domingo, 29 de abril de 2012

O silêncio da saudade.


Antes que elas cresçam

Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.

É que as crianças  crescem. Independentes de nós, como árvores, tagarelas e pássaros estabanados, elas crescem sem pedir licença. Crescem como a inflação, independente do governo e da vontade popular. Entre os estupros dos preços, os disparos dos discursos e o assalto das estações, elas crescem com uma estridência alegre e, às vezes, com alardeada arrogância.

Mas não crescem todos os dias, de igual maneira; crescem, de repente.

Um dia se assentam perto de você no terraço e dizem uma frase de tal maturidade que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura.

Onde e como andou crescendo aquela danadinha que você não percebeu? Cadê aquele cheirinho de leite sobre a pele? Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços, amiguinhos e o primeiro uniforme do maternal?

Ela está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil. E você está agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não apenas cresça, mas apareça. Ali estão muitos pais, ao volante, esperando que saiam esfuziantes sobre patins, cabelos soltos sobre as ancas. Essas são as nossas filhas, em pleno cio, lindas potrancas.

Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão elas, com o uniforme de sua geração: incômodas mochilas da moda nos ombros ou, então com a suéter amarrada na cintura. Está quente, a gente diz que vão estragar a suéter, mas não tem jeito, é o emblema da geração.

Pois ali estamos, depois do primeiro e do segundo casamento, com essa barba de jovem executivo ou intelectual em ascensão, as mães, às vezes, já com a primeira plástica e o casamento recomposto. Essas são as filhas que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas, das notícias e da ditadura das horas. E elas crescem meio amestradas, vendo como redigimos nossas teses e nos doutoramos nos nossos erros.

Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.

Longe já vai o momento em que o primeiro menstruo foi recebido como um impacto de rosas vermelhas. Não mais as colheremos nas portas das discotecas e festas, quando surgiam entre gírias e canções. Passou o tempo do balé, da cultura francesa e inglesa. Saíram do banco de trás e passaram  para o volante de suas próprias vidas. Só nos resta   dizer “bonne route, bonne route”, como naquela canção francesa narrando a emoção do pai quando a filha oferece o primeiro jantar no apartamento dela.

Deveríamos ter ido mais  vezes à cama delas ao anoitecer para ouvir  sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de colagens, posteres e agendas coloridas de pilô. Não, não as levamos suficientemente ao maldito “drive-in”, ao Tablado para ver “Pluft”, não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas merecidas.

Elas cresceram sem que esgotássemos nelas todo o nosso afeto.

No princípio  subiam a serra ou iam à casa de  praia entre embrulhos, comidas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscinas e amiguinhas. Sim, havia as brigas dentro do carro, a disputa pela janela, os pedidos de sorvetes e sanduíches infantis. Depois chegou a idade em que subir para a casa de campo  com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível deixar a turma aqui na praia e os primeiros namorados. Esse exílio  dos pais, esse divórcio dos filhos, vai durar sete anos bíblicos. Agora é hora de os pais na montanha  terem a solidão que queriam, mas, de repente, exalarem contagiosa saudade daquelas pestes.

O jeito é esperar. Qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco. Por isso, os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável afeição. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto.

Por isso, é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que elas cresçam.

Affonso Romano de Sant'Anna


...mas,os netos também crescem e, às vezes, como hoje, na casa vazia, o que ressoa é o silêncio Quando seu coração-mudo- chama por eles, a resposta que ninguém diz, mas que você ouve é:
Crescemos
E bate aquela saudade profunda de algo que foi o melhor pedaço da sua vida e que não volta nunca mais.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Além do mais te amo, e faz tempo e frio.




Te amo por sombrancelha, por cabelo, te debato em corredores branquíssimos
onde se jogam as fontes de luz,
te discuto em cada nome, te arranco com delicadeza de cicatriz,
vou pondo em teu cabelo cinzas de relâmpago e fitas que
dormiam na chuva.
Não quero que tenhas uma forma, que sejas precisamente o que
vem atrás da tua mão,
porque a água, considera a água, e os leões quando se dissolvem
no açúcar da fábula,
e os gestos, essa arquitetura do nada,
acendendo suas lâmpadas no meio do encontro.
Todo amanhã é o quadro onde te invento e te desenho,
disposto a te apagar, assim não és, muito menos com esse cabelo liso,
esse sorriso.
Busco tua soma, a borda da taça onde o vinho é também a lua e o espelho,
busco essa linha que faz o homem tremer
numa galeria de museu.
Além do mais te amo, e faz tempo e frio.



