terça-feira, 25 de setembro de 2012

O amor perde identidade na diferença.




Somos força porque somos vidas.Cada um de nós tende para si próprio com escalas pelos outros.Se temos por nós mesmos o respeito de nos acharmos interessantes....Toda aproximação é um conflito.O outro é sempre o obstáculo para quem procura.

Só quem não procura é feliz;porque só quem não busca , encontra, visto que quem não procura já tem, e já ter, seja o que for, é ser feliz, como não pensar é a parte melhor de ser rico.

(...)

O meu hábito de sonhar claro dá-me uma noção justa da realidade.Quem sonha demais precisa dar realidade ao sonho.Quem dá realidade ao sonho tem que dar ao sonho o equilíbrio da realidade.

(...)No meu sonho entras até mim pela porta da direita; se, quando entras, entras pela porta da esquerda, há já uma diferença entre a realidade e meu sonho.

Toda tragédia humana está neste pequeno exemplo de como aqueles COM quem pensamos nunca são aqueles EM quem pensamos.

O amor perde identidade na diferença.


In  " Livro do Desassossego"...Fernando Pessoa /Bernardo Soares.

O "meu"livro.
Minha Bíblia, desde o dia em que o tive às mãos pela primeira vez: 24/04/1999 às 13h57.
Mudou minha vida e a transforma a cada linha das 500 páginas, lidas e relidas todos os dias. É meu livro de cabeceira.Uma oração que me alimenta a alma.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Se você ama alguém, deixe-o livre.


O amor é uma escultura que se faz sozinha. É uma flor inesperada sem estação do ano para surgir nem para morrer. Vai sendo esboçado assim ao léu: aqui a sobrancelha se arqueia, ali desce a curva do pescoço, a mão toca a ponta de um pé, no meio estende-se a floresta das mil seduções. 

Imponderável como a obra de arte, o amor nem se define nem se enquadra: é cada vez outro, e novo, embora tão velho. Intemporal. Planta selvagem, precisa de ar para desabrochar mas também se move nos vãos mais escuros, em ambientes sufocantes onde rebrilham os olhos malignos da traição ou da indiferença, e a culpa o pode matar.

 O convívio é o exercito do amor na corda bamba. Os corpos se acomodam, as almas se espreitam, até se complementam. Mas pode-se cair no tédio – sem rede –, e bocejar olhando pela janela. Inventamos receitas para que o amor melhore, perdure, se incendeie e renove... nem murche nem morra. Nenhuma funciona: ele foge de qualquer sensatez, como o perfume das maçãs escapa num cesto de vime tampado.

 Se fossemos sensatos haveríamos de procurar nem amar, amar pouco, amar menos, amar com hora marcada e limites. Mas o amor, que nunca tem juízo, nos prega peças quando e onde menos esperamos. Nunca nos sentimos tão inteiros como nesses primeiros tempos em que estamos fragmentados: tirados de nós mesmos e esvaziados de tudo o mais, plenos só do outro em nós. Nos sentimos melhores, mais bonitos, andamos com mais elegância, amamos mais os amigos, todo mundo foi perdoados, nosso coração é um barco para o qual até naufragar seria glorioso (ah, que naufrágios...).
 Mais que isso, nesse castelo – como em qualquer castelo – não pode haver dois reis. Quem então cederá seu lugar, quem será sábio, quem se fará gueixa submissa ou servo feliz, para que o outro tome o lugar e se entronize e... reine?

 A palavra “liberdade” teria de ser mais presente, porém é mais convidada a discretamente afastar-se e permitir que em seu lugar assuma o comando alguma subalterna: tolerância, resignação, doação, adaptação. Rondando o fosso do castelo, a vilã de todas a culpa. Quem deixou sobre minha mesa o bilhete dizendo “se você ama alguém, deixe-o livre” sabia das coisas, portanto sabia também o desafio que me lançava.

 No mundo das palavras há tantos artifícios quantas são as nossas contradições. Por isso, conviver é tramar, trançar, largar, pegar, perder. E nunca definitivamente entender o que – se fossemos um pouco sábios – deveríamos fazer.

