sexta-feira, 30 de março de 2012

Pela liberdade a criatura enfrenta o Criador.

Vicente
Naquela tarde, à hora em que o céu se mostrava mais duro e mais sinistro, Vicente abriu as asas negras e partiu. Quarenta dias eram já decorridos desde que, integrado na leva dos escolhidos, dera entrada na Arca. Mas desde o primeiro instante que todos viram que no seu espírito não havia paz. Calado e carrancudo, andava de cá para lá numa agitação contínua, como se aquele grande navio onde o Senhor guardara a vida fosse um ultraje à criação. Em semelhante balbúrdia - lobos e cordeiros irmanados pelo mesmo destino - , apenas a sua figura negra e seca se mantinha inconformada com o procedimento de Deus. Numa indignação silenciosa, perguntava: - a que propósito estavam os animais metidos na confusa questão da torre de Babel? Que tinham que ver os bichos com as fornicações dos homens, que o Criador queria punir? Justos ou injustos, os altos desígnios que determinavam aquele dilúvio batiam de encontro a um sentimento fundo, de irreprimível repulsa. E, quanto mais inexorável se mostrava a prepotência, mais crescia a revolta de Vicente.


Quarenta dias, porém, a carne fraca o prendeu ali. Nem mesmo ele poderia dizer como descera do Líbano para o cais de embarque e, depois, na Arca, por tanto tempo recebera das mãos servis de Noé a ração quotidiana. Mas pudera vencer-se. Conseguira, enfim, superar o instinto da própria conservação, e abrir as asas de encontro à imensidão terrível do mar.


A insólita partida foi presenciada por grandes e pequenos num respeito calado e contido. Pasmados e deslumbrados, viram-no, temerário, de peito aberto, atravessar o primeiro muro de fogo com que Deus lhe quis impedir a fuga, sumir-se ao longe nos confins do espaço. Mas ninguém disse nada. O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal libertação. A consciência em protesto activo contra o arbítrio que dividia os seres em leitos e condenados.


Mas ainda no íntimo de todos aquele sabor de resgate, e já do alto, larga como um trovão, penetrante como um raio, terrível, a voz de Deus:
-Noé, onde está meu servo Vicente?


Bípedes e quadrúpedes ficaram petrificados. Sobre o tombadilho varrido de ilusões, desceu, pesada, uma mortalha de silêncio.
Novamente o Senhor paralisara as consciências e o instinto, e reduzia a uma pura passividade vegetativa o resíduo da matéria palpitante.


Noé, porém, era homem. E, como tal, aprestou as armas de defesa.
-Deve andar por aí... Vicente! Vicente! Que é do Vicente?!...


Nada.
-Vicente!... Ninguém o viu? Procurem-no!


Nem uma resposta. A criação inteira parecia muda.
-Vicente! Vicente! Em que sítio é que ele se meteu?
-Até que alguém, compadecido da mísera pequenez daquela natureza, pôs fim à comédia.
-Vicente fugiu...
-Fugiu?! Fugiu como?
-Fugiu... Voou...


Bagadas de suor frio alagaram as têmporas do desgraçado. De repente, bambearam-lhe as pernas e caiu redondo no chão.
Na luz pardacenta do céu houve um eclipse momentâneo. Pelas mãos invisíveis de quem comandava as fúrias, como que passou, rápido, um estremecimento de hesitação.
Mas a divina autoridade não podia continuar assim, indecisa, titubeante, à mercê da primeira subversão. O instante de perplexidade durou apenas um instante. Porque logo a voz de Deus ribombou de novo pelo céu imenso, numa severidade tonitruante.


-Noé, onde está o meu servo Vicente?
Acordado do desmaio poltrão, trêmulo e confuso, Noé tentou justificar-se.
-Senhor, o teu servo Vicente evadiu-se. A mim não me pesa a consciência de o ter ofendido, ou de lhe haver negado a ração devida. Ninguém o maltratou aqui. Foi a sua pura insubmissão que o levou... Mas perdoa-lhe, e perdoa-me também a mim... E salva-o, que, como tu mandaste, só o guardei a ele...