Julio Cortázar


Um lirismo imperdível.Não faço a mínima ideia de como Cortazar viveu o amor, mas cantou-o divinamente.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

A subterrânea inquietação da alma.


A árvore da vida , 1909, Friso Stoclet


“Em todos nós, no mais profundo da alma, há uma subterrânea inquietação, o desejo daquilo que parece sempre escapar-nos, a dor por qualquer coisa que não sabemos bem o que seja.

Até quando estamos apaixonados e somos correspondidos, no momento em que nos vamos embora ou o nosso amado parte, mesmo numa separação breve, aquele sofrimento profundo reaparece. Por vezes reaparece até num momento de felicidade porque aquela felicidade se nos revela fugaz.

Nós olhamos para o céu, um pequeno pedaço de céu azul, como que para concentrar nele toda a nossa felicidade e sentimos tristeza porque poderemos recordar aquele céu mas não podemos prolongar esse instante. Experimentamos este sofrimento à noite, sem motivo, de manhã ao acordar sem saber porquê.

A nossa alma está construída para desejar algo absoluto e, portanto, inefável e inacessível. Quando estamos ocupados não nos apercebemos disso (…) mas toda a nossa vontade está orientada para a meta e é ela que se ilumina com aquilo que procuramos sempre…”



Francesco Alberoni in “A árvore da vida”


Talvez seja esse o nosso destino : procurar infinitamente algo que não sabemos o que é. No cotidiano nos deparamos com " pequenas felicidades certas", que não nos satisfazem, porque passamos a vida em busca da grande felicidade.E, se ela surge ,não sabemos reconhecê-la.


A alma deseja o absoluto... e, por falta dele, permanece vazia.


quinta-feira, 19 de abril de 2012

Canção da manhã feliz.



Luminosa manhã Por que tanta luz? 
Dá-me um pouco de céu 
Mas não tanto azul 

Dá-me um pouco de festa, não esta 
Que é demais p'ro meu anseio 
Ela veio, manhã .Você sabe, ela veio 

Despertou-me chorando 
E até me beijou 
Eu abri a janela .E este sol entrou 

De repente em minha vida 
Já tão fria e sem desejo 
Estes festejos .Esta emoção 

Luminosa manhã 
Tanto azul, tanta luz 
É demais 
Para o meu coração...

1962 - Haroldo Barbosa e Luiz Reis



É indescrítivel a beleza das manhãs de abril...
E a doçura de  Nana traduz esse alumbramento.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

...corações são para serem divididos.


Para se roubar um coração, é preciso que seja com muita habilidade, tem que ser vagarosamente, disfarçadamente, não se chega com ímpeto, 
não se alcança o coração de alguém com pressa. 
Tem que se aproximar com meias palavras, suavemente, apoderar-se dele aos poucos, com cuidado. 
Não se pode deixar que percebam que ele será roubado, na verdade, teremos que furtá-lo, docemente. 
Conquistar um coração de verdade dá trabalho, 
requer paciência, é como se fosse tecer uma colcha de retalhos, aplicar uma renda em um vestido, tratar de um jardim, cuidar de uma criança. 
É necessário que seja com destreza, com vontade, com encanto, carinho e sinceridade. 
Para se conquistar um coração definitivamente 
tem que ter garra e esperteza, mas não falo dessa esperteza que todos conhecem, falo da esperteza de sentimentos, daquela que existe guardada na alma em todos os momentos. 
Quando se deseja realmente conquistar um coração, é preciso que antes já tenhamos conseguido conquistar o nosso, é preciso que ele já tenha sido explorado nos mínimos detalhes, 
que já se tenha conseguido conhecer cada cantinho, entender cada espaço preenchido e aceitar cada espaço vago. 
...e então, quando finalmente esse coração for conquistado, quando tivermos nos apoderado dele, 
vai existir uma parte de alguém que seguirá conosco. 
Uma metade de alguém que será guiada por nós 
e o nosso coração passará a bater por conta desse outro coração. 
Eles sofrerão altos e baixos sim, mas com certeza haverá instantes, milhares de instantes de alegria. 
Baterá descompassado muitas vezes e sabe por quê? 
Faltará a metade dele que ainda não está junto de nós. 
Até que um dia, cansado de estar dividido ao meio, esse coração chamará a sua outra parte e alguém por vontade própria, sem que precisemos roubá-la ou furtá-la nos entregará a metade que faltava. 
... e é assim que se rouba um coração, fácil não? 
Pois é, nós só precisaremos roubar uma metade, 
a outra virá na nossa mão e ficará detectado um roubo então! 
E é só por isso que encontramos tantas pessoas pela vida a fora que dizem que nunca mais conseguiram amar alguém... é simples... 
é porque elas não possuem mais coração, eles foram roubados, arrancados do seu peito, e somente com um grande amor ela terá um novo coração, afinal de contas, corações são para serem divididos, e com certeza esse grande amor repartirá o dele com você.