 Farsa, tragédia grega, outras soneto perfeito: o amor, com as palavras, se disfarça em doces armadilhas ou lâminas.

 Lya Luft- Pensar é Transgredir

O texto é belo, como aliás tudo que a  Lya escreve com grande sensibilidade, mas...a verdade é uma só: quando encontramos o amor, o que a gente quer mesmo é trancá-lo a sete chaves,fechar todas as portas e janelas para que ele seja todinho nosso.E aí,acontece o óbvio inaceitável : uma fresta, uma brecha...

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

E não ficou nada. Nem certezas. Nem sombras. Nem as cinzas.


Penso: talvez o sofrimento seja lançado às multidões em punhados e talvez o grosso caia em cima de uns e pouco ou nada em cima de outros. Ainda que o peso do meu peito seja custoso, qual é o peso de um abismo? ainda que me sinta um cego a crescer sem olhos para um percipício, tenho de me levantar desta cama. Tenho de levantar estes braços que não são meus, tenho de levantar estas pernas que não são minhas, mas de um rochedo(...). 

Mesmo que seja para sofrer, sofrer, tenho que ir de encontro àquilo que serei, por ter sido isto e não poder fugir, não poder fugir de me tornar alguma coisa(...).

O munco acabou e nem o tempo prosseguiu. A morte não existia no meio de todas as coisas mortas. Não existiam os cadáveres. Tinha morrido a memória da morte. As crianças morreram e isso, que era a única coisa pela qual valia a pena chorar, não era lamentado por ninguém, porque já não havia dor, já não havia lágrimas, já não havia olhos ou peito para chorar.

O mundo acabou. E não ficou nada. Nem certezas. Nem sombras. Nem as cinzas. Nem os gestos. Nem as palavras. Nem o amor. Nem o lume. Nem o céu. Nem os caminhos. Nem o passado. Nem as ideias. Nem o fumo. O mundo acabou. E não ficou nada. Nenhum sorriso. Nenhum pensamento. Nenhuma esperança. Nenhum consolo. Nenhum olhar.

In Nenhum Olhar / José Luís Peixoto.


Desde que conheci a obra de Peixoto,não consigo deixar de me emocionar quando a leio e,sobretudo,quando a releio.Ele tem o dom de me comover.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Grandes recompensas pelas nossas escolhas existem?



Uma pequenina mudança hoje acarreta-nos um amanhã profundamente diferente. São grandes as recompensas para aqueles que optam pelos caminhos duros e difíceis, mas essas recompensas acham-se ocultas pelos anos. 

Toda escolha é feita inteiramente às cegas, e o mundo não nos dá garantia alguma. A única maneira de evitar todas as escolhas assustadoras consiste em deixar a sociedade e tornar-se um ermitão, e também isso é uma escolha assustadora. O bom caráter advém de seguirmos nosso supremo senso de retidão, de confiarmos nos ideais sem querer estarmos certos de que darão certo.

Um dos desafios de nossa aventura na terra consiste em nos elevarmos acima de sistemas mortos... guerras, religiões, nações, destruições... recusarmos a fazer parte deles, e em vez disso exprimirmos o que temos de melhor dentro de nós. 

Não importa qual seja nossa habilitação ou nosso merecimento, nunca alcançaremos uma vida melhor até conseguirmos imaginá-la para nós próprios e permitir-nos tê-la

. Deus sabe que isso é verdade!” 

Richard Bach –  Fugindo do Ninho


Não sei até que ponto  uma escolha determina recompensas ocultas (?). A vida é surpreendente e não conseguimos entendê-la porque nossos sonhos são maiores do que nós. Atingi-los dependem , além de perseverança , de um fator que relutamos em aceitar: sorte!

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

...livros,quadros,discos e remorsos. O desamor.