-Noé!...Noé!...
E a palavra de Deus, medonha, toou de novo pelo deserto infinito do firmamento. Depois, seguiu-se um silêncio mais terrível ainda. E, no vácuo em que tudo parecia mergulhado, ouvia-se, infantil, o choro desesperado do Patriarca, que tinha então seiscentos anos de idade.


Entretanto, suavemente, a Arca ia virando de rumo. E a seguir, como que guiada por um piloto encoberto, como que movida por uma força misteriosa, apressada e firme - ela que até ali vogara indecisa e morosa ao sabor das ondas - , dirigiu-se para o sítio onde quarenta dias antes eram os montes da Arménia.
Na consciência de todos a mesma angústia e a mesma interrogação. A que represálias recorreria agora o Senhor? Qual seria o fim daquela rebelião?


Horas e horas a Arca navegou assim, carregada de incertezas e terror. Iria Deus obrigar o corvo a regressar à barca? Iria sacrificá-lo, pura e simplesmente, para exemplo? Ou que iria fazer? E teria Vicente resistido à fúria do vendaval, à escuridão da noite e ao dilúvio sem fim? E, se vencera tudo, a que paragens arribara? Em que sítio do universo havia ainda um retalho de esperança?


Ninguém dava resposta às próprias perguntas. Os olhos cravaram-se na distância, os corações apertavam-se num sentimento de revolta impotente, e o tempo passava.
Subitamente, um lince de visão mais penetrante viu terra. A palavra, gritada a medo, por parecer ou miragem ou blasfémia, correu a Arca de lés a lés como um perfume. E toda aquela fauna desiludida e humilhada subiu acima, ao convés, no alvoroço grato e alentador de haver ainda chão firme neste pobre universo.


Terra! Desgraçadamente, a doçura do nome trazia em si um travor. Terra... Sim, existia ainda o ventre quente da mãe. Mas o filho? Mas Vicente, o legítimo fruto daquele seio?
Vicente, porém, vivia. À medida que a barca se aproximava, foi-se clarificando na lonjura a sua presença esguia, recortada no horizonte, linha severa que limitava um corpo, e era ao mesmo tempo um perfil de vontade.


Chegara! Conseguira vencer! E todos sentiram na alma a paz da humilhação vingada. Simplesmente, as águas cresciam sempre, e o pequeno outeiro, de segundo a segundo, ia diminuindo. Terra! Mas uma porção de tal modo exígua, que até os mais confiados a fixavam ansiosamente, como a defendê-la da voragem. A defendê-la e a defender Vicente, cuja sorte se ligara inteiramente ao telúrico destino. Ah, mas estavam "rotas as fontes do grande abismo e abertas as cataratas do céu" ! E homens e animais começaram a desesperar diante daquele submergir irremediável do último reduto da existência activa. Não, ninguém podia lutar contra a determinação de Deus. Era impossível resistir ao ímpeto dos elementos, comandados pela sua implacável tirania. Transida, a turba sem fé fitava o reduzido cume e o corvo pousado em cima. Palmo a palmo, o cabeço fora devorado. Restava dele apenas o topo, sobre o qual, negro, sereno, único representante do que era raiz plantada no seu justo meio, impávido, permanecia Vicente. Como um espectador impessoal, seguia a Arca que vinha subindo com a maré. Escolhera a liberdade, e aceitara desde esse momento todas as conseqüências da opção. Olhava a barca, sim, mas para encarar de frente a degradação que recusara.


