sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Entre mim e a vida há um vidro tênue.






INTERVALO DOLOROSO

"Tudo me cansa, mesmo o que não me cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha
dor.
Quem me dera ser uma criança pondo barcos de papel num tanque de quinta, com um dossel
rústico de entrelaçamentos de parreira pondo xadrezes de luz e sombra verde nos reflexos
sombrios da pouca água.

Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a
vida, eu não posso lhe tocar.
Raciocinar a minha tristeza? Para quê, se o raciocínio é um esforço? e quem é triste não pode
esforçar-se. Nem mesmo abdico daqueles gestos banais da vida de que eu tanto quereria
abdicar. Abdicar é um esforço, e eu não possuo o de alma com que esforçar-me.

Quantas vezes me punge o não ser o manobrante daquele carro, o cocheiro daquele trem!
qualquer banal Outro suposto cuja vida, por não ser minha, deliciosamente se me penetra de
eu querê-la e se me penetra até de alheia!
Eu não teria o horror à vida como a uma Coisa. A noção da vida como um Todo não me
esmagaria os ombros do pensamento.

Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda chuva contra um raio.
Sou tão inerte, tão pobrezinho, tão falho de gestos e atos.
Por mais que por mim me embrenhe, todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de
angústia.

Mesmo eu , o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas
aparecem-me nítidas. Esvai-se a névoa de quem me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a
carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhecê-las durezas. Todos os
pesos visíveis de objetos me pesam por a alma dentro.

A minha vida é como se me batessem com ela."

Bernardo Soares, O Fernando Pessoa - de todos eles- que mais me toca o coração.

in O Livro do Desassossego.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Estou farto de mim.


Nuvens… Hoje tenho consciência do céu, pois há dias em que o não olho mas sinto, vivendo na cidade e não na natureza que a inclui. Nuvens… São elas hoje a principal realidade, e preocupam-me como se o velar do céu fosse um dos grandes perigos do meu destino.

 Nuvens… Passam da barra para o Castelo, de Ocidente para Oriente, num tumulto disperso e despido, branco às vezes, se vão esfarrapadas na vanguarda de não sei o quê; meio-negro outras, se, mais lentas, tardam em ser varridas pelo vento audível; negras de um branco sujo, se, como se quisessem ficar, enegrecem mais da vinda que da sombra o que as ruas abrem de falso espaço entre as linhas fechadoras da casaria.

Nuvens… Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira. Sou o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a média abstrata e carnal entre coisas que não são nada, sendo eu nada também. Nuvens… Que desassossego se sinto, que desconforto se penso, que inutilidade se quero!

 Nuvens… Estão passando sempre umas muito grandes, parecendo, porque as casas não deixam ver se são menos grandes que parecem, que vão a tomar todo o céu; outras de tamanho incerto, podendo ser duas juntas ou uma que se vai partir em duas, sem sentido no ar alto contra o céu fatigado; outras ainda, pequenas, parecendo brinquedos de poderosas coisas, bolas irregulares de um jogo absurdo, só para um lado, num grande isolamento, frias.

Nuvens… Interrogo-me e desconheço-me. Nada tenho feito de útil nem farei de justificável. Tenho gasto a parte da vida que não perdi em interpretar confusamente coisa nenhuma, fazendo versos em prosa às sensações intransmissíveis com que torno meu o universo incógnito. Estou farto de mim, objetiva e subjetivamente  Estou farto de tudo, e do tudo de tudo.

 Nuvens… São tudo, desmanchamentos do alto, coisas hoje só elas reais entre a terra nula e o céu que não existe; farrapos indescritíveis do tédio que lhes imponho; névoa condensada em ameaças de cor ausente; algodões de rama sujos de um hospital sem paredes.

 Nuvens… São como eu, uma passagem desfeita entre o céu e a terra, ao sabor de um impulso invisível, trovejando ou não trovejando, alegrando brancas ou escureando negras, ficções do intervalo e do descaminho, longe do ruído da terra e sem ter o silêncio do céu.

 Nuvens… Continuam passando, continuam sempre passando, passarão sempre continuando, num enrolamento descontínuo de meadas baças, num alongamento difuso de falso céu desfeito.

