a percepção da escuridão, essa é uma “cegueira branca”, como a define o narrador. No lugar da ausência de luz, as pessoas infectadas enxergam apenas a completa brancura de uma superfície aparentemente leitosa.

Ao perceber a gravidade dos problemas que tal epidemia poderia ocasionar, as autoridades decidem enviar os novos cegos e aqueles com quem eles tiveram algum tipo de contato a um manicômio desativado. Essas pessoas são colocadas em quarentena em condições que chegam a se tornar desumanas. Aos poucos, todos acabam cegos e reduzidos, pela obscuridade, a meros seres lutando por seus instintos. Somente uma mulher não é acometida pelo mal da epidemia. Resta apenas a sua visão em meio à completa cegueira, moral e física, que assola os homens, tornando-se ela a única testemunha da degradação a que foi capaz de alcançar essa sociedade absolutamente cega.

Mesmo para os habituados com leituras difíceis, "Ensaio sobre a cegueira" não é um livro fácil. A certa altura, lê-lo é bem parecido a padecê-lo.Mas isso conta como mérito para Saramago, também: sua parábola sobre o vazio e o desespero que nos cercam procura ser precisa, incômoda, inquietar ao máximo. É preciso um estado de espírito especial para enfrentá-la.

Não é um livro concessivo, nem flerta minimamente com o entretenimento. Em se tratando de romances que oferecem uma situação sufocante em crescendo, espera-se sempre que um final redentor clareie aquilo e nos liberte, nos alivie. Mas Saramago vai noutra direção: mostra evidente prazer em pormenorizar com crueldade uma situação cruel, implausível, uma enorme metáfora do mal-estar do mundo presente
através de sua epidemia de cegueira, que é curiosa: as pessoas não se tornam exatamente cegas, mas passam a enxergar uma claridade ofuscante, excessiva, que parece precisamente o negativo da visibilidade.

terça-feira, 11 de junho de 2013

Eu e eles...os livros, claro!


Minha relação com livros é transcendental.Às vezes, tenho a impressão de que há um entendimento entre "nós" que escapa até de mim mesma. 
Eu me sinto feliz ( não alegre) com um livro nas mãos : ouço-o, sinto-lhe o cheiro,as páginas parecem carícias, enfim o alumbramento.  Livrarias são um mundo maravilhoso , no qual eu gostaria de morar...rs.
A propósito,encontrei um texto que me identifica , e descubro que deve haver um exército de pessoas igual a mim. Tenho encontrado tantos  textos assim, que já nem sei qual e quem eu sou. 

Enfim,sempre fico feliz nesse meu mundinho particular : eu e eles   ...claro, os livros.

Os livros.

Os livros são um amor pesado.
 Arrastam-se atrás de nós como fantasmas, mesmo antes de arrastarmos fisicamente com eles, de lugar para lugar. Os livros tornam-nos conservadores: naqueles momentos em que nos apetece mudar de casa, de país, de mundo, eles perfilam-se diante dos nossos olhos, solenes, um exército de capas rijas desafiando o nosso desejo de mobilidade. 
Revoltamo-nos: decidimos deixá-los para trás, oferecê-los, esquecê-los - mas eles não deixam. Porque quando passamos as mãos nas estantes, medindo forças com eles, há-de tombar-nos aos pés um livro que no chão, aberto, tem alguma coisa para nos dizer, alguma coisa que esquecêramos ou que agora subitamente descobrimos. Alguma coisa tão nossa que não reparámos nela. Um verso sublinhado, uma imagem, uma página que nos acelera o bater do coração e o galope do cérebro. 

Quantas vezes utilizámos os livros como refúgios do cérebro contra as investidas do coração? Quantas vezes os usámos como trincheiras sentimentais contra as razões da vida? Quantas vidas vivemos dentro deles, por procuração? Quantos anos passámos escondidos nas esquinas daquelas páginas, à espera que delas saltasse a surpresa redentora que, de tanto esperarmos, se esfumou? Os livros são os guardiões das nossas culpas: da muda acusação inscrita nas lombadas velhas e virgens dos que nunca lemos ao grito silencioso dos que se desmoronam nas nossas mãos, riscados, batidos, cheios de areia, manchas de café, marcas de lágrimas e até - nefando crime - sombras de tabaco.

