quarta-feira, 30 de maio de 2012

Envelhecer a alma não tem volta.




Uma pessoa envelhece lentamente: primeiro envelhece o seu gosto pela vida e pelas pessoas, sabes, pouco a pouco torna-se tudo tão real, conhece o significado das coisas, tudo se repete tão terrível e fastidiosamente. Isso também é velhice. Quando já sabe que um corpo não é mais que um corpo. E um homem, coitado, não é mais que um homem, um ser mortal, faça o que fizer… Depois envelhece o seu corpo; nem tudo ao mesmo tempo, não, primeiro envelhecem os olhos, ou as pernas, o estômago, ou o coração. Uma pessoa envelhece assim, por partes. A seguir, de repente, começa a envelhecer a alma: porque por mais enfraquecido e decrépito que seja o corpo, a alma ainda está repleta de desejos e de recordações, busca e deleita-se, deseja o prazer. E quando acaba esse desejo de prazer, nada mais resta que as recordações, ou a vaidade; e então é que se envelhece de verdade, fatal e definitivamente. Um dia acordas e esfregas os olhos: já não sabes porque acordaste. O que o dia te traz, conheces tu com exatidão: a Primavera ou o Inverno, os cenários habituais, o tempo, a ordem da vida. Não pode acontecer nada de inesperado: não te surpreeende nem o imprevisto, nem o invulgar ou o horrível, porque conheces todas as probabilidades, tens tudo calculado, já não esperas nada, nem o bem, nem o mal… e isso é precisamente a velhice.

in AS VELAS ARDEM ATÉ O FIM  / Sandór  Márai.

Desde sempre o homem se programa para tudo; estudar, viajar, amar , sorrir, passear, ser feliz.Entretanto, embora a gente ignore, há dois momentos dos quais se foge, como se fazendo isso, conseguíssemos escapar do previsível: a velhice e a morte.O que é envelhecer , senão uma fase do ciclo inevitável da vida? Só há uma possibilidade de escaparmos dessa realidade : morrer jovem . Isso é conformismo? Não. É aprendizado. Nâo se pode impedir o caminho do corpo, mas pode-se direcionar o caminho da alma.

domingo, 27 de maio de 2012

in "Neve"...Orhan Pamuk



Depois que Ka e Ïpek fizeram amor, ficaram na cama abraçados; por algum tempo, nenhum dos dois se mexeu. O mundo estava envolto em silêncio.
A felicidade de Ka era tão grande que o abraço parecia durar um tempo muito longo. Só isso pode explicar por que ele foi tomado de súbita impaciência e pulou da cama para ir olhar pela janela. Mais tarde, iria considerar aquele demorado momento de silêncio compartilhado como sua mais feliz recordação e se perguntaria por que interrompera tão bruscamente aquela felicidade inigualável, saindo dos braços de Ipek. A resposta é que ele se deixou dominar pelo pânico. Era como se alguma coisa estivesse prestes a acontecer do outro lado da janela, na rua coberta de neve, e ele precisasse estar lá antes que acontecesse.



Neve, de Orhan Pamuk
"Um dos 4 livros mais importantes da primeira década do século XXI "– revista Bravo.


O próprio Orhan Pamuk diz que este é seu primeiro e último livro sobre política, mas não deveria. Apesar de trazer esse assunto espanta leitores, Neve conta a história do poeta e jornalista Ka, um exilado político que vive na Alemanha, mas que volta para sua cidade natal na Turquia, chamada, vejam só: Kars (que significa Neve, em Turco).
Ka pretende escrever uma matéria sobre Kars para um popular jornal da Alemanha e também investigar o estranho aumento repentino de suicídios entre as jovens da cidade. Durante a viagem, ele lembra de uma antiga colega chamada Ïpek, uma moça divinamente bela, pela qual ele se apaixona em um piscar de olhos.
O conflito político e religioso é intenso e envolvente, ao mesmo tempo que mistura o romance entre Ïpek e Ka, impregnado com os valores quase exóticos da cultura oriental.

sábado, 26 de maio de 2012

A paz possível é não ter nenhuma.


"Princípio"

Não tenho deuses. Vivo
Desamparado.
Sonhei deuses outrora,
Mas acordei.
Agora
Os acúleos são versos,
E tacteiam apenas
A ilusão de um suporte.
Mas a inércia da morte,
O descanso da vide na ramada
A contar primaveras uma a uma,
Também me não diz nada.
A paz possível é não ter nenhuma

Miguel Torga in Penas do Purgatório 




quarta-feira, 23 de maio de 2012

... o saber não reduz a solidão da vida.