Bernardo Soares/FP  in O Livro do Desassossego.

O "meu" livro para sempre!

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Não sou a mulher maravilha.


                                 

Que o outro saiba quando estou com medo, e me tome nos braços sem fazer perguntas demais.

Que o outro note quando preciso de silêncio e não vá embora batendo a porta, mas entenda que não o amarei menos porque estou quieta.

Que o outro aceite que me preocupo com ele e não se irrite com minha solicitude, e se ela for excessiva saiba me dizer isso com delicadeza ou bom humor.

Que o outro perceba minha fragilidade e não ria de mim, nem se aproveite disso.

Que se eu faço uma bobagem o outro goste um pouco mais de mim, porque também preciso poder fazer tolices tantas vezes.

Que se estou apenas cansada o outro não pense logo que estou nervosa, ou doente, ou agressiva, nem diga que reclamo demais.

Que o outro sinta quanto me dói a idéia da perda, e ouse ficar comigo um pouco - em lugar de voltar logo à sua vida.

Que se estou numa fase ruim o outro seja meu cúmplice, mas sem fazer alarde nem dizendo 'Olha que estou tendo muita paciência com você!'

Que quando sem querer eu digo uma coisa bem inadequada diante de mais pessoas, o outro não me exponha nem me ridicularize.

Que se eventualmente perco a paciência, perco a graça e perco a compostura, o outro ainda assim me ache linda e me admire.

Que o outro não me considere sempre disponível, sempre necessariamente compreensiva, mas me aceite quando não estou podendo ser nada disso.

Que, finalmente, o outro entenda que mesmo se às vezes me esforço, não sou, nem devo ser a mulher-maravilha, mas apenas uma pessoa: vulnerável e forte, incapaz e gloriosa, assustada e audaciosa - uma mulher.

 Canção das Mulheres - Lya Luft
In Pensar é Transgredir /Editora Record, 2004.

O problema , creio, é que nos esforçamos para ser a mulher maravilha e não conseguir é uma real frustração. Que fácil seria apenas viver...Como e onde se aprende isso?

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O mal multiplica-se como sombra...



Não conhecemos nosso destino e nem as circunstâncias interiores e exteriores que o levarão ao sucesso ou ao malogro de nossas intenções de vida. O mal não necessita de nenhuma intrepidez de caráter: multiplica-se como sombra sem fonte de luz definida.

O bem requer um esforço de sociedade e uma disposição de vontade individual tais que sua realização é sempre um ato de coragem, como, aliás, a verdadeira alegria.
A distinção entre um e outro é objeto da ética e de seus finalismos morais.
A violência é a loucura do mal e a sua banalidade, para lembrarmos Hannah Arendt, pode ser mais danosa do que todos os maus instintos juntos.

Não podemos perder nossa capacidade de indignação.

A indigência ética - para lembrar agora uma expressão de Heidegger - de nossa época é o grande desafio de nossa sociedade. Buscar arrancá-la de um relativismo absoluto no qual tudo se compreende e tudo se perdoa, sem deixá-la resvalar pela pirambeira metafísica dos universalismos místicos e racionalistas, em que tudo se explica e nada se entende, é a tarefa maior que devemos nos propor realizar.

Estudar, sob os seus mais diferentes aspectos, os mecanismos da violência é, sem dúvida, um passo importante para o seu entendimento, mas não necessariamente para o seu perdão. Um pouco de Nietzche não fará mal a ninguém!


Violência : faces e máscaras.
In O mistério da impiedade

Carlos Vogt

"Por isso Deus lhes envia a operação do erro, para que creiam na mentira, e para que sejam julgados todos os que não creram na verdade, antes tiveram prazer na iniqüidade". (Tessalonicenses, 2: 11- 12). 

Texto integral :http://www.comciencia.br/reportagens/violencia/vio01.htm

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Pela literatura os seres vivos se reconhecem e dialogam.


