sexta-feira, 24 de junho de 2011

Selecionando os retalhos da vida dos outros.


Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos. Os dedos sobre o teclado, as letras se reunindo com maior ou menor velocidade, mas com igual indiferença pelo que vão dizendo, enquanto lá fora a vida estoura não só em bombas como também em dádivas de toda natureza, inclusive a simples claridade da hora, vedada a você, que está de olho na maquininha. O mundo deixa de ser realidade quente para se reduzir a marginália, puré de palavras, reflexos no espelho (infiel) do dicionário.

O que você perde em viver, escrevinhando sobre a vida. Não apenas o sol, mas tudo que ele ilumina. Tudo que se faz sem você, porque com você não é possível contar. Você esperando que os outros vivam, para depois comentá-los com a maior cara-de-pau ("com isenção de largo espectro", como diria a bula, se seus escritos fossem produtos medicinais). Selecionando os retalhos de vida dos outros, para objeto de sua divagação descompromissada. Sereno. Superior. Divino. Sim, como se fosse deus, rei proprietário do universo, que escolhe para o seu jantar de notícias um terremoto, uma revolução, um adultério grego — às vezes nem isso, porque no painel imenso você escolhe só um besouro em campanha para verrumar a madeira. Sim, senhor, que importância a sua: sentado aí, camisa aberta, sandálias, ar condicionado, cafezinho, dando sua opinião sobre a angústia, a revolta, o ridículo, a maluquice dos homens. Esquecido de que é um deles.
Ah, você participa com palavras? Sua escrita — por hipótese — transforma a cara das coisas, há capítulos da História devidos à sua maneira de ajuntar substantivos, adjetivos, verbos? Mas foram os outros, crédulos, sugestionáveis, que fizeram o acontecimento. Isso de escrever «O Capital» é uma coisa, derrubar as estruturas, na raça, é outra. E nem sequer você escreveu «O Capital». Não é todos os dias que se mete uma ideia na cabeça do próximo, por via gramatical. E a regra situa no mesmo saco escrever é abster-se. Vazio, antes e depois da operação.
 
Excerto -Carlos Drummond de Andrade.
 
 
Simplesmente genial, como Drummond sempre consegue ser.

3 comentários:

  1. Por um momento, pensei que Drummond escrevia sobre sua própria atividade, ironicamente. Mas, depois, ele evoca a obra de Marx e a sua pretensão de conciliar teoria e prática com o objetivo de superar as estruturas capitalistas. A distância entre o real e a escrita sobre o real, entre o exercício de pensá-lo e o de transformá-lo...Sutileza crítica do poeta!

    Beijos!

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  2. Escrever é triste mesmo... porque só assim a ação se faz... já que sou incapaz de fazer, escrevo...
    rs.... um vinho agora....
    saudades imensas , minha amiga!
    você é magistral!
    mil beijos

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