Luís Fernando Veríssimo

domingo, 15 de abril de 2012

Um band-aid no coração.



Meu coração é um traço seco.
Vertical,pós-moderno,coloridíssimo de néon.
Puro artifício,definitivo.

Andei amando loucamente, como há muito tempo não acontecia. De repente a coisa começou a desacontecer. Bebi, chorei, ouvi Maria Bethânia, fumei demais, tive insônia e excesso de sono, falta de apetite e apetite em excesso, vaguei pelas madrugadas, escrevi poemas (juro). Agora está passando: um band-aid no coração, um sorriso nos lábios – e tudo bem. Ou: que se há de fazer.

E uma compulsão horrível de quebrar imediatamente qualquer relação bonita que mal comece a acontecer. Destruir antes que cresça.Com requintes, com sofreguidão, com textos que me vêm prontos e faces que se sobrepõem às outras. Para que não me firam, minto. E tomo a providência cuidadosa de eu mesmo me ferir, sem prestar atenção se estou ferindo o outro também. Não queria fazer mal a você. Não queria que você chorasse. Não queria cobrar absolutamente nada. Por que o Zen de repente escapa e se transforma em Sem? Sem que se consiga controlar.

Caio Fernando Abreu (excertos)


Desnudando- mais uma vez- a alma tortuosa de Caio Abreu
Entregou-se à vida , ao sofrimento até o fim e deixou marcados a ferro e fogo seus tormentos.Viveu pouco e muito.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Condenados a ser livres: filosofia ou paradoxo?



“Se o homem não é, mas se faz, e se, em se fazendo, assume a responsabilidade por toda a espécie humana, se não há valor ou moral dados a priori, mas se, em cada caso, precisamos resolver sozinhos, sem ponto de apoio e, no entanto, para todos, como haveríamos de não sentir ansiedade quando temos de agir?” “Queremos a liberdade pela liberdade através de cada circunstância em particular. E, ao querermos a liberdade, descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos outros e que a liberdade dos outros depende da nossa(...)”
Sartre, O existencialismo é um humanismo (1946)
  
"Realmente, só pelo fato de ser consciente das causas que inspiram minhas ações, estas causas já são objetos transcendentes para minha consciência; elas estão fora. Em vão tentaria apreendê-las.
Escapo delas pela minha própria existência. Estou condenado a existir para sempre além da minha essência, além das causas e motivos dos meus atos. Estou condenado a ser livre. Isso quer dizer que nenhum limite para minha liberdade pode ser estabelecido, exceto a própria liberdade, ou, se você preferir; que nós não somos livres para deixar de ser livres."
Jean-Paul Sartre, O Ser e o Nada (1943)


O homem é um ser apenas possível. Existo à medida que transformo esse possível em real.
É no processo livre de escolha, a cada dia, de nossa existência que construímos a essência humana. Escolhemos a nossa essência ao procedermos à escolha do personagem que pretendemos ser. Daí, a famosa frase de Sartre: “A existência precede a essência”.
Frequentemente esqueço que eu mesmo escolhi livremente construir os amores, esquecer-me dos amigos ou curtir meus pais. Mas o mais saboroso, e quase fantástico, desta aventura humana é que cada uma vai fazendo sua libertação ao longo deste caminhar. E não só a sua vida, mas de toda a humanidade, pois, com sua vida, está construindo sua essência humana.
O homem é um ser que não pode querer senão a sua liberdade e que reconhece também que não pode querer senão a liberdade dos outros. Daí que ninguém vive livre sozinho... Enfim, para Sartre, não existe o destino, nós construímos o nosso futuro.

F.J. Almeida "Sartre - É Proibido Proibir", Editora FTD, São Paulo, 1988.