Desmontar a casa
e o amor. Despregar
os sentimentos das paredes e lençóis.
Recolher as cortinas
após a tempestade
das conversas.
O amor não resistiu
às balas, pragas, flores
e corpos de intermeio.
Empilhar livros, quadros,
discos e remorsos.
Esperar o infernal
juizo final do desamor.
Vizinhos se assustam de manhã
ante os destroços junto à porta:
-pareciam se amar tanto!
Houve um tempo:
uma casa de campo,
fotos em Veneza,
um tempo em que sorridente
o amor aglutinava festas e jantares.
Amou-se um certo modo de despir-se
de pentear-se.
Amou-se um sorriso e um certo
modo de botar a mesa. Amou-se
um certo modo de amar.
No entanto, o amor bate em retirada
com suas roupas amassadas, tropas de insultos
malas desesperadas, soluços embargados.
Faltou amor no amor?
Gastou-se o amor no amor?
Fartou-se o amor?
No quarto dos filhos
outra derrota à vista:
bonecos e brinquedos pendem
numa colagem de afetos natimortos.
O amor ruiu e tem pressa de ir embora
envergonhado.
Erguerá outra casa, o amor?
Escolherá objetos, morará na praia?
Viajará na neve e na neblina?
Tonto, perplexo, sem rumo
um corpo sai porta afora
com pedaços de passado na cabeça
e um impreciso futuro.
No peito o coração pesa
mais que uma mala de chumbo.
 A Separação segundo Affonso Romano de Sant’Anna 

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Nenhum sonho acaba.