Um dia despertei, sentei na cama e sorri. Nada mais doía. E de súbito compreendi que não existe mulher de verdade. Nem na terra nem no céu. Não existe em lugar algum, aquela. Existem apenas pessoas, e em todas há um grão da verdadeira, e nenhuma delas tem o que do outro nós esperamos e desejamos.

(...)
Você agora diz que sou um homem magoado.Alguém me feriu. Talvez essa mulher, a minha segunda esposa. Ou a primeira. Alguma coisa não deu certo.Fiquei só. Passei por um grande abalo emocional. Sinto ódio. Não acredito nas mulheres, no amor, na humanidade.

(...)
 Na escala inferior somos capazes de nos alegrar com muitas coisas que suavizam a severidade implacável da vida. Entretanto, a sensação feliz, calorosa, de viver eu não encontrei nem naqueles que pela profissão, ou por vocação, vivem num sentimento de comunhão com a "grande comunidade"...encontrei homens magoados, tristes, insatisfeitos, maldosos, intensamente combativos, resignados, débeis mentais e trabalhadores habilidosos e inteligentes. Pessoas que acreditavam que muito devagar, a custa de acontecimentos imprevisíveis, o destino dos homens melhoraria um pouco. É bom saber disto. Mas o saber não reduz a solidão da vida.

Sandór Marái  in De Verdade.( excertos)

Assim...
O ideal só existe na mente de quem idealiza.O texto é narrado com uma elegância de linguagem admirável, que transmite ao leitor as dores do narrador ou dos narradores.De verdade é um romance que trabalha com quatro vozes narrativas. A esposa, o marido, a amante e o amante da amante. Todos contam um casamento falido a partir de suas próprias vivências.

A sedução da palavra , o ato de narrar – não propriamente boa história cheia de tramas  – é o que faz em verdade um romance genial. Simples , preenche a alma de quem o lê.


terça-feira, 22 de maio de 2012

O tempo não dura para sempre.



Penelope desligou, tornou a colocar o telefone sobre a mesa e recostou-se na poltrona. 
 Agora, nada mais havia a ser feito. Percebeu que estava muito cansada, 
porém era um cansaço suave, acalentado e confortado por tudo que a cercava, como se sua casa fosse uma pessoa carinhosa, que a abraçasse com ternura. Na sala aquecida, com a lareira acesa e a funda poltrona familiar, ela se percebeu surpresa, impregnada pelo tipo de felicidade irracional que há anos não sentia. 
Deve ser porque estou viva. Tenho sessenta e quatro anos e, se devo crer naqueles médicos idiotas, sofri um ataque cardíaco. Ou qualquer coisa assim. Sobrevivi, agora isso ficou para trás, e não falarei mais a respeito, nunca mais. Nem pensarei. Porque estou viva. Posso tocar, ver, ouvir, cheirar, saborear; cuidar de mim mesma; deixar o hospital por vontade, pegar um táxi e voltar para casa. 
Há anêmonas brotando no jardim, e a primavera está a caminho. Eu a verei. Testemunharei o milagre anual, sentirei o sol começar a ficar mais quente à medida que as semanas passarem. E, porque estou viva verei tudo isto acontecer e serei parte do milagre. 
 
Recordou a história do querido Maurice Chevalier. "Qual a sensação de estar 
com setenta anos?", perguntaram a ele. "Não é tão ruim", respondera Chevalier, "se a gente considerar a alternativa." 
 
Para Penelope Keeling, no entanto, a sensação era mil vezes melhor do que 
apenas "não tão ruim". Agora, viver se tornara não a simples existência que a 
pessoa tinha como garantida, mas um prêmio, uma dádiva, com cada dia ainda por vir, transformado em uma experiência a ser saboreada. O tempo não duraria para sempre. Não desperdiçarei um só momento, prometeu a si mesma. Jamais se sentira tão forte, tão otimista. Era como se voltasse a ser jovem, desabrochando, e algo maravilhoso estivesse prestes a acontecer. 

in Os Catadores de Conchas  /  Rosamunde Pilcher

Desde que me lembro criança, livros são o meu vício.Quando não tenho um exemplar novo, releio algum que me emocionou com a sensação de novidade e descubro nele algo que não havia visto na primeira vez. Achei Rosamunde ,por acaso, em " Solstício de Inverno", 600 páginas de uma história tão improvável, quanto deliciosa.
O excerto acima é de uma obra  que segue a mesma linha: gostoso de ler, porque comum.Um história que poderia se passar com pessoas comuns , como a gente.
Enfim, viver o texto é o segredo para gostar de  " Os Catadores de Conchas".

sábado, 19 de maio de 2012

Para esquecer é preciso cansar o coração, de lembrança em lembrança.




Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está? 

As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e ações de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. 

A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguem antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar. 

É preciso aceitar esta mágoa esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si , isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução. 

Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injeção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha. 
Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado. 

O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar. 

Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume"

Ás vezes, simplesmente não se esquece e continua-se com a sensação de que ontem é hoje. E nunca vai terminar.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

. A verdade está na viagem, não no porto.



“A natureza se realiza em movimento e também nós, seus filhos, que somos o que somos e ao mesmo tempo somos o que fazemos para mudar o que somos. Como dizia Paulo Freire, o educador que morreu aprendendo: “Somos andando”. A verdade está na viagem, não no porto. Não há mais verdade do que a busca da verdade. Estamos condenados ao crime? Bem sabemos que os bichos humanos andamos muito dedicados a devorar o próximo e a devastar o planeta, mas também sabemos que não estaríamos aqui se nossos remotos avós do paleolítico não tivessem sabido adaptar-se à natureza, da qual faziam parte, e não tivessem sido capazes de compartilhar o que colhiam e caçavam. Viva onde viva, viva como viva, viva quando viva, cada pessoa contém muitas pessoas possíveis e é o sistema de poder, que nada tem de eterno, que a cada dia convida para entrar em cena nossos habitantes mais safados, enquanto impede que os outros cresçam e os proíbe de aparecer. Embora estejamos malfeitos, ainda não estamos terminados; e é a aventura de mudar e de mudarmos que faz com que valha a pena esta piscadela que somos na história do universo, este fugaz calorzinho entre dois gelos”.
( os grifos são nossos)
Eduardo Galeano in De Pernas Pro Ar – A Escola do Mundo ao Avesso 

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Saramago...porque a gente merece o que é especial.



«Quando o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a adão e eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de rugidos e mugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo. Dos escritos em que, ao longo dos tempos, vieram sendo consignados um pouco ao acaso os acontecimentos destas remotas épocas, quer de possível certificação canónica futura ou fruto de imaginações apócrifas e irremediavelmente heréticas, não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido aquela, se o músculo flexível e húmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma, de que o senhor lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela não ficou o menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda sentimental, qualquer coisa no género amo-te, eva. Como uma coisa, em princípio, não deveria ir sem a outra, é provável que um outro objectivo do violento empurrão dado pelo senhor às mudas línguas dos seus rebentos fosse pô-las em contacto com os mais profundos interiores do ser corporal, as chamadas incomodidades do ser, para que, no porvir, já com algum conhecimento de causa, pudessem falar da sua escura e labiríntica confusão a cuja janela, a boca, já começavam elas a assomar. Tudo pode ser. Evidentemente, por um escrúpulo de bom artífice que só lhe ficava bem, além de compensar com a devida humildade a anterior negligência, o senhor quis comprovar que o seu erro havia sido corrigido, e assim perguntou a adão, Tu, como te chamas, e o homem respondeu, Sou adão, teu primogénito, senhor. Depois, o criador virou-se para a mulher, E tu, como te chamas tu, Sou eva, senhor, a primeira dama, respondeu ela desnecessariamente, uma vez que não havia outra. Deu-se o senhor por satisfeito, despediu-se com um paternal Até logo, e foi à sua vida. Então, pela primeira vez, adão disse para eva, Vamos para a cama.»

[in Caim, Saramago]
 Saramago afirmou, em entrevista à Lusa, que "a Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana".
"Na Igreja Católica não vai causar problemas porque os católicos não lêem a Bíblia, só a hierarquia, e eles não estão para se incomodar com isso. Admito que o livro possa incomodar os judeus, mas isso pouco me importa", disse o Nobel português .
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Fé e religião não se deve discutir, nem impor.Respeita-se. Mas, em termos de obra literária, Saramago é único.Ácido, crítico, irônico e um  mestre do idioma.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Não há no mundo maior delícia que a normalidade.