Por que gostamos tanto de alguns livros maus e nos negamos a conhecer tantos livros bons? Por que insistimos em levar até ao fim alguns livros que parecem recusar-nos? Por que mergulhamos em livros que sabemos que nos vão magoar? O que faremos às horas que perdemos a ler livros de que não recordamos uma frase? Poderemos ainda reencontrar aqueles que só depois de perdidos descobrimos que amávamos de verdade? Quantas vezes sacrificámos a escuta das nossas verdades à leitura das verdades de um livro? Quantas vezes nos enganámos nos livros, quantas vezes nos enganámos por fugirmos dos livros?

Decidimos então escolher - mas os livros ensinaram-nos também a precariedade das escolhas e das decisões. Há uma época da vida em que descobrimos que aquilo a que chamámos escolhas fundamentais resultou de um conjunto de factores e circunstâncias que, afinal, não dominámos. Fomos arrastados na enxurrada, sobrevivendo a temporais diversos - e agora, no promontório a que damos o nome de maturidade (porque ganhámos nos livros o vício de dar nome a tudo, classificar, organizar, compreender, explicar) olhamos para as escolhas que esboçámos e abandonámos, e esforçamo-nos por recomeçar o desenho da nossa vida, numa página em branco. Mas aprendemos que o branco puro não existe - nem o negro, nem o amarelo, nem o azul ou o vermelho. Nenhuma cor é afinal absoluta como nós pensávamos, nesse tempo em que chamávamos razão ao instinto, paixão ao desejo, amor ao medo, originalidade à arrogância e ousadia à provocação. Ou vice-versa - tínhamos um feixe de certezas absolutas, e uma incapacidade atávica de escutar as várias versões de uma mesma história. Talvez fosse apenas impaciência - mas nós chamavamos-lhe idealismo. Gostávamos tanto de livros que nos tornámos caçadores de palavras - e deixávamo-nos balear por elas, como se fossem canções. Agora olhamos para os livros como sinfonias, feitas de deambulações em torno de um tema recorrente, que se vai revelando em diferentes tons - à semelhança das nossas vidas.

Quando éramos jovens, sabíamos arrumar os livros. Agora não sabemos - cresceram, multiplicaram-se, por dentro e por fora. Sociologia ou Filosofia? História ou Economia? Quanto mais lemos, mais difícil se torna decidir. A Ficção nas estantes de cima - como se lêssemos um romance de cada vez; sempre pensámos que quando acabássemos de crescer seríamos menos sôfregos. Mas o que fazer aos romances que nos habituamos a reler como ensaios ou poemas, e que sentimos necessidade de folhear ao acaso, com uma saudade sensual, numa tarde de chuva?
Os inclassificáveis empilham-se pelos cantos da casa, à espera de uma hora iluminante - e os recém-chegados acabam por se misturar com eles. Ao fim de uma semana já não conseguimos encontrar nada, e odiamos os livros por atacado, bradamos contra eles, juramos livrar-nos deles. Depois folheamos um e dizemos: vamos escolher, separar, deixar para trás, mudar. Mas os livros agarram-nos, lambem-nos as mãos, atiram-se ao chão para que olhemos para eles, seduzem-nos através do cheiro, do toque, do pó das memórias.

 Encaixotamo-los, e mudamo-nos, de novo, com eles - embora saibamos que nunca teremos tempo para os ler todos, e que continuaremos a ser injustos com eles, a amá-los mal, a perdê-los, a maltratá-los, a emprestá-los e a arrependermo-nos. 
"Antes a experiência que a nostalgia", disse-me certa vez uma amiga. Um bom conselho serve para tudo, até para arrumar bibliotecas e perder o medo do caos e o travo da culpa que assombra o amor dos livros."