O marinheiro (excerto) Drama estático  
PARA LER, RELER, REFLETIR,ADMIRAR, ENFIM, FERNANDO PESSOA NA SUA PLENITUDE GENIAL
Um quarto num castelo antigo, à noite. Em um caixão no centro do quarto circular uma donzela morta é velada por outras três donzelas. A presença da morte é indelével nesse cenário e parece deixar as veladoras desconfortáveis a ponto de logo manifestarem o desejo de uma fuga da realidade.  
(...)
PRIMEIRA - Vejo pela janela um navio ao longe. É talvez aquele que vistes...
SEGUNDA - Não, minha irmã; esse que vedes busca sem dúvida um porto qualquer... Não podia ser que aquele que eu vi buscasse qualquer porto...
PRIMEIRA - Por que é que me respondestes?... Pode ser. . Eu não vi navio nenhum pela janela... Desejava ver um e falei-vos dele para não ter pena... Contai-nos agora o que foi que sonhastes à beira-mar...
SEGUNDA - Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha longínqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas passavam por elas... Não vi se alguma vez pousavam... Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia ali... Como ele não tinha meio de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido: pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de país com outras espécies de paisagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem das janelas... Cada hora ele construía em sonho esta falsa pátria, e ele nunca deixava de sonhar, de dia à sombra curta das grandes palmeiras, que se recortava, orlada de bicos, no chão areento e quente; de noite, estendido na praia, de costas e não reparando nas estrelas.
PRIMEIRA - Não ter havido uma árvore que mosqueasse sobre as minhas mãos estendidas a sombra de um sonho como esse!...
TERCEIRA - Deixai-a falar... Não a interrompais... Ela conhece palavras que as sereias lhe ensinaram... Adormeço para a poder escutar... Dizei, minha irmã, dizei... Meu coração dói-me de não ter sido vós quando sonháveis à beira-mar...
SEGUNDA - Durante anos e anos, dia a dia, o marinheiro erguia num sonho contínuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha uma pedra de sonho nesse edifício impossível... Breve ele ia tendo um país que já tantas vezes havia percorrido. Milhares de horas lembrava-se já de ter passado ao longo de suas costas. Sabia de que cor soíam ser os crepúsculos numa baía do norte, e como era suave entrar, noite alta, e com a alma recostada no murmúrio da água que o navio abria, num grande porto do sul onde ele passara outrora, feliz talvez, das suas mocidades a suposta...
(uma pausa)
PRIMEIRA - Minha irmã, por que é que vos calais?
 SEGUNDA - Não se deve falar demasiado... A vida espreita-nos sempre... Toda a hora é materna para os sonhos, mas é preciso não o saber... Quando falo de mais começo a separar-me de mim e a ouvir-me falar. Isso faz com que me compadeça de mim própria e sinta demasiadamente o coração. Tenho então uma vontade lacrimosa de o ter nos braços para o poder embalar como a um filho... Vede: o horizonte empalideceu... O dia não pode já tardar... Será preciso que eu vos fale ainda mais do meu sonho?
PRIMEIRA - Contai sempre, minha irmã, contai sempre... Não pareis de contar, nem repareis em que dias raiam... O dia nunca raia para quem encosta a cabeça no seio das horas sonhadas... Não torçais as mãos. Isso faz um ruído como o de uma serpente furtiva... Falai-nos muito mais do vosso sonho. Ele é tão verdadeiro que não tem sentido nenhum. Só pensar em ouvir-vos me toca música na alma...
SEGUNDA -- Sim, falar-vos-ei mais dele. Mesmo eu preciso de vo-lo contar. À medida que o vou contando, é a mim também que o conto... São três a escutar... (De repente, olhando para o caixão, e estremecendo). Três não... Não sei... Não sei quantas...
TERCEIRA - Não faleis assim... Contai depressa, contai outra vez... Não faleis em quantos podem ouvir... Nós nunca sabemos quantas coisas realmente vivem e vêem e escutam... Voltai ao vosso sonho... O marinheiro. O que sonhava o marinheiro?
 SEGUNDA (mais baixo, numa voz muito lenta) - Ao princípio ele criou as paisagens, depois criou as cidades; criou depois as ruas e as travessas, uma a uma, cinzelando-as na matéria da sua alma - uma a uma as ruas, bairro a bairro, até às muralhas dos cais de onde ele criou depois os portos... Uma a uma as ruas, e a gente que as percorria e que olhava sobre elas das janelas... Passou a conhecer certa gente, como quem a reconhece apenas... Ia-lhes conhecendo as vidas passadas e as conversas, e tudo isto era como quem sonha apenas paisagens e as vai vendo... Depois viajava, recordando, através do país que criara... E assim foi construindo o seu passado... Breve tinha uma outra vida anterior... Tinha já, nessa nova pátria, um lugar onde nascera, os lugares onde passara a juventude, os portos onde embarcara... Ia tendo tido os companheiros da infância e depois os amigos e inimigos da sua idade viril... Tudo era diferente de como ele o tivera - nem o país, nem a gente, nem o seu passado próprio se pareciam com o que haviam sido... Exigis que eu continue?... Causa-me tanta pena falar disto!... Agora, porque vos falo disto, aprazia-me mais estar-vos falando de outros sonhos...
TERCEIRA - Continuai, ainda que não saibais porquê... Quanto mais vos ouço, mais me não pertenço...
PRIMEIRA - Será bom realmente que continueis? Deve qualquer história ter fim? Em todo o caso falai... Importa tão pouco o que dizemos ou não dizemos... Velamos as horas que passam... O nosso mister é inútil como a Vida...
SEGUNDA - Um dia, que chovera muito, e o horizonte estava mais incerto, o marinheiro cansou-se de sonhar... Quis então recordar a sua pátria verdadeira..., mas viu que não se lembrava de nada, que ela não existia para ele... Meninice de que se lembrasse, era a na sua pátria de sonho; adolescência que recordasse, era aquela que se criara... Toda a sua vida tinha sido a sua vida que sonhara... E ele viu que não podia ser que outra vida tivesse existido... Se ele nem de uma rua, nem de uma figura, nem de um gesto materno se lembrava... E da vida que lhe parecia ter sonhado, tudo era real e tinha sido... Nem sequer podia sonhar outro passado, conceber que tivesse tido outro, como todos, um momento, podem crer... Ó minhas irmãs, minhas irmãs... Há qualquer coisa, que não sei o que é, que vos não disse... Qualquer coisa que explicaria isto tudo... A minha alma esfria-me... Mal sei se tenho estado a falar... Falai-me, gritai-me, para que eu acorde, para que eu saiba que estou aqui ante vós e que há coisas que são apenas sonhos...
PRIMEIRA (numa voz muito baixa) - Não sei que vos diga... Não ouso olhar para as cousas... Esse sonho como continua?...
SEGUNDA - Não sei como era o resto.... Mal sei como era o resto... Por que haverá mais?...
PRIMEIRA - E o que aconteceu depois?
 SEGUNDA - Depois? Depois de quê? Depois é alguma cousa?... Veio um dia um barco... Veio um dia um barco... - Sim sim... só podia ter sido assim... - Veio um dia um barco, e passou por essa ilha, e não estava lá o marinheiro 
TERCEIRA - Talvez tivesse regressado à pátria... Mas a qual?
 PRIMEIRA - Sim, a qual? E o que teriam feito ao marinheiro? Sabê-lo-ia alguém?
 SEGUNDA - Por que é que mo perguntais? Há resposta para alguma coisa?
(uma pausa)
TERCEIRA - Será absolutamente necessário, mesmo dentro do vosso sonho, que tenha havido esse marinheiro e essa ilha?
SEGUNDA - Não, minha irmã; nada é absolutamente necessário.
PRIMEIRA - Ao menos, como acabou o sonho? 
SEGUNDA - Não acabou... Não sei... Nenhum sonho acaba... Sei eu ao certo se o não continuo sonhando, se o não sonho sem o saber, se o sonhá-lo não é esta coisa vaga a que eu chamo a minha vida?..
...
Os grifos são nossos.
A passagem do marinheiro, um sonho da segunda veladora, único que, apresentado como sonho, e não como passado, é questionado quanto a possibilidade de ter sido real: “Porque não será a única coisa real nisto tudo o marinheiro,  e nós e tudo isto aqui apenas um sonho dele?” (57). O marinheiro narrado, náufrago que cria sua própria pátria em sonho, pode ser considerado um ponto de encontro entre as veladoras e sua consciência ficcional, uma vez que, após o relato, o drama de consciência se intensifica. Na narrativa do marinheiro, a recordação aparece como um exercício de construção do passado e de vivência da criação, capaz de recriar, e não de lembrar: “Depois viajava, recordado, através do país que criara, e assim foi construindo seu passado...”
Cansada de sonhar...qual é a minha vida?