“Voltámos para casa anteontem [sexta-feira], nesse dia sagrado. Não há no mundo maior delícia do que a normalidade. Cada palavra da Maria João soa-me a música amada. Nos livros avisam que a remoção de tumores cancerosos do cérebro pode provocar alterações de personalidade.
Eu tinha medo que ela deixasse de ser a Maria João que eu amo. Mais medo ainda tinha que ela deixasse de me amar. A primeira vez que a vi, poucas horas depois da cirurgia, no remanso dos cuidados intensivos, perguntei-lhe se ela me reconhecia. E ela recuou a cabeça ligada, fez uns olhos de surpresa repugnante e perguntou, com convencimento: “Mas quem é o senhor?”
Nem sequer foi o sentido de humor a primeira coisa a regressar. Nunca se foi embora. A Maria João não recuperou: manteve-se. O milagre não lhe era exterior. O milagre é ela. Ela e todas as pessoas de quem ela gosta, que gostam dela.
Eu bem que tento guardá-la como um segredo. Mas só estou bem, quando tenho a sorte de ouvi-la e a vê-la e a vivê-la. Escrever sobre ela é a coisa mais fácil que faço: é uma preguiça e um prazer, como se conseguisse enganar quem me lê. É virar as costas ao mundo, que vai tão mal. Mas que é um mundo que ainda contém a Maria João, a pessoa que eu amo, que ainda aceita o amor que lhe tenho. Que cresce, ao contrário do cabrão do cancro, previsivelmente, certamente, sem fazer mal; fazendo bem.
Meu grande amor: seja de que maneira for, continua. Mesmo deixando de gostar de mim. Mas continua. Vive!” 

MEC


Texto absolutamente real de um homem apaixonado que sofre por sua esposa doente e que nos faz crer que o verdadeiro amor existe sim... merece ser partilhado. 
Amor profundo, abnegação, lindo demais!
Gostaria muito de ter sido amada com essa paixão.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Nós e a poesia da vida.




Do supérfluo 


Também as cousas participam
de nossa vida. Um livro. Uma rosa.
Um trecho musical que nos devolve
a horas inaugurais. O crepúsculo
acaso visto num país
que não sendo da terra
evoca apenas a lembrança
de outra lembrança mais longínqua.

O esboço tão-somente de um gesto
de ferina intenção. A graça
de um retalho de lua
a pervagar num reposteiro
A mesa sobre a qual me debruço
cada dia mais temerosa
de meus próprios dizeres.
Tais cousas de íntimo domínio
talvez sejam supérfluas.

No entanto
que tenho a ver contigo
se não leste o livro que li
não viste a rosa que plantei
nem contemplaste o pôr-do-sol
à hora em que o amor se foi?

Que tens a ver comigo
se dentro em ti não prevalecem
as cousas — todavia supérfluas —
do meu intransferível patrimônio.



Henriqueta Lisboa, Pousada do Ser (1982)

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Você já pensou que palavras podem pesar tanto quanto tijolos?



“Escrever romances, para mim, é basicamente um tipo de trabalho braçal. Escrever, em si mesmo, é um trabalho mental, mas terminar um livro inteiro está mais próximo do trabalho braçal. Não envolve levantar peso, correr ou pular. A maioria das pessoas, contudo, enxerga apenas a realidade superficial da escrita e acha que os escritores vivem silenciosamente concentrados em um trabalho intelectual em seu gabinete ou escritório. Basta ter força para erguer uma xícara de café, imaginam, que você pode escrever um romance. Mas assim que você arregaça as mangas para começar, percebe que não é um trabalho tão tranquilo como parece. O processo todo _sentar em sua mesa, concentrar sua mente como se fosse um raio laser, imaginar alguma coisa em um horizonte vazio, criando uma história, escolhendo as palavras adequadas, uma a uma, mantendo todo o fluxo da história nos trilhos_ exige muito mais energia, por um longo período, do que imagina a maioria das pessoas. Pode ser que você não mova seu corpo de um lado para outro. Ainda assim, há um exaustivo e dinâmico trabalho operando dentro de você. Todo  mundo usa a mente quando pensa. Um escritor, no entanto, veste um traje chamado narrativa e pensa com todo o seu ser; e para o romancista esse processo exige pôr em ação toda a sua reserva física, geralmente ao ponto da estafa.”
Trecho do livro Do que Eu Falo Quando Eu Falo de Corrida, de Haruki Muraka
Palavras podem tudo para todos : abrir e fechar portas, abrir e fechar almas;construir e destruir vidas...


sexta-feira, 4 de maio de 2012

A lucidez coloquial de Isabel Allende.



