quarta-feira, 27 de junho de 2012

Meu filho, você não merece nada.




Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.


Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.


Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.


Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes.


Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”. Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.


É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades individuais?


Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor. Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu lugar no país.


Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”.


Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo muda para o emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.


A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que seria fácil”? É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão. Ninguém descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.


Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da completude.


Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas e reconhecer equívocos – o mais fácil é calar. E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não se comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.


Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.


Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na própria pele dia após dia. É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo funcionando.


O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa.


Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem. Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.


Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua”. Assim como sentar para jantar e falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas, estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir”. Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito.


Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.


Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela acaba.



Eliane Brum em mais um dos seus brilhantes textos.Uma crônica imperdível in http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI247981-15230,00.html
Os grifos são nossos.


terça-feira, 26 de junho de 2012

Há pessoas que vêm ao mundo com a ruga da reflexão no espírito.


Guiomar não tinha a experiência nem a idade da inglesa, que podia ser sua mãe; mas a experiência e a idade eram substituídas, como sabe o leitor, por um grande tino e sagacidade naturais. Há criaturas que chegam aos cinquenta anos sem nunca passar dos quinze, tão símplices, tão cegas, tão verdes as compõe a natureza; para essas o crepúsculo é o prolongamento da aurora. Outras não; amadurecem na sazão das flores; vêm ao mundo com a ruga da reflexão no espírito, - embora, sem prejuízo do sentimento, que nelas vive e influi, mas não domina. Nestas o coração nasce enfreado; trota largo, vai a passo ou galopa, como coração que é, mas não dispara nunca, não se perde nem perde o cavaleiro.
                                                           Machado de Assis, A mão e a luva


Esse texto foi extraído da prova de LP do Mackenzie, vestibular de inverno 2012, em 16 /06.
 Por que ele está aqui ?... É prova inconteste do talento inacreditável de um grande escritor.Em algumas linhas , disse muito e bem. E em um livro que faz parte do seu acervo romântico, aquele em que ele é considerado menor...
Pena que os alunos , por pressão do momento e imaturidade, não se deem conta de tudo o que está expresso nele.Porém , pode-se apreciá-lo  a qualquer momento, aqui.

domingo, 24 de junho de 2012

Nossa alma deseja o absoluto.



“Em todos nós, no mais profundo da alma, há uma subterrânea inquietação, o desejo daquilo que parece sempre escapar-nos, a dor por qualquer coisa que não sabemos bem o que seja.

Até quando estamos apaixonados e somos correspondidos, no momento em que nos vamos embora ou o nosso amado parte, mesmo numa separação breve, aquele sofrimento profundo reaparece. Por vezes reaparece até num momento de felicidade porque aquela felicidade se nos revela fugaz.

Nós olhamos para o céu, um pequeno pedaço de céu azul, como que para concentrar nele toda a nossa felicidade e sentimos tristeza porque poderemos recordar aquele céu mas não podemos prolongar esse instante. Experimentamos este sofrimento à noite, sem motivo, de manhã ao acordar sem saber porquê.

A nossa alma está construída para desejar algo absoluto e, portanto, inefável e inacessível. Quando estamos ocupados não nos apercebemos disso (…) mas toda a nossa vontade está orientada para a meta e é ela que se ilumina com aquilo que procuramos sempre…”


Francesco Alberoni in “A árvore da vida”


Talvez seja esse o nosso destino : procurar infinitamente algo que não sabemos o que é . No cotidiano nos deparamos com " pequenas felicidades certas", que não nos satisfazem, porque passamos a vida em busca da grande felicidade.E,se ela surge, não sabemos reconhecê-la.

A alma deseja o absoluto... e, por falta dele, permanece vazia.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

É Preciso Não Esquecer Nada.


É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.


É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.


O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.


O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.