Noé e o resto dos animais assistiam mudos àquele duelo entre Vicente e Deus. E no espírito claro ou brumoso de cada um, este dilema, apenas: ou se salvava o pedestal que sustinha Vicente, e o Senhor preservava a grandeza do instante genesíaco - a total autonomia da criatura em relação ao criador -, ou, submerso o ponto de apoio, morria Vicente, e o seu aniquilamento invalidava essa hora suprema. A significação da vida ligara-se indissoluvelmente ao acto de insubordinação. Porque ninguém mais dentro da Arca se sentia vivo. Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele corvo negro, molhado da cabeça aos pés, que, calma e obstinadamente, pousado na derradeira possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência.


Três vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou. A cada vaga, o coração frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de terror. A morte temia a morte.
Mas em breve se tornou evidente que o Senhor ia ceder. Que nada podia contra àquela vontade inabalável de ser livre.
Que, para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as comportas do céu.


Miguel Torga - Bichos.


Lindo, lindo, lindo...comovente  em todos os contos . Uma sensibilidade impar .

quarta-feira, 28 de março de 2012

Existir é bom.




A vida é boa acima de tudo; é boa por si mesma; o raciocínio nada conta para isso. Não se é feliz por viagem, riqueza, sucesso, prazer. É-se feliz porque se é feliz. A felicidade é o sabor mesmo da vida. Como o morango tem gosto de morango, assim a vida tem gosto de felicidade.

O sol é bom; a chuva é boa; todo ruído é música. Ver, ouvir, cheirar, saborear, tocar não é mais do que uma sucessão de felicidades. Mesmo os pesares, mesmo as dores, mesmo o cansaço, tudo isso tem um sabor de vida. Existir é bom; não melhor do que outra coisa; pois existir é tudo, e não existir não é nada.

Agir é uma alegria. Perceber é uma alegria também. Não somos condenados a viver; vivemos avidamente. Queremos ver, tocar, julgar; queremos descobrir o mundo. Viver é querer viver. Qualquer vida é um canto de regozijo.





André Comte-Sponville, Bom dia, angústia!, p. 45-6 (Martins Fontes)

domingo, 25 de março de 2012

Os homens definem-se pela ausência.



No Devagar Depressa dos Tempos.


Quantas vezes não me tenho aproximado dos outros para me distanciar de mim?
Quero encontrar-me naquilo que me dispersa como se a unidade se atingisse pela sobreposição de todos os contrários.
Quero encontrar-me naquilo que me une e só me reconheço naquilo que me mortifica.
A duração não se compõe da soma de todos os instantes mas na perspectiva duma única fidelidade.

«Cada um de nós compõe-se sobretudo daquilo que não sabe, daquilo que nunca viu. Os homens são como pedaços de memória: definem-se pela ausência.»


Marcelo Duarte Mathias

Aproximar-me do outro para me distanciar de mim...será?!!!!

quinta-feira, 22 de março de 2012

Nem sempre está no outro o que nos falta.




Não se basta a si próprio o que não tem com que se bastar. Assim se explica que ele busque nos outros o que lhe falta em si mesmo. Isto deve estar certo. E todavia pode não estar. O que falta no que encontramos pode não ter que ver com o que lá está, mas com o que lá se procura. O erro está pois no que se não deve procurar.


Posso procurar um sistema de ideias onde só encontro uma dose de senso comum. Posso encontrar uma côdea de pão onde procurei um bife com ovo a cavalo. Assim há que ir procurar no fornecimento alheio o que nos falta no próprio - em contentamento, em pacificação, em reconhecimento da glória de que duvido ou não tenho.


E no entanto, a ambição puramente individual é à nossa medida que deveria talhar-se. Exceto talvez para o que sustenta essa ambição, ou seja para o que nos sustenta. Mas nesse caso a ambição chama-se justiça e já não é individual. E nesse caso fazem-se revoluções.

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente IV'

quarta-feira, 21 de março de 2012

Uma aula de poesia.



      A Procura da Poesia.