"Vivemos numa época de especialização do conhecimento, causada pelo prodigioso desenvolvimento da ciência e da técnica, e da sua fragmentação em inumeráveis afluentes e compartimentos estanques. A especialização permite aprofundar a exploração e a experimentação, e é o motor do progresso; mas determina também, como consequência negativa, a eliminação daqueles denominadores comuns da cultura graças aos quais os homens e as mulheres podem coexistir, comunicar-se e se sentir de algum modo solidários.
A especialização leva à incomunicabilidade social, à fragmentação do conjunto de seres humanos em guetos culturais de técnicos e especialistas, aos quais a linguagem, alguns códigos e a informação progressivamente setorizada relegam naquele particularismo contra o qual nos alertava o antiquíssimo adágio: não é necessário se concentrar tanto no ramo nem na folha, a ponto de esquecer que eles fazem parte de uma árvore, e esta de um bosque. O sentido de pertencimento, que conserva unido o corpo social e o impede de se desintegrar em uma miríade de particularismos solipsistas, depende, em boa medida, de que se tenha uma consciência precisa da existência do bosque. E o solipsismo - de povos ou indivíduos - gera paranoias e delírios, as deformações da realidade que sempre dão origem ao ódio, às guerras e aos genocídios. A ciência e a técnica não podem mais cumprir aquela função cultural integradora em nosso tempo, precisamente pela infinita riqueza de conhecimentos e da rapidez de sua evolução que levou à especialização e ao uso de vocabulários herméticos.
A literatura, ao contrário, diferentemente da ciência e da técnica, é, foi e continuará sendo, enquanto existir, um desses denominadores comuns da experiência humana, graças ao qual os seres vivos se reconhecem e dialogam, independentemente de quão distintas sejam suas ocupações e seus desígnios vitais, as geografias, as circunstâncias em que se encontram e as conjunturas históricas que lhes determinam o horizonte. Nós, leitores de Cervantes ou de Shakespeare, de Dante ou de Tolstoi, nos sentimos membros da mesma espécie porque, nas obras que eles criaram, aprendemos aquilo que partilhamos como seres humanos, o que permanece em todos nós além do amplo leque de diferenças que nos separam. E nada defende melhor os seres vivos contra a estupidez dos preconceitos, do racismo, da xenofobia, das obtusidades localistas do sectarismo religioso ou político, ou dos nacionalismos discriminatórios, do que a comprovação constante que sempre aparece na grande literatura: a igualdade essencial de homens e mulheres em todas as latitudes, e a injustiça representada pelo estabelecimento entre eles de formas de discriminação, sujeição ou exploração."
Mario Vargas Llosa
Mario Vargas Llosa recebe prêmio literário Carlos Fuentes das mãos do presidente mexicano Felipe Calderon (21/11/12)

sábado, 17 de novembro de 2012

O que faz o sucesso da saga Crepúsculo?



O que faz uma professora de literatura que  lê, relê e propaga incontáveis vezes , durante – quase- 48 anos, Fernando Pessoa, Saramago, Machado de Assis, Drummond, Clarice Lispector, Borges, Lobo Antunes, Kafka e mais dezenas  de clássicos, estar, hoje, imersa  na saga “Crepúsculo”?!
Em princípio, o mesmo que me levou a Harry Potter, Senhor do  Anéis ...a curiosidade em saber por que era tão difícil convencer um adolescente a ler, enquanto essa obras disparavam como sucessos editoriais e cinematográficos. Linguagem ágil, fantasia, um mundo paralelo, no qual tudo era possível e que falava a  linguagem jovem que um adulto faz muito esforço para compreender.

Com  “ Crepúsculo”, a história começou com minha neta – Cíntia, aos 11 anos – absolutamente fascinada  pelo personagem  e  pelo inusitado da trama Ela conseguia ler em dois, três dias, um calhamaço de páginas , com a maior sofreguidão. E queria mais.

 Mergulhei  nos cinco exemplares do texto , e senti que não era de todo mal, mas alguma coisa não se encaixava. Assisti aos filmes mais de uma vez e – confesso- achava tudo um pouco absurdo, mas os contos de fada também o são.

Ontem ,depois de assistir a “Amanhecer, o final”, enquanto a Cíntia chorava copiosamente pela segunda vez, porque já havia chorado na estreia, finalmente entendi. Uma família de vampiros  que se mantém unida para defender-se, que se ama, que protege o mais fraco. Um vampiro jovem que ama e RESPEITA a mulher  amada, a protege e luta por ela. A amizade para lá de improvável – e leal- com um ser de outra espécie e- de novo – o respeito.