O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos severos conosco,
pois o resto não nos pertence.
Cecília Meireles  


Jorge Luis Borges, num conto chamado "Funes o Memorioso", demonstrou, pelo absurdo, que lembrar tudo é impossível. O personagem, Funes, pode lembrar até o último detalhe um dia inteiro de sua vida, mas, para fazê-lo, requer outro dia inteiro de sua vida, o que é impossível (Borges, 1943).
De fato, é necessário esquecer, ou pelo menos manter longe da evocação muitas memórias. Há muitas que nos perturbam: aquelas de medos, humilhações, maus momentos. Há outras que nos prejudicam (fobias) ou nos perseguem (estresse pós-traumático). Em razão do problema da saturação, existem memórias que nos impedem de adquirir outras novas ou adquirir outras antigas, mais importantes (por exemplo, como fugir em uma situação de medo).
Borges, em seu conto, aponta que Funes era "incapaz de esquecer para poder pensar, (pois) para pensar é necessário esquecer (detalhes) para poder fazer generalizações".
A melhor forma de manter viva cada memória em particular é recordando-a. Como isso nem sempre é possível, e certamente não desejável, devemos nos aprimorar na prática da arte de esquecer, tão cantada pelos poetas, desde Ovídio até Borges.


Será que esquecer é uma arte? Ou um hiato de dor?

terça-feira, 19 de junho de 2012

O inferno é o julgamento.



"O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.

in As cidades invisíveis -Ítalo Calvino

"O inferno são os outros"  -Sartre


Por que é que nos preocupamos tanto com a opinião das pessoas a nosso respeito? Por que é que damos tanto atenção a seus pensamentos e suposições? Inferno é não ser feliz consigo mesmo e querer mudar porque as outras pessoas podem não gostar de você como é; inferno é você achar que está fazendo a coisa errada, só porque está agindo diferente dos outros, inferno é quando alguém que não é você mesmo, controla a sua vida e as suas escolhas. Quando dependemos do julgamento e das ações dos outros, quando deixamos que eles façam nossas escolhas por nós, abrimos mão de nossa liberdade e nos tornamos nossos próprios carrascos, criamos nosso inferno particular, queimamos no fogo alimentado por nossos medos, pela nossa falta de autonomia. O inferno é o julgamento.Mais...é a aceitação em ser julgado.

( diariosdafilosofia)

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Dois anos sem Saramago, para sempre com Saramago.



Quando em uma manhã cinzenta , 18 de junho de 2010, ouvi pela primeira vez a notícia da morte de Saramago, senti um frio agudo me penetrando os ossos, ainda que houvesse calor.Era como se ele tivesse obrigação de permanecer para sempre e, de repente, saísse da vida, assim, deixando-me só. Só depois de algumas horas, dei-me conta de que ele não se iria jamais.Sim , para Pilar, talvez, mas para nós ,seus leitores e admiradores, ele estava deixando um legado de ousadia, coragem , estilo, uma obra fecunda e crítica.
Bastava abrir um livro seu e mergulhar em sua companhia.

Dois anos depois , hoje, em busca de um texto que tivesse um significado especial , encontrei na WEB, o blog http://letterbombwithoutguns.blogspot.com.br/ , no qual em 19 de Junho de 2011 foi postado :UM ANO SEM JOSÉ SARAMAGO, que transcrevo aqui com a certeza de que é uma bela homenagem.