Toda manhã esconde um entardecer e este traz consigo a noite...a minha reflexão , hoje, desde a hora em que olhei pela janela.Não sou livre para escolhê-las.Será?!!!!

terça-feira, 10 de abril de 2012

É nos mínimos atos que se percebe "quem é quem"


(...) o inferno são os Outros.
                                                                  (Jean-Paul Sartre)


Alguém, cujo nome não me ocorre agora,afirmou em versos que "Viver é fácil,o difícil é conviver".Sabe-se lá o que lhe teria acontecido para a acidez de comentário sobre a sociedade, mas a verdade é tão contundente, quanto simples.
O homem, gregário por excelência, tem visto a tecnologia e a ciência alcançarem patamares nunca imaginados, mas, em contrapartida ,resvala em uma profunda involução quando se trata dele próprio.
As relações interpessoais são delicadas, difíceis , mas possíveis,sempre que seres humanos convivem.Há momentos em que a ética titubeia, mas em se tratando de contexto profissional a lisura de atitudes deve ser possível, mais do que isso : essencial.
É no cotidiano , nos mínimos atos, que percebemos " quem é quem". Arrogância e prepotência- camuflados por enorme falta de respeito e educação- são armas de fracos que, possuidores de um brutal complexo de inferioridade, se sobrepõem pela grosseria porque não sabem ser de outro modo.
Ainda assim, uma atitude grosseira não é perdoável em circunstância alguma, porque civilidade no trato com os demais precisa - e deve - ser regra básica de convivência.Às vezes, a " cegueira branca" torna-se conveniente para esconder algo que é incômodo mostrar(...), mas isso é problema individual, talvez precisando de terapia. Há muitos modos de uma pessoa complexada " tentar" se impor e nenhuma delas é admissível.
Já vivi uma situação dessas de uma maneira inexplicável e gratuita.Tentei fingir que não estava entendendo para que o ato parecesse menos, mas outras pessoas também  assistiram a ele e ,então,não deu para ignorar...Hoje,vi acontecer com uma senhora que , constrangida, desculpou-se pela grosseria-do outro- como se fosse a culpada.E me incomodou muito.
Nos últimos tempos tenho me deparado com cenas chocantes de desrespeito, falta de ética absoluta.Somaram-se e transbordaram agora.O meu silêncio exterior, minha paciência e minha indignação multiplicaram-se e o resultado foi esse post.Um desabafo.




O mínimo essencial.
O termo ética deriva do grego ethos (caráter, modo de ser de uma pessoa). Ética é um conjunto de valores morais e princípios que norteiam a conduta humana na sociedade. A ética serve para que haja um equilíbrio e bom funcionamento social, possibilitando que ninguém saia prejudicado.

domingo, 8 de abril de 2012

A Ressurreição e a pipoca.



Excerto
(...)
É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa — voltar a ser crianças! Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo.


Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre.

Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser.

Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão — sofrimentos cujas causas ignoramos.Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.

Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: PUF!! — e ela aparece como outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.

Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro.
"Morre e transforma-te!" — dizia Goethe.

Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas, descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar.

Meu amigo William, extraordinário professor pesquisador da Unicamp, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia, as explicações científicas não valem.

Por exemplo: em Minas "piruá" é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: "Fiquei piruá!" Mas acho que o poder metafórico dos piruás é maior.

Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem.

Ignoram o dito de Jesus: "Quem preservar a sua vida perdê-la-á".A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo a panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.

Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira...

Nunca imaginei que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu.


Rubem Alves ( perfeito... e oportuno)

É muito triste ser um milho que não aconteceu. Um piruá no fundo da panela.
Renascer vai além da Páscoa, é sempre.Ou melhor, podemos fazer uma Páscoa a cada dia.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

A minha Páscoa não é de chocolate.



Replay
Hummm...cheiro de empadinhas quentes na madrugada. Cheiro de Páscoa na casa da minha madrinha,cheiro de família, cheiro da minha infância.

Amanhece azul luminoso.É 10 de abril de 2003 .São 7.20hs em meu caminho para a escola.O sinal fecha.Olho o outdoor à minha frente, onde gigantescos ovos apregoam as delícias do chocolate, mas meu nariz respira lembranças distantes de empadinhas quentes de frango, na madrugada.
E de repente...já não é cheiro. É gosto.Gosto das lágrimas de sal, onde a lembrança me entra pela boca.