Inês Pedrosa / Crônica  /2008

domingo, 9 de junho de 2013

É diferentemente que vale cada coisa.



“Não busque mais, no futuro, reencontrar um dia o passado. Apreende a novidade dessemelhante de cada momento e não prepares tuas alegrias, ou saibas que em seu lugar preparado outra alegria te surpreenderá.

Como não compreendeste que toda felicidade é casual e se apresenta a ti em cada instante como um mendigo em teu caminho. Infeliz de ti se disseres que tua felicidade é morta porque não a tinha sonhado igual a isso – e que só a admites conforme com teus princípios e desejos.

O sonho de amanhã é uma alegria, mas a alegria de amanhã outra alegria é, e nada felizmente se assemelha ao sonho que se tenha tido; porque é diferentemente que vale cada coisa.

Não quero que me digas: vem, preparei-te tal ou qual alegria; não gosto mais senão das alegrias casuais, e as que minha voz faz que jorrem do rochedo. Escorrerão assim para nós, novas e fortes, como os vinhos abundam no lagar.

Não gosto que minha alegria se enfeite, para beijá-la não limpei de minha boca as manchas que os cachos de uvas deixaram; depois dos beijos bebi o vinho doce sem refrescar a minha boca; e comi com a cera o mel da colmeia.


 Não prepares nenhuma de tuas alegrias.”

André Gide in Frutos da Terra.


















quarta-feira, 5 de junho de 2013

O impossível não se corrige.




“Abracei o corpo da minha mulher, segurei-lhe a mão, a sua cabeça no meu ombro, criei um pequeno embalo, como para adormecê-la, ou como se faz a quem chora e queremos confortar. vai ficar tudo bem, vai correr tudo bem. o que era impossível, e o impossível não melhora, não se corrige. estávamos encostados à parede, sobre o cortinado, como fazíamos na juventude para os beijos e para as partilhas tolas de enamorados. estávamos escondidos de todos, eu e a minha mulher morta que não me diria mais nada, por mais insistente que fosse o meu desespero, a minha necessidade de respirar através dos seus olhos, a minha necessidade vital de respirar através do seu sorriso.
 eu e a minha mulher morta que se demitia de continuar a justificar-me a vida e que, abraçando-me como podia, entregava-me tudo de uma só  vez. e eu, incrível, deixava tudo de uma só vez ao cuidado nenhum do medo e recomeçava a gritar.
com a morte, também o amor devia acabar. ato contínuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutrira pela pessoa que deixou de existir.

 “a máquina de fazer espanhóis” de valter hugo mãe

segunda-feira, 3 de junho de 2013

"O que a memória amou fica eterno"


Alguma
coisa mudou nos meus olhos. Suspeitei de doença e fui procurá-la nos textos de
oftalmologia. Mas, por mais que a procurasse, não a encontrei sequer
mencionada, fosse nos títulos de capítulos, fosse nos índices de assuntos. Os médicos
me disseram que consultei os livros errados. Falaram que melhor teria sido que
eu tivesse lido livros de poesia. Saudade,me explicaram, não é doença de olho. Não há colírio, óculos ou cirurgia que a curem. Aceito o veredito da ciência mas continuo sem entender.

 Por
favor, que me expliquem essa transformação estranha que acontece nos meus olhos
- deve ser doença rara, síndrome desconhecida, ainda não descrita, valendo
comunicação em congresso. A transformação é assim: quando a saudade bate, os
olhos param de ver o que dantes viam, e começam a ver coisas que dantes não
viam. Aquela mãe, da canção do Chico, olhou para o quarto do filho morto é pôs
flor na jarra: certamente, loucura da saudade: ela via algo que os outros não.
É parecido com o que acontece quando se olha as pranchas coloridas do livro OIho Mágico com olhar perdido. Isso que os autores do livro apresentam como novidade, eu já sabia, fazia tempo. Primeiro mudavam as cores. Depois certas coisas desapareciam, deixavam de ser vistas. Por fim, outras que não se viam, apareciam. E tudo ficava diferente.