Um ano sem José Saramago. O homem que fez a diferença em Portugal, odiado por alguns, amado por muitos. O português que conquistou o coração da Espanha, mais amado por eles do que por nós. A Espanha, esse país fisicamente tão próximo e civilizacionalmente tão distante de nós, teve a capacidade de respeitar e entender a obra de Saramago. E desengane-se quem pensa que Saramago era menos provocador lá do que cá! Saramago não tinha duas faces. Aqui, neste país infetado de velhos do Restelo, apelidavam-no de arrogante e provocador (no sentido pejorativo da palavra); lá, a escassos 150 km daqui mas noutra galáxia civilizacional, respeitavam o seu génio provocador (no melhor sentido que a palavra encerra). Saramago dividiu os Portugueses e uniu os Espanhóis que o consideravam tão seu como Camilo José Cela, privilégio apenas concedido a alguns não nacionais, em regra hispânicos, como o peruano Mario Vargas Llosa ou  o mexicano Octavio Paz. Mesmo em relação a estes, não existe o carinho devotado, e que persiste, a José Saramago. Uma áurea romântica invadiu quase por instinto o coração dos espanhóis relativamente ao severo e racional Saramago, o homem que sendo obrigado a exilar-se do seu país foi acolhido pelo enorme coração de Pilar del Rio. Saramago não se exilou de Portugal em busca de sucesso e reconhecimento. Isso fazem-no agora, sem hesitar e quase sem pensar, milhares de jovens que não se reveem neste país supostamente moribundo. Pelo contrário. Saramago exilou-se por não suportar a mesquinhez provinciana da classe política portuguesa e, ao fazê-lo, tornou-se o primeiro prisioneiro de consciência da democracia portuguesa. Nunca renegou Portugal. Amou-o até ao fim. Nas suas obras fala sempre de países hipotéticos e cenários abstratos e, se nos revemos recalcados e humilhados pelas suas obras, é porque nos encaixamos muito bem e muito tristemente nesses retratos literários. Que melhor prova de amor para com um Povo e um País do que Viagem a Portugal? Ao contrário do Povo de Portugal, que Saramago amava e tão bem entendia, porque fazia intrínseca parte dele, irritava supostos democratas, tão distantes do Portugal profundo, definitivamente burocratas, tão bem colocados na vida e barricados no discurso político supostamente correto. Todos sabemos quem eles são.
Não sei por onde vou, só sei que não vou por aí, dizia José Régio. Saramago também. E não foi. E fez muito bem. E está, em definitivo, nos memoriais deste País. E, para irritação de alguns (e, repito, todos sabemos quem são), ainda está cá. Pilar del Rio demonstrou-o ontem, um ano depois da sua morte, ao colocar as suas cinzas em frente à Fundação José Saramago. Desenganem-se senhores burocratas recalcados e génios (politicamente) vingativos, profissionais do desdém e do escárnio político! Não, Saramago não desapareceu nem será esquecido nesta terra de políticos sem Povo que o renegaram e censuraram. Não poderia subir para as estrelas, se à terra pertencia! Habituem-se à ideia senhores!

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Todos os que perdem a paixão de viver tornam-se bartlebys.



"Pela primeira vez em minha vida, fui tomado por um sentimento de opressiva e doída melancolia. Antes, eu jamais havia sentido qualquer coisa além de uma tristeza meio desagradável. O laço comum da humanidade fez com que eu fosse atingido por um irresistível desalento. Uma melancolia fraternal! Pois tanto eu quanto Bartleby éramos filhos de Adão. Lembrei-me das sedas cintilantes e dos rostos luminosos que eu havia visto naquele dia, em roupas de gala, deslizando como cisnes pelo Mississipi da Broadway; comparei-os com o pálido escriturário e pensei comigo mesmo: ah, a felicidade corteja a luz, então acreditamos que o mundo é alegre; o sofrimento esconde-se a distância, então supomos que não haja sofrimento. Esses tristes pensamentos - quimeras, sem dúvida, de uma mente doente e tola - levaram a outras reflexões especiais, essas a respeito das excentricidades de Bartleby. Pairavam sobre mim pressentimentos de estranhas descobertas. A silhueta pálida do escriturário surgia estendida, entre estranhos que não se importavam com ele, envolvida em um sudário gelado."

in  Bartleby, o escriturário: uma história de Wall Street  
 uma fábula sobre a recusa humana em agir diante da vida.
 Herman Melville


Uma pequena grande obra. ( 96 páginas).
Tenho a nítida sensação  de que precisaria nascer de novo para recuperar preciosidades que perdi por aí, sem saber onde ou quando....para poder viver em outro mundo , no qual ficção e realidade se mesclariam com tanta harmonia que me fariam sempre, como estou me sentindo agora : plena. É assim que eu me sinto toda vez que um livro como esse me propicia reflexão profunda, porque mergulho nela e , ainda que não dê frutos concretos,me dão momentos de inacreditável prazer.


Recomendado a todos os que não querem desistir da vida, mesmo que para tanto tenham que sangrar.Não é obra de leitura descompromissada.Dói.


Em tempo:
Bartleby, o Escriturário: Uma Historia de Wall Street Cod. do Produto: 21613606
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Alguém acredita?

quarta-feira, 13 de junho de 2012

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...