 (...) o mais terrível da velhice não é a solidão, mas a dependência. Não quero incomodar meu filho e meus netos com a minha decrepitude, embora não fosse nada mau passar meus últimos anos perto deles. Fiz uma lista de prioridades para meus 80 anos: saúde, recursos econômicos, família, cachorra, histórias. Os dois primeiros pontos me permitiriam decidir como e onde viver; o terceiro e quarto me acompanhariam; e as histórias me manteriam calada e divertida, sem atritos com ninguém. Willie e eu temos pavor de perder a lucidez e com isso Nico ou, pior ainda, estranhos, decidam por nós. Penso em você, filha, que esteve meses à mercê de desconhecidos antes que pudéssemos te trazer para a Califórnia. Quantas vezes você pode ter sido maltratada por um médico, uma enfermeira ou uma empregada, e eu não fiquei sabendo? Quantas vezes terá desejado, no silêncio daquele ano, morrer de uma vez e em paz?
Os anos transcorrem silenciosos, na ponta dos pés, zombando da gente em sussurro, e de repente nos assustam no espelho, nos acertam nos joelhos e nos cravam um punhal nas costas. A velhice nos ataca dia após dia, mas parece se tornar evidente ao final de cada década. Há uma foto minha, tirada aos 49 anos, apresentando O plano infinito na Espanha; é de uma mulher jovem, as mãos nos quadris, desafiante, com um xale vermelho nos ombros, as unhas pintadas e uns longos brincos de Tabra. Foi nesse exato momento, com Antonio Banderas a meu lado e uma taça de champanhe na mão, que me disseram que você acabava de dar entrada no hospital. Saí correndo, sem imaginar que a tua vida e a minha juventude estavam por terminar. Outra foto minha, um ano mais tarde, mostra uma mulher madura, os cabelos curtos, os olhos tristes, a roupa escura, sem enfeites. O corpo me pesava, eu me olhava no espelho e não me reconhecia. Não foi apenas tristeza que me envelheceu subitamente, porque, ao repassar o álbum de fotos familiares, pude comprovar que quando fiz 30 anos e depois 40 também houve uma mudança drástica na minha aparência. Assim será no futuro, só que, em vez de eu perceber a cada década, será a cada ano bissexto, como diz minha mãe. Ela vai vinte anos adiante de mim, abrindo caminho, mostrando como serei em cada etapa de minha vida. “Tome cálcio e hormônios, para que seus ossos não falhem, como os meus”, me aconselha. Repete que me cuide, que me ame, que saboreie as horas, porque tudo se vai muito rápido, que não deixe de escrever, para manter a mente ativa, e que faça ioga para poder me abaixar e calçar os sapatos sozinha. 
Acrescenta que não me esforce para preservar uma aparência jovem, porque os anos serão notados de qualquer forma, por mais que a gente disfarce, e não há nada mais ridículo que uma velha botando banca de lolita. Não há truques mágicos que evitem a deterioração, no máximo pode-se adiar um pouco. “Depois dos cinqUenta, a vaidade só serve para sofrer”, me garante essa mulher com fama de bonita. Mas a fealdade da velhice me assusta e penso combatê-la enquanto me restar saúde; por isso estiquei a cara com cirurgia plástica, já que não descobriram a forma de rejuvenescer com uma poção. Não nasci com a esplêndida matéria-prima de Sofia Loren, necessito de toda a ajuda que possa conseguir. A cirurgia equivale a desprender músculos e pele, cortar o que sobra e costurar a carne de novo na caveira, colada como malha de bailarino. Durante semanas tive a sensação de andar com uma máscara de madeira, mas no final valeu a pena. Um bom cirurgião pode enganar o tempo. Esse é um assunto que não devo comentar na frente de minhas Irmãs da Desordem ou de Nico, porque acham que a velhice tem a sua beleza própria, inclusive com verrugas peludas e varizes. Você era da mesma opinião, Paula. Sempre gostou mais dos velhos que das crianças.
in " A Soma dos Dias"
Gosto imensamente da maneira como Isabel consegue criar um clima de intimidade com o leitor.Fala de si , falando de todos. Meu maior medo é perder a autonomia.Deixar-me nas mãos de outro que não sabe de mim.Esse texto é de uma realidade contundente e só existe uma maneira de evitar vivê-lo : morrer jovem.