É Páscoa. O mesmo céu, o mesmo sol me levam a 1954.Faz muito tempo...
Mércia e eu na procissão da Ressurreição.A missa na manhã fresca,o ar de festa,manhã iluminada.
É muito cedo para comer empadas!Mas, resistir quem há-de? E outra procissão se inicia, agora diante de uma montanha de empadinhas quentes:Sr Egidio, sempre circunspecto e formal, Sr Ismael no seu amassadíssimo terno de linho ( seria branco sujo?!...)Tio Nené, Sr Nicola Padula, minhas tias Joana, Landa e Amália e minha madrinha, Nina, a responsável por aquela maravilha gastronômica.Ih! chegou D.Véia, D.Nitinha e D. Olinda, as vizinhas-comadres e a festa continua.

Como é que eu, com apenas 10 anos, poderia saber que aquele bacião de empadas quentinhas, partilhadas entre amigos,em uma cozinha rústica, de telhas pretas, sem forro, ao pé de um fogão a lenha, era a felicidade?
Quantas coisas , sei agora,perdi por não saber naquele tempo.
" Onde estão todos eles?...Todos dormindo, dormindo profundamente!"

O sinal abriu e me encanto mais uma vez com a manhã de outono.Volto a 2003, sem saber exatamente o que faço ali, prá onde vou e porquê. Seco as lágrimas.O trabalho me espera.O sinal abre e devo seguir...
Dentro de mim ficou a sensação de reencontro com a minha vida. Sinto que ainda tenho raízes. Apesar de doer.

Não há mais cheiro de empadinhas quentes. Há sabor...Sabor salgado. E ele está na minha boca. Na minha saudade.

Campinas, 10 de abril de 2003



9 anos foram-se e continuo a sentir a mesma inefável presença de pessoas e cheiros que não existem mais a não ser na minha memória.Esse texto foi o início desse blog em 2007, salvo de uma agenda que eu queria descartar.E está aqui , porque todos  os anos tem representado o que eu gostaria de estar vivendo outra vez.





quarta-feira, 4 de abril de 2012

A morte não é o final.Eu somente passei para a sala seguinte.



A morte não é tudo. Não é o final. Eu somente passei para a sala seguinte. Nada aconteceu. Tudo permanece exatamente como sempre foi. Eu sou eu, você é você, e a antiga vida que vivemos tão maravilhosamente juntos permanece intocada, imutável. O que quer que tenhamos sido um para o outro, ainda somos. Chame-me pelo antigo apelido familiar. Fale de mim da maneira como sempre fez. Não mude o tom. Não use nenhum ar solene ou de dor. Ria como sempre o fizemos das piadas que desfrutamos juntos. Brinque, sorria, pense em mim, reze por mim. 

Deixe que o meu nome seja uma palavra comum em casa, como foi. Faça com que seja falado sem esforço, sem fantasma ou sombra. A vida continua a ter o significado que sempre teve. Existe uma continuidade absoluta e inquebrável. O que é esta morte senão um acidente desprezível? Por que ficarei esquecido se estiver fora do alcance da visão? Estou simplesmente à sua espera, como num intervalo, bem próximo, na outra esquina. Está tudo bem.

September(1990)
"Setembro" (Bertrand Brasil, 16a. edição, Tradução de Angela N.Machado, pág. 450).
Rosamunde Pilcher 




Contrariando  o  modo pelo qual  eu procuro um livro, conheci Rosamund Pilcher pela capa de "Solstício de Inverno". A atração foi tamanha que não consegui ir-me embora sem ele e , não obstante suas 600 páginas, mergulhei no texto e dei cabo dele em um final de semana.De lá para cá, ela tornou-se assídua no meu mundo.Escreve sobre fatos improváveis de acontecer mas, que seriam maravilhosos se existissem.É um voo de imaginação para o autor e para o leitor que estiver disposto a acompanhá-la. Eu sempre estou...

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Uma pitada de Eros na amizade...



Fico pensando se a amizade existe realmente. Não me refiro ao prazer ocasional de duas pessoas que se alegram por ter se encontrado num dado momento de suas vidas em que pensam da mesma maneira sobre determinados assuntos, descobrem os mesmos gostos e preferem as mesmas lutas. Nada disso tem a ver com amizade. As vezes acho que ela representa a relação mais íntima que existe na vida… Talvez por isso seja tão rara. E então, em que se funda? Na simpatia? É um termo impróprio, brando demais: não se pode dizer que a simpatia seja suficiente para levar duas pessoas a se responsabilizarem uma pela outra nas situações mais críticas de suas vidas.
Então, em que mais?
Não haverá talvez uma pitada de Eros no fundo de todas as relações humanas?”



‘Verdades a granel’ - Sándor Márai