 




Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,                                                                                                                                    Eu era feliz e ninguém estava morto. 
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, 
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer. 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, 
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, 
De ser inteligente para entre a família, 
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. 
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. 
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida. Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo, 
O que fui de coração e parentesco. 
O que fui de serões de meia-província, 
O que fui de amarem-me e eu ser menino, 
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui... 
A que distância!... 
(Nem o acho... ) 
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos! O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa, 
Pondo grelado nas paredes... 
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas), 
O que eu sou hoje é terem vendido a casa, 
É terem morrido todos, 
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio... No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ... 
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo! 
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez, 
Por uma viagem metafísica e carnal, 
Com uma dualidade de eu para mim... 
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes! Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui... 
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos, 
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado, 
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .
Pára, meu coração! 
Não penses! Deixa o pensar na cabeça! 
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus! 
Hoje já não faço anos. 
Duro. 
Somam-se-me dias. 
Serei velho quando o for. 
Mais nada. 
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ... O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
Fernando  Pessoa / Álvaro de Campos

O aniversário é DELE, a festa é nossa!



Fonte: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/fernando-pessoa/aniversario.php#ixzz1xh5JEqCT

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Falta nada para ser feliz, agora. Depois?...é outro tempo.




"Por fim a fúria da tormenta amainou, e com a primeira luz da manhã a entrar pela janela tomei um duche e vesti-me, enquanto o Willie, envolto nas suas vestes de xeque tresnoitado, se encaminhava para a cozinha. O cheiro do café acabado de moer chegou-me como uma carícia: aromaterapia. Estas rotinas diárias unem mais que a desordem da paixão; quando estamos separados, esta dança discreta é o que mais falta nos faz. Precisamos de sentir a presença do outro neste espaço intangível que nos pertence apenas a nós. Um amanhecer frio, o café e as torradas, tempo para escrever, uma cadela que abana o rabo e o meu amante; a vida não podia ser melhor."

in " A Soma dos Dias " Isabel Allende


Às vezes , abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola.Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham a boca sonhando com pardais.Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta.Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo seu destino. E eu me sinto completamente feliz.
Mas quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela,uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.


in " A Arte de ser feliz" Cecilia Meirelles

Há rotinas que são preciosos momentos de paz.Seria esta a felicidade?
Fazendo o possível - e o impossível- para olhar a vida com  leveza e encontrar a felicidade mesmo onde ela não está.

terça-feira, 5 de junho de 2012

...é um pouco como num sonho.




Ele não fala. Quer dizer, não fala a mesma linguagem que os homens. Mas Lalla ouve a voz dele no interior dos seus ouvidos, e ele diz com a sua linguagem coisas muito belas que lhe perturbam o interior do seu corpo, que a fazem arrepiar-se. Talvez ele fale com o ruído ligeiro do vento que vem do fundo do espaço, ou então com o silêncio entre cada sopro de vento. Talvez fale com as palavras da luz, com as palavras que explodem em chuva de faíscas, sobre as lâminas das pedras, as palavras da areia, as palavras dos calhaus que se esboroam em pó duro, e também as palavras dos escorpiões e das serpentes que deixam os seus rastos ligeiros na poeira. Ele sabe falar com todas essas palavras e o olhar salta de uma pedra para a outra, vivo como um animal, vai num ápice até ao horizonte, sobe a direito no céu, plana mais alto que as aves.
Lalla gosta de vir aqui, ao planalto de pedra branca, para ouvir essas palavras secretas. Ela não conhece aquele a quem chama Es Ser, não sabe quem ele é, nem de onde vem, mas gosta de o encontrar naquele lugar, porque ele traz consigo, no seu olhar e na sua linguagem, o calor das terras de dunas e de areia, das regiões sem árvores e sem água.
Mesmo quando Es Ser não vem, é como se ela pudesse ver com o olhar dele. É difícil de compreender, porque é um pouco como num sonho, como se Lalla não fosse inteiramente ela própria, como se tivesse entrado no mundo que está do outro lado do olhar do homem azul.
Então aparecem as coisas belas e misteriosas. Coisas que ela nunca viu noutro lugar, que a perturbam e inquietam. Ela vê a extensão de areia cor de oiro e de enxofre, imensa, semelhante ao mar, às grandes ondas imóveis. Nessa extensão de areia, não se avista ninguém, não há uma árvore, uma erva, nada senão a sombra das dunas que se espreguiçam, que se tocam, que formam lagos ao crepúsculo. Aqui, tudo é semelhante, e é como se ela estivesse ao memso tempo aqui, e depois mais longe, lá onde o seu olhar poisa ao acaso, depois ainda noutro lugar, muito próximo do limite entre a terra e o céu. As dunas movem-se sob o seu olhar, lentamente, afastando os seus  dedos de areia. Há riachos de oiro que correm no próprio lugar, no fundo dos vales tórridos. Há ondulações duras, cozidas pelo calor terrível do sol, e grandes praias brancas de curvatura perfeita, imóveis perante o mar de areia vermelha. A luz rutila e escorre por toda a parte, a luz que nasce de todos os lados ao mesmo tempo, a luz da terra, do céu e do sol. No céu, não há fim. Apenas a bruma seca que ondula junto do horizonte, quebrando reflexos, dançando como ervas de luz - e a poeira ocre e rosa que vibra no vento frio, que sobe para o centro do céu.
Tudo isso é estranho e longínquo, embora pareça familiar. Lalla vê a sua frente, como com os olhos de um outro, o grande deserto onde a luz resplandece. Sente na pele o bafo do vento do sul, que ergue as nuvens de areia, sente sob os pés nus a areia escaldante das dunas. Sente sobretudo, por cima dela, a imensidade do céu vazio, do céu sem sombra onde brilha o Sol puro.
Então, durante muito tempo, deixa de ser ela própria; torna-se outra pessoa, distante, esquecida. Vê outras formas, silhuetas de crianças, homens, mulheres, cavalos, camelos, rebanhos de cabras; vê a forma de uma cidade, um palácio de pedra e de argila, muralhas de lama de onde saem bandos de guerreiros. Vê isso, pois não é um sonho, mas a recordação de uma outra memória em que ela entrou sem o saber.


