quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A vertigem de uma recordação perdida.




Nunca se tinha demorado nos prazeres da memória. As impressões resvalavam sobre ele, momentâneas e vividas; o vermelhão de um oleiro, a abóbada carregada de estrelas que também eram deuses, a lua, de que tinha caído um leão, a lisura do mármore sob as lentas gemas sensíveis, o sabor da carne de javali, que gostava de rasgar com dentadas brancas e bruscas, uma palavra fenícia, a sombra negra que uma lança projecta na areia amarela, a proximidade do mar ou das mulheres, o pesado vinho cuja aspereza o mel mitigava, podiam abarcar por inteiro a sua alma.


Conhecia o terror mas também a cólera e a coragem, e uma vez foi o primeiro a escalar um muro inimigo. Ávido, curioso, casual, sem outra lei que a fruição e a indiferença imediata, percorreu a terra vária e olhou, numa e noutra margem do mar, as cidades dos homens e os seus palácios. Nos mercados populosos ou no sopé de uma montanha de cume incerto, em que bem podia haver sátiros, tinha escutado complicadas histórias, que recebeu como recebia a realidade, sem imaginar se eram verdadeiras ou falsas.
Gradualmente, o formoso universo foi-o abandonando; uma teimosa neblina confundiu-lhe as linhas da mão, a noite despovoou-se de estrelas, a terra era insegura sob os seus pés. Tudo se afastava e confundia.


Quando soube que estava a ficar cego, gritou; o pudor estóico não tinha sido inventado e Heitor podia fugir sem deslustre. Já não verei (percebeu) nem o céu cheio de pavor mitológico, nem esta cara que os anos transformarão. Dias e noites passaram sobre esse desespero da sua carne, mas uma manhã acordou, olhou (já sem assombro) as indistintas coisas que o rodeavam e inexplicavelmente sentiu, como quem reconhece uma música ou uma voz, que tudo isso já lhe tinha acontecido e que o havia encarado com temor, mas também com júbilo, esperança e curiosidade.


Então desceu à sua memória, que lhe pareceu interminável, e conseguiu tirar daquela vertigem a recordação perdida que reluziu como uma moeda sob a chuva, talvez porque nunca a tivesse olhado, salvo, quem sabe, num sonho..."

Jorge Luis Borges, in O Fazedor, (Difel 2002)


Se pudéssemos selecionar as recordações, teríamos o paraíso.Escolheríamos  todas as pessoas e fatos que nos fizeram felizes, ainda que por um breve momento. Porém, a memória se incumbe de guardar tantas lembranças que gostaríamos de esquecer, apagar! Estas com uma nitidez espantosa, intermináveis, e não as podemos descartar.Isto é, no mínimo, doloroso.

2 comentários:

  1. Verdade, amiga, e sabemos quão marcantes são as lembranças de acontecimentos dolorosos. A dor marca mais a alma do que a alegria. Se não podemos 'deletar' os arquivos danosos, podemos, não sem algum esforço ou ajuda especializada, reconfigurá-los. Temos de nos contentar com a possibilidade de mantê-los num quartinho escuro de nossa alma e evitar vasculhá-los.

    Beijos!

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  2. Se pudessemos descartar as lembranças dolorosas, estaríamos assim neutralizando as lembranças felizes, correndo o riscoo de torná-las imperceptíveis. Faz-se necessário conhecer a dor para reconhecer e valorizar aquilo que nos faz realmente feliz; e nestas lembranças buscarmos o reconforto e a força para seguir em frente.
    Beijos

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