 Certo
estava aquele que me mandou ler poesia. Lembrei-me que, de fato, eu já havia
lido antes sobre essa transformação do olhar, num texto de Octávio Paz.

"Todos
os dias atravessamos a mesma rua ou o mesmo jardim. Todas as tardes os nossos
olhos batem no mesmo muro avermelhado, feito de tijolos e tempo urbano.De
repente, num dia qualquer, a rua dá para um outro mundo, o jardim acaba de
nascer, o muro fatigado se cobre de signos. Nunca os tínhamos visto e agora
ficamos espantados por eles serem assim: tanto e tão esmagadoramente reais.
 Isso que estamos vendo pela primeira vez já havíamos visto antes. Em algum lugar, no
qual nunca estivemos, já estavam o muro, a rua, o jardim. E à surpresa segue-se
a nostalgia. Parece que nos recordamos e quereríamos voltar para lá, para esse
lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiquíssima e ao
mesmo tempo acabada de nascer. Nós também somos de lá. Um sopro nos golpeia a
fronte. Estamos encantados, suspensos no meio da tarde imóvel."

 É
assim que ficam os meus olhos, é assim que fica o meu mundo, quando a saudade
se aconchega no meu colo, quando a velhice brinca comigo... Os olhos normais
vêem as ruas, os muros, os jardins, do jeito mesmo como eles são, do jeito
mesmo como apareceriam se deles se tirasse uma fotografia. Já os olhos que a
saudade encantou ficam dotados de estranhos poderes mágicos: eles vêem as
ausências, o que não está lá mas que o coração deseja.

 Quando
eu estava no grupo me fizeram memorizar muitas coisas. A maioria eu esqueci.
Algumas eu decorei. Destas eu ainda me lembro. Faço distinção entre memorizar e decorar. Memorizar é coisa mecânica. Decorar, como a própria etimologia revela, é coisa de amor. Decorar vem da palavra latina cor, que quer dizer coração. Decorar é escrever no
coração. O que é escrito no coração passa a fazer parte do corpo; não é esquecido nunca. Palavras da Adélia: "O que a memória amou fica eterno".

 A
meditação sobre os olhos e a saudade trouxe-me à lembrança este poema de Tomás
Antônio Gonzaga, decorado. Se, menino, o decorei, é porque vinha misturado com
o golinho de velhice que eu bebia todo dia.
"Acaso
são estes os sítios formosos,/ aonde passava os anos gostosos?/ São estes os
prados aonde brincava,/ enquanto pastava o manso rebanho/ que Alceu me deixou?/
Daquele penhasco um rio caía;/ ao som do sussurro/ que vezes dormia!/ Agora não
cobrem espumas nevadas/ as pedras quebradas: parece que o rio o curso voltou./
Meus versos, alegre, aqui repetia;/ o eco as palavras três vezes dizia./ Se
chamo por ele, já não me responde;/ parece se esconde,/ cansado de dar-me/ os
ais que lhe dou./ Aqui um regato corria sereno/ por margens cobertas de flores
e feno;/ à esquerda se erguia um bosque fechado,/ e o tempo apressado, que nada
respeita,/ já tudo mudou./ Mas como discorro?/ Acaso podia já tudo mudar-se no
espaço de um dia?/ Existem as fontes e os freixos copados;/ dão flores os
prados, e corre a cascata,/ que nunca secou./ Minha alma, que tinha liberta a
vontade,/ agora já sente amor e saudade./ Os sítios formosos, que já me
agradaram,/ ah! não se mudaram.../ ...mudaram-se os olhos,/ de triste que
estou./ São estes os sítios?/ São estes./ Mas eu o mesmo não sou./ Marília, tu
chamas?/ Espera, que eu vou."