Acredito que as adolescentes pensem que gritam e choram pelo mocinho-vampiro  rico, bonito ,apaixonado, cavalheiro, protetor...sem dúvida, é por isso mesmo, mas tem mais...é por umA questão de valores. Em uma sociedade, no qual estes  estão esquecidos ,vilipendiados e desprezados, Stephenie Meyer conseguiu passar- sutil  subliminarmente a mensagem de respeito seja em que linguagem for.

O que faz Edward  querer Bella, uma garota insossa ( ou seria recatada, em uma época de “periguetes”?). O que faz Bella querer um vampiro branquelo que brilha? ( uma “fadinha “segundo os meninos enciumados com o sucesso do Edward).AMOR E RESPEITO DE AMBOS, UM PELO OUTRO. Simples assim.
 
Penso que a saga cumpriu seu papel para os jovens e  para os adultos que se dispuserem a enxergar. O mundo real  está distorcido. Vanguarda , futurismo, contemporaneidade não têm  que sepultar valores morais. Estes vivem apesar de.
 
Estou feliz por ter descoberto isso. A Cíntia vai guardar os livros na estante e a história no coração.
 
(...mas continuo desejando, do fundo do meu coração, que todos leiam , TAMBÉM, Fernando Pessoa, Saramago, Guimarães Rosa, Garcia Marquez,etc, etc, etc....)

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Os vestígios também se vão.


(...)Naturalmente, nada impede que você recoloque a cadeira no mesmo lugar de antes, se sente nela e permaneça ali por quanto tempo quiser, ou conseguir, e durante todo esse tempo goze a sensação de estar na posse da sua materialidade perdida. Mas essa sensação é ilusória, pois esses vestígios não fazem mais parte de você: só podem ser ocupados provisoriamente, como uma roupa que se veste. Assim que se cansar desse jogo e se levantar da cadeira, você vai voltar a perdê-los: mais ainda, vai perder também uma pequena porção adicional de sua matéria, mais vestígios seus que vão ficar no ar, superpostos aos anteriores.

Esses vestígios mais cedo ou mais tarde vão se dispersar, com o movimento constante de corpos no quarto, e se perder para sempre. Assim, você está constantemente largando camadas sucessivas de seu ser, desintegrando-se a cada instante de sua existência no espaço; e é por isso que você não é eterno, não pode ser eterno, pelo mesmo motivo que um lápis ou uma borracha não podem ser eternos.

Mas há uma maneira simples de alterar essa situação - quer dizer, não alterá-la objetivamente, o que seria impossível, e sim modificar o modo como você a vivencia (e como você só sabe das situações o que vivencia delas, para todos os fins práticos modificar sua percepção de uma situação é a mesma coisa que modificar a situação em si): basta sentar-se na cadeira, pegar um lápis e uma folha de papel, e começar a escrever.


in Paraísos Artificiais ( P.H.Britto)
´


É instigante  lembrar que apenas  passamos pela vida e de nós se vão até os vestígios.
Que tudo se desintegra  por completo,mesmo a simples memória.
 A única permanência possível está em palavras ...as que permanecem.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Saudade de mim.


Saudade de mim...
daquela que eu , um dia, fui.
Eu estou em algum lugar, 
mas- há muito- perdi-me,
por entre sonhos sem rumo
nos desvãos dos caminhos,
não sei mais onde me encontrar.

Talvez, um dia.
Talvez, nunca mais.

Gizelda ( melancolicamente consciente de que -há muito- está perdida de si e  tem pouca chance de se encontrar) Sem tempo..

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

À aparição da vida somos um breve ponto perdido.




Há uma distância infinita entre a aparição da verdade, a imediata evidência de seja o que for, e até mesmo o seu reconhecimento; quando olhamos a evidência pela segunda vez, já ela está alinhada, classificada, endurecida entre as coisas que nos cercam. Eis porque nós ignoramos ou esquecemos depressa a face do que há de estranho nos fatos mais banais: no da vida, da morte.