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

... sem saber para onde.




Separação
Voltou-se e mirou-a como se fosse pela última vez, como quem repete um gesto imemorialmente irremediável. No íntimo, preferia não tê-lo feito; mas ao chegar à porta sentiu que nada poderia evitar a reincidência daquela cena tantas vezes contada na história do amor, que é história do mundo. Ela o olhava com um olhar intenso, onde existia uma incompreensão e um anelo, como a pedir-lhe, ao mesmo tempo, que não fosse e que não deixasse de ir, por isso que era tudo impossível entre eles. 

Viu-a assim por um lapso, em sua beleza morena, real mas já se distanciando na penumbra ambiente que era para ele como a luz da memória. Quis emprestar tom natural ao olhar que lhe dava, mas em vão, pois sentia todo o seu ser evaporar-se em direção a ela. Mais tarde lembrar-se-ia não recordar nenhuma cor naquele instante de separação, apesar da lâmpada rosa que sabia estar acesa. Lembrar-se-ia haver-se dito que a ausência de cores é completa em todos os instantes de separação. 

Seus olhares fulguraram por um instante um contra o outro, depois se acariciaram ternamente e, finalmente, se disseram que não havia nada a fazer. Disse-lhe adeus com doçura, virou-se e cerrou, de golpe, a porta sobre si mesmo numa tentativa de seccionar aqueles dois mundos que eram ele e ela. Mas o brusco movimento de fechar prendera-lhe entre as folhas de madeira o espesso tecido da vida, e ele ficou retido, sem se poder mover do lugar, sentindo o pranto formar-se muito longe em seu íntimo e subir em busca de espaço, como um rio que nasce. 

Fechou os olhos, tentando adiantar-se à agonia do momento, mas o fato de sabê-la ali ao lado, e dele separada por imperativos categóricos de suas vidas, não lhe dava forças para desprender-se dela. Sabia que era aquela a sua amada, por quem esperara desde sempre e que por muitos anos buscara em cada mulher, na mais terrível e dolorosa busca. Sabia, também, que o primeiro passo que desse colocaria em movimento sua máquina de viver e ele teria, mesmo como um autômato, de sair, andar, fazer coisas, distanciar-se dela cada vez mais, cada vez mais. E no entanto ali estava, a poucos passos, sua forma feminina que não era nenhuma outra forma feminina, mas a dela, a mulher amada, aquela que ele abençoara com os seus beijos e agasalhara nos instantes do amor de seus corpos.