 E,
para terminar, mais um golinho de velhice, um verso de Rilke: "Quem nos
desviou assim, para que tivéssemos um ar de despedida em tudo o que fazemos?
Como aquele que, partindo, se detém na última colina a contemplar o vale na
distância - e ainda uma vez se volta, hesitante, e aguarda - assim vivemos nós,
numa incessante despedida."

Velhice

é assim. Miguilim sabia muito bem.

Rubem Alves /1992

sábado, 1 de junho de 2013

Ser o que se pode é a felicidade.


Um homem chegou aos quarenta anos e assumiu a tristeza de não ter um filho. Chamava-se Crisóstomo. Estava sozinho, os seus amores haviam falhado e sentia que tudo lhe faltava pela metade, como se tivesse apenas metade dos olhos, metade do peito e metade das pernas, metade da casa e dos talheres, metade dos dias, metade das palavras para se explicar às pessoas. Via-se metade ao espelho e achava tudo demasiado breve, precipitado, como se as coisas lhe fugissem, a esconderem-se para evitar a sua companhia. Via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía.

Um dia, depois de ter comprado um grande boneco de pano que encontrou à venda numa feira, o Crisóstomo sentou-se no sofá abraçando-o. Abraçava o boneco e procurava pensar que seria como um filho de verdade, abanando a cabeça igual a estar a dizer-lhe alguma coisa. Afagava-lhe os cabelos enquanto fantasiava uma longa conversa sobre as coisas mais importantes de aprender. Começava sempre as frases por dizer: sabes, meu filho. Era o que mais queria dizer. Queria dizer meu filho, como se a partir da pronúncia de tais palavras pudesse criar alguém.

A certa altura, abraçou mais forte o boneco, encolhendo-o até por o espremer de encontro ao peito, e acabou chorando muito, mas não chorou sequer metade das lágrimas que tinha para chorar. Achando que tudo era ausência, achava também que vivia imerso, como no fundo do mar. Pensava em si como um pescador absurdamente vencido e até a idade lhe parecia maior. O Crisóstomo começou a pensar que os filhos se perdiam, por vezes, na confusão do caminho. Imaginava crianças sozinhas como filhos à espera. Crianças que viviam como a demorarem-se na volta para casa por terem sido enganadas pela vida. Acreditou que o afeto verdadeiro era o único desengano, a grande forma de encontro e de pertença. A grande forma de família. Sentia uma urgência grave sem saber ainda o que fazer.

Valter Hugo Mãe in " O filho de mil homens"

A felicidade possível não importa como,onde,ou com quem.

sábado, 25 de maio de 2013

O casamento: às vezes, quem ganha é quem perde.



TÊNIS X FRESCOBOL 

Depois de muito meditar sobre o assunto  concluí que os casamentos são de dois tipos: há os casamentos do tipo tênis e há os casamentos do tipo frescobol. Os casamentos do tipo tênis são uma fonte  de raiva e ressentimentos e terminam sempre mal. Os casamentos do tipo frescobol são uma fonte de alegria e têm a chance de ter vida longa.
Explico-me. Para começar, uma afirmação de Nietzsche, com a qual concordo inteiramente. Dizia ele: “Ao pensar sobre a possibilidade do casamento cada um deveria se fazer a seguinte pergunta ‘Você crê que você seria capaz de conversar com prazer com esta pessoa, até a sua velhice?’ Tudo o mais no casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas construídas sobre a arte de conversar.”

Xerazade sabia disso. Sabia que os casamentos  baseados nos prazeres da cama são sempre decapitados pela manhã, terminam em separação, pois os prazeres do sexo se esgotam rapidamente, terminam na morte,  como no filme O Império dos Sentidos. Por isso, quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se podia dizer  através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa  conversa, conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou da palavra - é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita sempre, depois de morrer. Há os carinhos que se fazem com o corpo e há os carinhos que se fazem com as palavras. E contrariamente ao que pensam os amantes inexperientes, fazer carinho com as palavras não é ficar repetindo o tempo todo: “Eu te amo, eu te amo...” Barthes advertia: “Passada a primeira  confissão, ‘eu te amo’ não quer dizer mais nada”. É na conversa que o nosso verdadeiro corpo se mostra, não em sua nudez anatômica, mas em sua nudez  poética. Recordo a sabedoria de Adélia Prado: “Erótica é a alma”.