A memória fácil do homem é apenas a sua recordação. Ela começa para cada um de nós naquilo que desde a infância lhe referenciou a vida. Mas a outra, a memória pura e que é apenas a vertigem das eras, eco de uma voz que transcende os limites do tempo, recuperando-se talvez aí, nesses pontos de referência, instala-nos todavia, porque o momento é de milagre, num passado e num futuro sem limites, reinventa-nos um acorde único, essa música milenária de estrelas e de nada, abre-nos à aparição da vida onde somos um breve ponto perdido, e a memória é assim uma pura vibração para os quatro cantos do mundo, uma pura expectativa de uma interrogação submersa. É então possível vencer a muralha concreta que nos cerca, a realidade imediata, os fatos conhecidos ou relembrados, e acordar à distância ilimitada o eco dessa voz que nos transcende.

O sangue que nos aquece e nos inventa a vida, é o ar que respiramos, dá aos sonhos as formas dessa presença invisível de tudo o que nos cerca. Um modo de pensar, de sentir, organiza-se nos limites das raízes indistintas, transforma-se aí obscuramente, enquanto as nossas mãos distraídas continuam a moldar o pó dos sonhos mortos. Somos a carne e a presença do todo que nos cerca. As células vivas de um espírito que não morre vão expulsando as que já se corromperam. Lentamente, uma evidência nova habita-nos os nervos, corporiza-se conosco, é a nossa pessoa. E um dia descobrimos uma unidade miraculosa, uma certeza de sermos, o puro ato da nossa identidade – no que afirmamos ou negamos.

Só há um problema para o homem, só há uma forma de humanismo: a e
vidência de uma alegria final nos limites da nossa condição. Até lá, admito que tudo seja provisório e ingênuo.”

Vergílio Ferreira – Carta ao Futuro


Preciso de tempo, espaço interior e ousadia para mergulhar em textos de Vergílio Ferreira.Eles se corporificam em  nó nas minhas entranhas.


quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.


(…) Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente.Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. É porque ainda sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte ” (pp.42-43). 

(…) Talvez eu tenha de chamar de “mundo” esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que “Deus” é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. (…)Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe” (pp.44-45).

Clarice Lispector, Felicidade Clandestina: contos, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1998,  
Conto “Perdoando Deus
”.


Um exercício de clarividência, angústia e questionamentos...quase sempre sem respostas.
Clarice é um mundo indevassável no qual eu me perco e não quero me encontrar.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Cada um hospeda dentro de si uma águia.


“Era uma vez, um camponês que foi à floresta vizinha, apanhar um pássaro para mantê-lo cativo em sua casa. Conseguiu pegar num filhote de águia. Colocou-o no galinheiro junto com as galinhas. Comia milho e ração própria para galinhas. Embora a águia fosse o rei/a rainha de todos os pássaros.
Depois de cinco anos este homem recebeu em sua casa a visita de um naturista. Enquanto passeavam pelo jardim, disse o naturista:
- Esse pássaro aí não é uma galinha. É uma águia.
- De facto, disse o camponês. É águia. Mas eu criei-a como galinha. Ela não é mais uma águia. Transformou-se em galinha como as outras, apesar das asas de quase três metros de extensão.
- Não, retrucou o naturalista. Ela é e será sempre uma águia. Pois tem um coração de águia este coração a fará um dia voar às alturas.
- Não, não, insistiu o camponês. Ela virou galinha e jamais voará como águia.
Então decidiram fazer uma prova. O naturalista tomou a águia, ergueu-a bem alto e desafiando-a disse:
- Já que você de facto é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, então abra suas asas e voe!
A águia ficou sentada sobre o braço estendido do naturalista. Olhava distraidamente ao redor. Viu as galinhas lá em baixo, ciscando grãos. E pulou para junto delas.
O camponês comentou:
- Eu lhe disse, ela virou uma simples galinha!
- Não, tornou a insistir o naturalista. Ela é uma águia. E uma águia será sempre uma águia. Vamos experimentar novamente amanhã.
No dia seguinte, o naturalista subiu com a águia no tecto da casa. Sussurrou-lhe:
- Águia, já que você é uma águia, abra suas asas e voe!
Mas quando a águia viu lá em baixo as galinhas, ciscando o chão, pulou e foi para junto delas.
O camponês sorriu e voltou à carga:
- Eu havia-lhe dito, ela virou galinha!
- Não, respondeu firmemente o naturalista. Ela é águia, possuirá sempre um coração de águia. Vamos experimentar ainda uma última vez. Amanhã a farei voar.
No dia seguinte, o naturalista e o camponês levantaram bem cedo. Pegaram a águia, levaram-na para fora da cidade, longe das casas dos homens, no alto de uma montanha. O sol nascente dourava os picos das montanhas.
O naturalista ergueu a águia para o alto e ordenou-lhe:
- Águia, já que você é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, abra suas asas e voe!
A águia olhou ao redor. Tremia como se experimentasse nova vida. Mas não voou. Então o naturalista segurou-a firmemente, bem na direcção do sol, para que seus olhos pudessem se encher da claridade solar e da vastidão do horizonte.
Nesse momento, ela abriu suas potentes asas, grasnou com o típico kau, kau das águias e ergueu-se, soberana, sobre si mesma. E começou a voar, a voar para o alto, a voar cada vez mais alto. Voou… voou… até confundir-se com o azul do firmamento…
(…)