in  DESERTO  de J.M.G. Le Clézio (Prêmio Nobel de Literatura 2008)

Nour e Lalla são dois jovens, descendentes da mesma tribo, separados por várias décadas. Ao longo da sua infância sofrem algumas privações iguais e outras diferentes, mas ambos constroem uma ligação imensa com o grande mar de areia.

domingo, 3 de junho de 2012

A verdade ,como o silêncio, existe apenas onde não estou.




"...nem sequer é impossível. A verdade ,como o silêncio, existe apenas onde não estou. O silêncio existe por trás das palavras que se animam no meu interior, que se combatem, se destroem e que, nessa luta, abrem rasgões de sangue dentro de mim. Quando paro de pensar e me fixo, por exemplo, nas ruínas de uma casa, há vento que agita as pedras abandonadas desse lugar, há vento que traz sons distantes e, então, o silêncio existe nos meus pensamentos. Intocado e intocável. Quando volto aos meus pensamentos, o silêncio regressa a essa casa morta. É também aí, nessa ausência de mim, que existe a verdade.
(...)
"À procura, procura o vento. Porque a minha vontade tem o tamanho de uma lei da terra.Porque a minha força determina a passagem do tempo. Eu quero. Eu sou capaz de lançar um grito para dentro de mim, que arranca árvores pelas raízes, que explode veias em todos os corpos, que trespassa o mundo. Eu sou capaz de correr através desse grito, à sua velocidade, contra tudo o que se lança para deter-me, contra tudo o que se levanta no meu caminho, contra mim sempre. Porque a minha vontade me regenera, faz-me nascer, renascer. Porque a minha força é imortal".


Excertos in Cemitério de Pianos /José Luís Peixoto.


A vontade é o elemento fundamental a fim de trazer o sentido das coisas e do mundo. É essa união entre o corpo e o sentimento, segundo o filósofo, que proporciona a essência metafísica elementar: a vontade da vida.(Schopenhauer)

E a verdade? Existe verdade absoluta , quando se convive com a mentira cotidiana?

Os textos de Peixoto se prestam a profundas reflexões além dessas poucas linhas.O que ele não diz sobre verdade, silêncio,ausência, vontade formam uma teia de indagações, a maioria sem resposta.Desafiador e brilhante.
Ele vai estar na Flip.Ótimo para ela e para nós que poderemos conhecê-lo melhor.