      Não faças versos sobre acontecimentos.
      Não há criação nem morte perante a poesia.
      Diante dela, a vida é um sol estático,
      não aquece nem ilumina.
      As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
      Não faças poesia com o corpo,
      esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

      Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
      são indiferentes.
      Nem me reveles teus sentimentos,
      que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
      O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

      Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
      O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
      Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

      O canto não é a natureza
      nem os homens em sociedade.
      Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
      A poesia (não tires poesia das coisas)
      elide sujeito e objeto.

      Não dramatizes, não invoques,
      não indagues. Não percas tempo em mentir.
      Não te aborreças.
      Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
      vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
      desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

      Não recomponhas
      tua sepultada e merencória infância.
      Não osciles entre o espelho e a
      memória em dissipação.
      Que se dissipou, não era poesia.
      Que se partiu, cristal não era.

      Penetra surdamente no reino das palavras.
      Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
      Estão paralisados, mas não há desespero,
      há calma e frescura na superfície intata.
      Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
      Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
      Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
      Espera que cada um se realize e consume
      com seu poder de palavra
      e seu poder de silêncio.
      Não forces o poema a desprender-se do limbo.
      Não colhas no chão o poema que se perdeu.
      Não adules o poema. Aceita-o
      como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
      no espaço.

      Chega mais perto e contempla as palavras.
      Cada uma
      tem mil faces secretas sob a face neutra
      e te pergunta, sem interesse pela resposta,
      pobre ou terrível, que lhe deres:
      Trouxeste a chave?

      Repara:
      ermas de melodia e conceito
      elas se refugiaram na noite, as palavras.
      Ainda úmidas e impregnadas de sono,
      rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

     Carlos Drummond de Andrade 
 No Dia Mundial da Poesia  ,a simbiose perfeita entre o poeta e a palavra. Um alumbramento.

terça-feira, 20 de março de 2012

Pareil a la feuille mort...



Impregnada de outono até os ossos...Feliz!
(Dei-me conta de que há anos  eu não dizia essa palavra sobre mim.)

Em todos os idiomas...



Chanson d'automne

Les sanglots longs
Des violons
De l'automne
Blessent mon coeur
D'une langueur
Monotone.

Tout suffocant
Et blême, quand
Sonne l'heure,
Je me souviens
Des jours anciens
Et je pleure

Et je m'en vais
Au vent mauvais
Qui m'emporte
Deçà, delà,
Pareil à la
Feuille morte.              Paul Verlaine.





          Autumn Leaves - Eric Clapton



segunda-feira, 19 de março de 2012

O prazer íntimo de observar os céus.




Ah! se os homens soubessem, do mais modesto camponês cultivando os campos, do operário mais trabalhador das cidades,ao professor, ao homem que vive de renda até o homem de fortuna ou de glória mais eminente, e até a mulher mundana de aparência mais frívola, sim, se soubéssemos que prazer íntimo e profundo espera o observador dos céus, a França, a Europa inteira se cobririam de lunetas em vez de se cobrirem de baionetas, para grande proveito da paz e da felicidade universais.


Camille Flammarion /1880


Em alguns minutos, li , hoje pela manhã,algumas páginas sobre Newton e Halley e descobri que passei anos odiando algo que nunca entendi: matemática e física. Poderia ter sido muito diferente. Que pena!
Vistas sob um novo olhar , percebo a importância  e a responsabilidade de um professor  nos conceitos mais primários com que conduzimos a vida. Sim, temos personalidade, mas sofremos influências, as boas, e também as más, principalmente.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Acácias em uma curva do caminho.




De algum tempo para cá, tenho me percebido de inúmeras maneiras até então desconhecidas e uma delas é voltar em flashs – sob um novo olhar-  a algo que vivi em um determinado momento.
Hoje, aconteceu ao fazer uma curva na avenida e me deparar com um pé de acácias amarelinho e sem folhas. De qualquer maneira , eu iria notá-lo, porque sou atraída por essa cor desde que me entendo por gente.