 Tentou imaginá-la em sua dolorosa mudez, já envolta em seu espaço próprio, perdida em suas cogitações próprias - um ser desligado dele pelo limite existente entre todas as coisas criadas. 

De súbito, sentindo que ia explodir em lágrimas, correu para a rua e pôs-se a andar sem saber para onde...

Vinicius de Moraes.

Uma agonia...qualquer separação dói tanto que, mesmo quando é um alívio, continua a ser uma agonia.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Cada idade tem seu brilho.


                                      Tela a óleo- Rute Martins

O rosto da mulher madura entrou na moldura de meus olhos.
De repente, a surpreendo num banco olhando de soslaio, aguardando sua vez no balcão. Outras vezes ela passa por mim na rua entre os camelôs. Vezes outras a entrevejo no espelho de uma joalheria. A mulher madura, com seu rosto denso esculpido como o de uma atriz grega, tem qualquer coisa de Melina Mercouri ou de Anouke Aimé.

Há uma serenidade nos seus gestos, longe dos desperdícios da adolescência, quando se esbanjam pernas, braços e bocas ruidosamente. A adolescente não sabe ainda os limites de seu corpo e vai florescendo estabanada. É como um nadador principiante, faz muito barulho, joga muita água para os lados. Enfim, desborda.

A mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O silêncio em torno de seus gestos tem algo do repouso da garça sobre o lago. Seu olhar sobre os objetos não é de gula ou de concupiscência. Seus olhos não violam as coisas, mas as envolvem ternamente. Sabem a distância entre seu corpo e o mundo.

A mulher madura é assim: tem algo de orquídea que brota exclusiva de um tronco, inteira. Não é um canteiro de margaridas jovens tagarelando nas manhãs.
A adolescente, com o brilho de seus cabelos, com essa irradiação que vem dos dentes e dos olhos, nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de adágio em suas formas. E até no gozo ela soa com a profundidade de um violoncelo e a sutileza de um oboé sobre a campina do leito.

A boca da mulher madura tem uma indizível sabedoria. Ela chorou na madrugada e abriu-se em opaco espanto. Ela conheceu a traição e ela mesma saiu sozinha para se deixar invadir pela dimensão de outros corpos. Por isto as suas mãos são líricas no drama e repõem no seu corpo um aprendizado da macia paina de setembro e abril.

O corpo da mulher madura é um corpo que já tem história. Inscrições se fizeram em sua superfície. Seu corpo não é como na adolescência uma pura e agreste possibilidade. Ela conhece seus mecanismos, apalpa suas mensagens, decodifica as ameaças numa intimidade respeitosa.

Sei que falo de uma certa mulher madura localizada numa classe social, e os mais politizados têm que ter condescendência e me entender. A maturidade também vem à mulher pobre, mas vem com tal violência que o verde se perverte e sobre os casebres e corpos tudo se reveste de uma marrom tristeza.
Na verdade, talvez a mulher madura não se saiba assim inteira ante seu olho interior. Talvez a sua aura se inscreva melhor no olho exterior, que a maturidade é também algo que o outro nos confere, complementarmente. Maturidade é essa coisa dupla: um jogo de espelhos revelador.

Cada idade tem seu esplendor. É um equívoco pensá-lo apenas como um relâmpago de juventude, um brilho de raquetes e pernas sobre as praias do tempo. Cada idade tem seu brilho e é preciso que cada um descubra o fulgor do próprio corpo.

A mulher madura está pronta para algo definitivo.
Merece, por exemplo, sentar-se naquela praça de Siena à tarde acompanhando com o complacente olhar o vôo das andorinhas e as crianças a brincar. A mulher madura tem esse ar de que, enfim, está pronta para ir à Grécia. Descolou-se da superfície das coisas. Merece profundidades. Por isto, pode-se dizer que a mulher madura não ostenta jóias. As jóias brotaram de seu tronco, incorporaram-se naturalmente ao seu rosto, como se fossem prendas do tempo.