Leonardo Boff – A águia e a galinha (uma metáfora da condição humana)Dedico este livro:– aos sensíveis à dimensão feminina, a águia mais aprisionada e reprimida de
nossa cultura. Sem ela,James Aggrey jamais teria contado a história que contou. Eu,
certamente, não teria tido a sensibilidade para guardá-Ia e refleti-Ia no coração. E
vocês não seriam capazes de experienciá-Ia.
– a todos os que, sendo águias, são impedidos de o ser e se vêem reduzidos à condição de galinhas.
– de maneira especial ao povo negro e às nações indígenas, naturalmente portadores da ânsia de ser-águia.


Por: http://hermesgama.files.wordpress.com/2008/09/leonardo-boff-a-aguia-e-a-galinha.pdf .
Extensível:http://www.anped.org.br/concurso/curriculos/20mhdanielarezende/danielarezendemonog.pdf .



Ao ver uma galinha e uma águia, você vai ver mais que uma galinha e uma águia. Você vai se confrontar com duas dimensões fundamentais da existência humana. A dimensão do enraizamento, do cotidiano, do prosaico, do limitado: o símbolo da galinha. A dimensão da abertura, do desejo, do poético, do ilimitado: o símbolo da águia. Como equilibrar estes dois pólos? Como impedir que a cultura da homogeneização afogue a águia dentro de nós e nos tolha voar? 
Para dar uma resposta convincente a esses desafios, o autor visita a moderna cosmologia, a psicologia profunda, a nova antropologia, a ecologia, a espiritualidade e a mística. O resultado é uma reflexão instigante que provoca entusiasmo na busca da identidade humana através da inclusão das contradições e da superação dos eventuais obstáculos a nível pessoal, social e planetário.

Cada um hospeda dentro de si uma águia. Sente-se portador de um projeto infinito. Quer romper os limites apertados de um arranjo existencial.
Há movimentos na política, na educação e no processo de mundialização que pretendem reduzir-nos a simples galinhas, confinadas aos limites do terreiro. Como vamos dar asas à águia, ganhar altura, integrar também a galinha e sermos heróis de nossa própria saga? 

domingo, 4 de novembro de 2012

Nada nem ninguém vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.



CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA.

 Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. 
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo

(...).
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objeto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.



Lisboa, 25/6/1959
Jorge de Sena

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Três dias para ver.

                     

                 O que você olharia se tivesse apenas três dias de visão?
Helen Keller, cega e surda desde bebê, dá a sua resposta neste belo ensaio, publicado no Reader’s Digest (