Mas, nessa manhã, foi diferente: bati os olhos na bela árvore e vi a casa da minha avó, onde um imenso pé de acácias ficava rente ao muro, ao lado do portão do jardim. Abri esse portãozinho e mergulhei por  segundos em um mar de lembranças .
A magia de uma casa antiga e segredos desvendados por uma criança:
- A galinha cantou!.. e lá ia eu colher um ovo quentinho em um quintal cheio de maravilhas. Amoras, tamarindo, jambo ...frutas que se apanhavam no pé.

Na sala de jantar, um guarda-louças, em sua primeira gaveta, escondia um pedaço enorme de queijo parmesão italiano, com a casca escurecida, que minha avó cortava em grandes lascas .Sinto o sabor delas , agora, ainda. E o doce de leite?...hummm. Para mim , ainda havia a esperada sexta-feira, na qual invariavelmente o almoço era macarrão alho e óleo, polvilhado com as tais lascas do parmesão.

Há décadas ,minha avó se foi, mas , hoje eu estive na casa dela, com tal intensidade que bem poderia tocar nos móveis e sentir o sabor de sua presença .Voltei a mim, quando o sinal se abriu.

Acho que isso é o envelhecer. Você se dá conta,de repente, que viveu momentos prosaicos que parecem esquecidos, mas eles estão  intactos para saírem sob a forma de nostalgia, em um dia qualquer em que seu coração estiver aberto para a vida, ou simplesmente...para um lindo pé de acácias.

quarta-feira, 14 de março de 2012

O medo rouba-nos a capacidade de viver.




não guardes os medos
por José Carlos Barros, sábado, 2 de abril de 2011 às 00:50.

não guardes os medos e o coração na mesma gaveta
não deixes o ruído de uns
intrometer-se onde
no outro a luz é quase de água
não escolhas entre duas verdades
não deixes acesas durante a noite as lâmpadas
tão difusas
dos provérbios                                                                                                                                                                    
às vezes é preciso queimar as páginas dos
livros dos usos
às vezes é preciso olhar de frente a luz
da flor da dedaleira
essa que dizem que cega
só de nos aproximarmos
dela

 Quem, por medo do terrível, prefere o caminho prudente de fugir do risco, já nesse ato estará morto. Porque o medo lhe terá roubado aquilo que de mais precioso existe na vida humana: a capacidade de se arriscar para viver o que se ama.
Rubem Alves


O medo é meu terrível limite.Maior que a dor ou ...ela.

sábado, 10 de março de 2012

Gastamos tudo menos o silêncio.



ADEUS

Já gastamos as palavras pela rua, meu amor, e o que nos ficou não chega para afastar o frio de quatro paredes. Gastamos tudo menos o silêncio. Gastamos os olhos com o sal das lágrimas, gastamos as mãos à força de as apertarmos, gastamos o relógio e as pedras das esquinas em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada. Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro; era como se todas as coisas fossem minhas: quanto mais te dava mais tinha para te dar. Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes. E eu acreditava. Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis. Mas isso era no tempo dos segredos, no tempo em que o teu corpo era um aquário, no tempo em que os meus olhos eram realmente peixes verdes. Hoje são apenas os meus olhos. É pouco, mas é verdade, uns olhos como todos os outros. 
Já gastamos as palavras. Quando agora digo: meu amor, já não se passa absolutamente nada. E, no entanto, antes das palavras gastas, tenho a certeza de que todas as coisas estremeciam só de murmurar o teu nome no silêncio do meu coração.
 Não temos já nada para dar. Dentro de ti não há nada que me peça água. O passado é inútil como um trapo. E já te disse: as palavras estão gastas. Adeus.


 EUGÊNIO DE ANDRADE  In "Os Amantes sem Dinheiro"


...pedras das esquinas em esperas inúteis. Que enormidade é a tristeza que essas palavras traduzem.Escorrem como rios de sal e sangue na alma de quem já esperou em vão.

terça-feira, 6 de março de 2012

A vida se incumbe de mudar nossos sonhos.