A mulher madura é um ser luminoso é repousante às quatro horas da tarde, quando as sereias se banham e saem discretamente perfumadas com seus filhos pelos parques do dia. Pena que seu marido não note, perdido que está nos escritórios e mesquinhas ações nos múltiplos mercados dos gestos. Ele não sabe, mas deveria voltar para casa tão maduro quanto Yves Montand e Paul Newman, quando nos seus filmes.
Sobretudo, o primeiro namorado ou o primeiro marido não sabem o que perderam em não esperá-la madurar. Ali está uma mulher madura, mais que nunca pronta para quem a souber amar.


Affonso Romano de Sant'Anna

Em uma época em que o culto da juventude é lei,parece difícil encontrar pessoas cujos valores tenham tanta sensibilidade. Mas...para toda regra há exceções, felizmente.E essa poesia toda transborda no texto de Sant'Anna.


quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Melancolias...e um sapato de verniz.



Dizem que ser velho ou jovem é apenas estado de espírito. Será?

Um olhar de relance a uma vitrine, na manhã chuvosa de segunda-feira passada,fez-me questionar essa afirmação.

Em uma prateleira de loja, fartamente iluminada, ali estava "ele", um delicioso sapato de verniz preto, de saltos altíssimos, exercendo seu poder de sedução.Semelhante a outros que usei , há muito tempo, com a leveza de quem é jovem.
Senti uma vontade imensa de calçá-los,mesmo que só o fizesse sem sair dali, mas o trânsito fluiu e a imagem não se apagou da minha memória.
E me incomodou.
Poderia tê-lo comprado só para ostentá-lo no meu quarto.Por que não?

A verdade,porém, é que o que ficou desse olhar não podia ser comprado , o tempo.
Senti na boca um gosto de sal e açucar. Gosto de certezas difíceis de aceitar.

Dei-me conta- de repente- do" nunca mais".E este veio aos borbotões, numa avalanche de certezas -camufladas- até então :
-nunca mais esmaltes escandalosamente vermelhos e brilhantes,
-nunca mais noites intensas de carnaval,
-nunca mais vestidos esvoaçantes de musselina rosa,
-nunca mais beijos roubados no escurinho do cinema,
-nunca mais sussuros ao pé do ouvido em intermináveis noites de lua cheia...
e tantos e tantos outros "nunca mais", tão ou mais belos que estes.

O gosto na saliva persiste . É agridoce. Saudades e pesar.

Metáforas à parte, ser jovem pressupõe muito mais do que alma ou espírito.
Só quem o foi , um dia, terá coragem de admitir isso.

Assim, em uma manhã bem cinzenta, conscientemente, admito : envelheci.

20 /maio/ 2009

Ah! um dia vou ficar livre das minhas agendas " de ontem"...


segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Sou o que perdi.



"Sou aquele pedacinho de inocência que deixei no berço,
 sou aquela imaturidade que perdi na adolescência,
 sou aquelas insanidades que cometia quando não possuía responsabilidades,
 sou aquela doçura infantil que tornou-se amarga ao crescer...

 Sou aquela falta de senso,
 sou aquele ser que escutava tudo e sobre tudo perguntava, que hoje fecha-se em lábios calados...
 Sou a antiga pureza que foi profanada.
 Sou o mancebo que tanto cortejava, e que não se importava em receber nãos.
 Sou aquela esperança, hoje tão rala, que aos poucos, esvai-se do meu coração.
 Sou feita do amor daqueles que me tanto amaram nesta vida passageira,
 Sou feita do afeto tão precioso dos meus escassos, porém dedicados amigos.
 Sou a princesinha que cansou de sonhar acordada com seu príncipe encantado,
 sou a donzela que largou a vida de rainha atrás de aventuras,
 sou a adulta que não suporta a ideia de velhice...
 Sou o que perdi."

Fernando Pessoa


É preciso mais?