Várias vezes pensei que seria uma benção se todo ser humano, de repente, ficasse cego e surdo por alguns dias no princípio da vida adulta. As trevas o fariam apreciar mais a visão e o silêncio lhe ensinaria as alegrias do som.
De vez em quando testo meus amigos que enxergam para descobrir o que eles vêem. Há pouco tempo perguntei a uma amiga que voltava de um longo passeio pelo bosque o que ela observara. “Nada de especial”, foi à resposta.
Como é possível, pensei, caminhar durante uma hora pelos bosques e não ver nada digno de nota? Eu, que não posso ver, apenas pelo tacto encontro centenas de objetos que me interessam. Sinto a delicada simetria de uma folha. Passo as mãos pela casca lisa de uma bétula ou pelo tronco áspero de um pinheiro.
Na primavera, toco os galhos das árvores na esperança de encontrar um botão, o primeiro sinal da natureza despertando após o sono do inverno. Por vezes, quando tenho muita sorte, pouso suavemente a mão numa arvorezinha e sinto o palpitar feliz de um pássaro cantando.
As vezes meu coração anseia por ver tudo isso. Se consigo ter tanto prazer com um simples toque, quanta beleza poderia ser revelada pela visão! E imaginei o que mais gostaria de ver se pudesse enxergar, digamos por apenas três dias.
Eu dividiria esse período em três partes. No primeiro dia gostaria de ver as pessoas cuja bondade e companhias fizeram minha vida valer a pena. Não sei o que é olhar dentro do coração de um amigo pelas “janelas da alma”, os olhos. Só consigo “ver” as linhas de um rosto por meio das pontas dos dedos. Posso perceber o riso, a tristeza e muitas outras emoções. Conheço meus amigos pelo que toco em seus rostos.
Como deve ser mais fácil e muito mais satisfatório para você, que pode ver, perceber num instante as qualidades essenciais de outra pessoa ao observar as sutilezas de sua expressão, o tremor de um músculo, a agitação das mãos. Mas será que já lhe ocorreu usar a visão para perscrutar a natureza íntima de um amigo? Será que a maioria de vocês que enxergam não se limita a ver por alto as feições externas de uma fisionomia e se dar por satisfeita?
Por exemplo, você seria capaz de descrever com precisão o rosto de cinco bons amigos? Como experiência, perguntei a alguns maridos qual a exata cor dos olhos de suas mulheres e muitos deles confessaram, encabulados, que não sabiam.
Ah, tudo que eu veria se tivesse o dom da visão por apenas três dias!
O primeiro dia seria muito ocupado. Eu reuniria todos os meus amigos queridos e olharia seus rostos por muito tempo, imprimindo em minha mente as provas exteriores da beleza que existe dentro deles. Também fixaria os olhos no rosto de um bebê, para poder ter a visão da beleza ansiosa e inocente que precede a consciência individual dos conflitos que a vida apresenta. Gostaria de ver os livros que já foram lidos para mim e que me revelaram os meandros mais profundos da vida humana. E gostaria de olhar nos olhos fiéis e confiantes de meus cães, o pequeno scottie terrier e o vigoroso dinamarquês.
À tarde daria um longo passeio pela floresta, intoxicando meus olhos com belezas da natureza. E rezaria pela glória de um pôr-do-sol colorido. Creio que nessa noite não conseguiria dormir.
No dia seguinte eu me levantaria ao amanhecer para assistir ao empolgante milagre da noite se transformando em dia. Contemplaria assombrado o magnífico panorama de luz com que o Sol desperta a Terra adormecida.
Esse dia eu dedicaria a uma breve visão do mundo, passado e presente. Como gostaria de ver o desfile do progresso do homem, visitaria os museus. Ali meus olhos veriam a história condensada da Terra — os animais e as raças dos homens em seu ambiente natural; gigantescas carcaças de dinossauros e mastodontes que vagavam pelo planeta antes da chegada do homem, que, com sua baixa estatura e seu cérebro poderoso, dominaria o reino animal.
Minha parada seguinte seria o Museu de Artes. Conheço bem, pelas minhas mãos, os deuses e as deusas esculpidos da antiga terra do Nilo. Já senti pelo tacto as cópias dos frisos do Paternon e a beleza rítmica do ataque dos guerreiros atenienses. As feições nodosas e barbadas de Homero me são caras, pois também ele conheceu a cegueira.