Há 45 anos , eu era assim...um repositório de sonhos e expectativas.22 tenros e inexperientes anos.
Em meu rosto,  olhos e sorriso não conseguiam reproduzir a sensação de alegria de "ter chegado lá" ao receber um diploma de advogada. Era apenas uma, em um exército de jovens,sentindo-se onipotente.Essa  foto guardada e as lembranças adormecidas foram restauradas por um email- convite: um reencontro 4 décadas e meia depois. Por que não?
Nesse sábado,com o coração aos pulos, a primeira impressão, um  misto de surpresas, alegrias, ausências definitivas ( ...tão cedo!), tristezas e..sonhos ( ainda!).Não os mesmos, a vida incumbiu-se de mudá-los.A princípio o reconhecimento entre nós ,difícil na fisionomia e fácil no olhar, ou no som da risada. Ecos de um passado tão longínquo ao alcance das mãos...mas só ecos. Audíveis,mas intocáveis porque só a memória os tinha, ou fotos já envelhecidas em preto-e-branco..
E a inevitável pergunta silenciosa, não formulada: quantos de nós , realmente, teriam chegado lá? Alguns, dentre eles muitos dos mais brilhantes alunos, jamais exerceram a advocacia, outros acumularam cargos e aposentadorias e poucos ainda exercem a profissão.
Conclui o que já sabia:não me arrependo de haver cursado Direito, nem de uma coleção de diplomas (11) que complementaram meu curso, porque a leitura habitual, o sentido crítico aguçado, a amplidão cultural , enriqueceram minha vida  e estenderam meu horizonte.Mas, definitivamente, nunca fui uma advogada, nem nos dois parcos anos em que exerci realmente a profissão. De toda a colheita, para os que ali estavam, os troféus exibidos foram filhos e netos, a família, enfim. O mais havia se esvaído em uma gama de sustos,tropeços, sucessos, quando algum houve.
Reencontrei pessoas de quem fui muito próxima e os laços se restabeleceram e perdi outras que, sob um novo olhar, não consegui resgatar.
Volto para casa no final da tarde com uma inquietação latente.Quero relatar a sensação que me vai na alma e as palavras - tão fáceis no cotidiano - não saem.Na verdade foi uma alegria - não felicidade- o reencontro.Mas a emoção que eu contava sentir não veio.Tenho dúvidas e indagações , não sobre os outros , mas sobre mim mesma e continuo sem  resposta.


O que éramos naquela época? O que somos,hoje? Poderia ou deveria ter sido diferente?E eu, quem sou?
Não se vai ao passado impunemente , esperando reencontrar o que lá ficou guardado. O que vivemos é memória, saudade, ou qualquer outro sentimento, mas irrecuperável.
Os sonhos impulsionam a vida, mas esta se incumbe de mudá-los para que a gente consiga continuar...





quinta-feira, 1 de março de 2012

A lua não chora quando amanhece.



Envelhecer : com mel ou fel ?


Conheço muitas pessoas que estão envelhecendo mal. Desconfortavelmente. Com uma infelicidade crua na alma. Estão ficando velhas, mas não estão ficando sábias. Um rancor cobre-lhes a pele, a escrita e o gesto. São críticos azedos, aliás estão ficando cítricos sem nenhuma doçura nas palavras. Estão amargos. Com fel nos olhos.

E alguns desses, no entanto, teriam tudo para ser o contrário : aparentemente tiveram sucesso em suas atividades. Maior até do que mereciam. Portanto a gente pensa : o que querem? Por que essa bílis ao telefone e nos bares ? Por que esse resmungo pelos cantos e esse sarcasmo que se pensa humor ? Isto está errado. Errado, não porque esteja simplesmente errado, mas porque tais pessoas vivem numa infelicidade abstrusa. E, ademais, deveria-se envelhecer maciamente. Nunca aos solavancos. Nunca aos trancos e barrancos. Nunca como alguém caindo num abismo e se agarrando nos galhos e pedras, olhando enquanto despenca. Jamais também, como quem está se afogando, se asfixiando ou morrendo numa câmara de gás.