O tênis é um jogo feroz. O seu objetivo é derrotar o adversário. E a sua derrota se revela no seu erro: o outro foi incapaz de devolver a bola. Joga-se tênis para fazer o outro errar. O bom jogador é aquele que tem a exata noção do ponto fraco do seu adversário - e é justamente para aí que ele vai dirigir a sua cortada - palavra muito sugestiva, que indica o seu objetivo sádico, que é o de cortar, interromper, derrotar. O prazer do tênis se encontra, portanto, justamente no momento em que o jogo não pode mais continuar porque o adversário foi colocado fora de jogo. Termina sempre com a alegria de um e a tristeza de  outro.

O frescobol se parece muito com o tênis: dois jogadores, duas raquetes e uma bola. Só que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca. Se a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro possa pegá-la. Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado.
Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha. E ninguém fica feliz quando o outro erra - pois o que se deseja é que ninguém erre. O erro de um, no frescobol, é como ejaculação precoce: um acidente lamentável que não deveria ter acontecido, pois o gostoso mesmo é aquele ir e vir, ir e vir, ire vir... E o que errou pede desculpas, e o que provocou o erro se sente culpado. Mas não tem importância: começa-se de novo este delicioso jogo em que ninguém marca pontos...

A bola: são as nossas fantasias, irrealidades, sonhos sob a forma de  palavras. Conversar é ficar batendo sonho pra lá, sonho pra cá...
Mas há casais que jogam com os sonhos como se jogassem tênis. Ficam à espera do momento certo para a cortada. Camus anotava no seu diário  pequenos fragmentos para os livros que pretendia escrever. Um deles, que se encontra nos Primeiros Cadernos, é sobre este jogo de tênis: “Cena: o marido, a mulher, a galeria. O primeiro tem valor e gosta de brilhar. A segunda guarda silêncio, mas, com pequenas frases secas, destrói todos os propósitos do caro esposo. Desta forma marca constantemente a sua superioridade. O outro domina-se, mas sofre uma humilhação e é assim que nasce o ódio. Exemplo: com um sorriso: ‘Não se faça mais estúpido do que é, meu amigo’. A galeria torce e sorri pouco à vontade. Ele cora, aproxima-se dela, beija-lhe a mão suspirando: ‘Tens razão, minha querida.’ A situação está salva e o ódio vai aumentando.”

Tênis é assim: recebe-se o sonho do outro para destruí-lo, arrebentá-lo, como bolha de sabão... O que se busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento. Aqui, quem ganha sempre perde. Já no frescobol é diferente: o sonho do outro é um brinquedo que deve ser preservado, pois se sabe que, se é sonho, é coisa delicada, do coração. O bom ouvinte é aquele que, ao falar, abre espaços para que as bolhas de sabão do outro voem livres. Bola vai, bola vem - cresce o amor... Ninguém ganha para que os dois ganhem. E se deseja então que o outro viva sempre, eternamente, para que o jogo nunca tenha fim...

Rubem Alves 
(Correio Popular)

segunda-feira, 20 de maio de 2013

A vida é uma obrigação de que é preciso dar conta.



                                              


A Velha Amiga
Conversávamos sobre saudade. E de repente me apercebi de que não tenho saudade de nada. Isso independente de qualquer recordação de felicidade ou de tristeza, de tempo mais feliz, menos feliz. Saudade de nada. Nem da infância querida, nem sequer das borboletas azuis, Casimiro.Nem mesmo de quem morreu. De quem morreu sinto é falta, o prejuízo da perda, a ausência. A vontade da presença, mas não no passado, e sim presença atual.