Assim, nesse meu segundo dia, tentaria sondar a alma do homem por meio de sua arte. Veria então o que conheci pelo tacto. Mais maravilhoso ainda, todo o magnífico mundo da pintura me seria apresentado. Mas eu poderia ter apenas uma impressão superficial. Dizem os pintores que, para se apreciar a arte, real e profundamente, é preciso educar o olhar. É preciso, pela experiência, avaliar o mérito das linhas, da composição, da forma e da cor. Se eu tivesse a visão, ficaria muito feliz por me entregar a um estudo tão fascinante.
À noite de meu segundo dia seria passada no teatro ou no cinema. Como gostaria de ver a figura fascinante de Hamlet ou o tempestuoso Falstaff no colorido cenário elisabetano! Não posso desfrutar da beleza do movimento rítmico senão numa esfera restrita ao toque de minhas mãos. Só posso imaginar vagamente a graça de uma bailarina, como Pavlova, embora conheça algo do prazer do ritmo, pois muitas vezes sinto o compasso da música vibrando através do piso.
Imagino que o movimento cadenciado seja um dos espetáculos mais agradáveis do mundo. Entendi algo sobre isso, deslizando os dedos pelas linhas de um mármore esculpido; se essa graça estática pode ser tão encantadora, deve ser mesmo muito mais forte a emoção de ver a graça em movimento.
Na manhã seguinte, ávida por conhecer novos deleites, novas revelações de beleza, mais uma vez receberia a aurora. Hoje, o terceiro dia, passarei no mundo do trabalho, nos ambientes dos homens que tratam do negócio da vida. A cidade é o meu destino.
Primeiro, paro numa esquina movimentada, apenas olhando para as pessoas, tentando, por sua aparência, entender algo sobre seu dia-a-dia. Vejo sorrisos e fico feliz. Vejo uma séria determinação e me orgulho. Vejo o sofrimento e me compadeço.
Caminhando pela 5ª Avenida, em Nova York, deixo meu olhar vagar, sem se fixar em nenhum objeto em especial, vendo apenas um caleidoscópio fervilhando de cores. Tenho certeza de que o colorido dos vestidos das mulheres movendo-se na multidão deve ser uma cena espetacular, da qual eu nunca me cansaria. Mas talvez, se pudesse enxergar, eu seria como a maioria das mulheres – interessadas demais na moda para dar atenção ao esplendor das cores em meio à massa.
Da 5ª Avenida dou um giro pela cidade – vou aos bairros pobres, às fábricas, aos parques onde as crianças brincam. Viajo pelo mundo visitando os bairros estrangeiros. E meus olhos estão sempre bem abertos tanto para as cenas de felicidade quanto para as de tristeza, de modo que eu possa descobrir como as pessoas vivem e trabalham, e compreendê-las melhor.
Meu terceiro dia de visão está chegando ao fim. Talvez haja muitas atividades a que devesse dedicar as poucas horas restantes, mas acho que na noite desse último dia vou voltar depressa a um teatro e ver uma peça cômica, para poder apreciar as implicações da comédia no espírito humano.
À meia-noite, uma escuridão permanente outra vez se cerraria sobre mim. Claro, nesses três curtos dias eu não teria visto tudo que queria ver. Só quando as trevas descessem de novo é que me daria conta do quanto eu deixei de apreciar.
Talvez este resumo não se adapte ao programa que você faria se soubesse que estava prestes a perder a visão. Mas sei que, se encarasse esse destino, usaria seus olhos como nunca usara antes. Tudo quanto visse lhe pareceria novo. Seus olhos tocariam e abraçariam cada objeto que surgisse em seu campo visual.
Então, finalmente, você veria de verdade, e um novo mundo de beleza se abriria para você.
Eu, que sou cega, posso dar uma sugestão àqueles que vêem: usem seus olhos como se amanhã fossem perder a visão. E o mesmo se aplica aos outros sentidos.
Ouça a música das vozes, o canto dos pássaros, os possantes acordes de uma orquestra, como se amanhã fossem ficar surdos. Toquem cada objeto como se amanhã perdessem o tacto. Sintam o perfume das flores, saboreiem cada bocado, como se amanhã não mais sentissem aromas nem gostos. Usem ao máximo todos os sentidos; goze de todas as facetas do prazer e da beleza que o mundo lhes revela pelos vários meios de contacto fornecidos pela natureza. Mas, de todos os sentidos, estou certa de que a visão deve ser o mais delicioso.

Dezembro 3, 2011
Reader’s Digest (Seleções)