Envelhecer deveria ser como plainar. Como quem não sofre mais (tanto), com os inevitáveis atritos. Assim como a nave que sai do desgaste da atmosfera e vai entrando noutro astral, e vai silente, e vai gastando nenhum-quase combustivel, flutuando como uma caravela no mar ou uma cápsula no cosmos.

Os elefantes, por exemplo, envelhecem bem. E olha que é uma tarefa enorme. Não se queixam do peso dos anos, e nem da ruga do tempo, e , quando percebem a hora da morte, caminham pausadamente para um certo lugar - o cemitério dos elefantes, e aí morrem, completamente, com a grandeza existencial só aos sábios permitida.

Os vinhos envelhecem melhor ainda. Ficam ali nos limites de sua garrafa, na espessura de seu sabor, na adega do prazer. E vão envelhecendo e ganhando vida, envelhecendo e sendo amados, e, porque velhos, desejados. Os vinhos envelhecem densamente. E dão prazer.

O problema da velhice também se dá com certos instrumentos. Não me refiro aos que enferrujam pelos cantos, mas a um envelhecimento atuante como o da faca. Nela o corte diário dos dias a vai consumindo. E no entanto, ela continua afiadíssima, encaixando-se nas mãos da cozinheira como nenhuma outra faca nova.

Vai ver, a natureza deveria ter feito os homens envelhecerem diferente. Como as facas, digamos, por desgaste, sim, mas nunca desgastante. Seria uma suave solução: a gente devia ir se gastando, se gastando, se gastando até se evaporar. E aí iam perguntar: cadê fulano? E alguém diria: gastou-se foi vivendo, vivendo, e acabou. Acabou, é claro, sem nenhum gemido ou resmungo. 
Isto seria muito diferente de ir envelhecendo por um processo de humilhações sucessivas, como essa coisa de ir deixando rins, pulmões, dentes e intestinos pelas mesas de cirurgia, numa mutiladora dispersão.

Acho que o que atrapalha alguns maus envelhecedores é a desmesurada projeção que fizeram de si mesmos. Se dimensionaram equivocadamente. Deveria ser proibido, por algum mecanismo biológico, colocarmos metas acima de nossas forças.

Seria a única solução de acabar com a fábula da raposa e as uvas. Assim a raposa não envelheceria resmungando por não ter devorado o que não lhe pertencia. Deveria, portanto, haver um relais, que desligasse nossos impulsos toda vez que quiséssemos saltar obstáculos para os quais não temos músculos.
Assim sofreríamos menos e não amargaríamos não ter tido certas mulheres, conquistado certos reinos, escrito certas obras primas.

A literatura tem lá seus personagens-símbolos a esse respeito: o Fausto e Dorian Gray. Apavorados com a velhice e a morte, venderam a alma ao diabo, e em troca pediram a juventude de volta. Não deu certo. O diabo não joga para perder. Dizem que a única vez que foi realmente derrotado foi naquela disputa com o próprio Deus a respeito de Jó. Mesmo assim, deu um trabalho danado.

Especialistas vão dizer que envelhece mal o indivíduo que não realizou suas pulsões eróticas assenciais; que deixou coagulada ou oculta uma grande parte de seus desejos. Isto é verdade. Parcial porém. Pois não se sabe por que estranhos caminhos de sublimação, há pessoas que, embora roxas de levar tanta pancada da vida, têm, contudo, um arco-íris na alma.

Bilac dizia que a gente deveria aprender a envelhecer com as velhas árvores. Walt Whitman tem um poema onde vai dizendo: " Penso que podia viver com os animais que são plácidos e bastam-se a si mesmos".

Ainda agora tirei os olhos do papel e olhei a natureza em torno. Nunca vi o sol se queixar no entardecer. Nem a lua chorar quando amanhece.


Affonso Romano de Sant'anna 
Jornal do Brasil
30/07/87.