Saudade será isso? Queria tê-los aqui, agora. Voltar atrás? Acho que não, nem com eles.

A vida é uma coisa que tem de passar, uma obrigação de que é preciso dar conta. Uma dívida que se vai pagando todos os meses, todos os dias. Parece loucura lamentar o tempo em que se devia muito mais.Queria ter palavras boas, eficientes, para explicar como é isso de não ter saudades; fazer sentir que estou exprimindo um sentimento real, a humilde, a nua verdade. Você insinua a suspeita de que talvez seja isso uma atitude.

Meu Deus, acha-me capaz de atitudes, pensa que eu me rebaixaria a isso? Pois então eu lhe digo que essa capacidade de morrer de saudades, creio que ela só afeta a quem não cresceu direito; feito uma cobra que se sentisse melhor na pele antiga, não se acomodasse nunca à pele nova. Mas nós, como é que vamos ter saudades de um trapo velho que não nos cabe mais?

Fala que saudade é sensação de perda. Pois é. E eu lhe digo que, pessoalmente, não sinto que perdi nada. Gastei, gastei tempo, emoções, corpo e alma. E gastar não é perder, é usar até consumir.
E não pense que estou a lhe sugerir tragédias. Tirando a média, não tive quinhão por demais pior que o dos outros. Houve muito pedaço duro, mas a vida é assim mesmo, a uns traz os seus golpes mais cedo e a outros mais tarde; no fim, iguala a todos.

Infância sem lágrimas, amada, protegida. Mocidade - mas a mocidade já é de si uma etapa infeliz. Coração inquieto que não sabe o que quer, ou quer demais.

Qual será, nesta vida, o jovem satisfeito? Um jovem pode nos fazer confidências de exaltação, de embriaguez; de felicidade, nunca. Mocidade é a quadra dramática por excelência, o período dos conflitos, dos ajustamentos penosos, dos desajustamentos trágicos. A idade dos suicídios, dos desenganos e, por isso mesmo, dos grandes heroísmos. É o tempo em que a gente quer ser dono do mundo - e ao mesmo tempo sente que sobra nesse mesmo mundo. A idade em que se descobre a solidão irremediável de todos os viventes. Em que se pesam os valores do mundo por uma balança emocional, com medidas baralhadas; um quilo às vezes vale menos do que um grama; e por essas medida, pode-se descobrir a diferença metafísica que há entre uma arroba de chumbo e uma arroba de plumas.

Não sei mesmo como, entre as inúmeras mentiras do mundo, se consegue manter essa mentira maior de todas: a suposta felicidade dos moços. Por mim, sempre tive pena deles, da sua angústia e do seu desamparo. Enquanto esta idade a que chegamos, você e eu, é o tempo da estabilidade e das batalhas ganhas. Já pouco se exige, já pouco se espera. E mesmo quando se exige muito, só se espera o possível. Se as surpresas são poucas, poucos também os desenganos.


A gente vai se aferrando a hábitos, a pessoas e objetos. Ai, um um dos piores tormentos dos jovens é justamente o desapego das coisas, essa instabilidade do querer, a sede do que é novo, o tédio do possuído.


E depois há o capítulo da morte, sempre presente em todas as idades. Com a diferença de que a morte é a amante dos moços e a companheira dos velhos.Para os jovens ela é abismo e paixão. Para nós, foi se tornando pouco a pouco uma velha amiga, a se anunciar devagarinho: o cabelo branco, a preguiça, a ruga no rosto, a vista fraca, os achaques. Velha amiga que vem de viagem e de cada porto nos manda um postal, para indicar que já embarcou.


Rachel de Queiroz

(Crônica publicada no jornal "O Estado de São Paulo"  -  13/01/2001)

Não ter saudade de nada.

A vida é uma obrigação de que é preciso dar conta.
A morte é a amante dos moços e  a companheira dos velhos
...que triste!