sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Para sempre.Para nunca mais.



Pai. A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quieto nos rostos. Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Anoitecia devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos os preceitos e, seguindo regras certas, regavas as árvores e as flores do quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa indiferente deste mundo que finge continuar, os teus movimentos, o eclipse dos teus gestos. E tudo isto é agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei.

José Luís Peixoto
In Morreste-me, Lisboa, Temas e Debates, 2001


Esse texto inundou meu coração de saudade.Suave e intenso ..."E fico.Estou."




3 comentários:

  1. Deixa-nos em silêncio, com um nó na garganta... e subitamente sentimos a falta de quem ainda não partiu.

    Beijinho

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  2. Bastante emocionante, sem dúvidas!

    Beijinho

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  3. Giselda,
    Regressei a medo. Medo das palavras nossas e do que elas não alcançam.

    José Luís Peixoto é dos meus escritores favoritos. Adorei o livro, embora me encha o coração de tristeza e o olhar de lágrimas.

    Um beijinho

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