terça-feira, 31 de maio de 2011

Desviar das setas.


COMUNICADO

Só por hoje
vou rasgar os códigos.
Desacato as regras,
a água morna,
os preços módicos.
Só por hoje
desacredito das retas,
descarrilho do trilho,
desvio das setas.
Preciso de tempo pra sonhar,
respirar fundo e carregar na mão
o sal da vida e o mel do mundo.
Se o compromisso tocar a campainha,
peço que aguarde na casa vizinha,
mansamente, sem fazer alarde.
Mas comunico a todos pela imprensa
que sumiu a lucidez.
Pediu licença.
É só por hoje,
mas agora é minha vez.
( os grifos são meus)
Flora Figueiredo


Em "A Igreja do Diabo", de Machado de Assis, descreve a necessidade que o homem teria de regras que lhe digam o que fazer e como se comportar. Uma vez conseguido isso, ele passaria a violar secretamente as normas que tanto desejou.

Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma Igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. (...) Está claro que (o Diabo) combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie. (...) A Igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.


Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. (...) Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano (...) muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros. [Nota: embaçar: lograr, enganar]


Quebrar regras para "carregar na mão o sal da vida e o mel do mundo" . Por que não?
Lindooooo!

domingo, 29 de maio de 2011

Talvez a grande resposta. A única.


Fico pensando se viver não será sinônimo de perguntar.
A gente se debate, busca, segura o fato com duas mãos sedentas e pensa: Achei! Achei!
Mas ele escorrega se espatifa em mil pedaços, como um vaso de barro coberto apenas por uma leve camada de louça.


A gente fica só, outra vez, e tem que começar do nada, correndo loucamente em busca dos outros vasos que vê. Cada um que surge parece o último, mas todos são de barro, quebram-se antes que possamos reformular as perguntas.
E começamos de novo, mais uma vez, dia após dia, ano após ano.
Um dia a gente chega à frente do espelho e descobre: Envelheci!


Então a busca termina. As perguntas colam no fundo da garganta, e vem a morte.
Que talvez seja a grande resposta.
A única.

Caio Fernando de Abreu
Limite Branco

Na verdade, perguntas sem respostas nos desafiam.Formam uma teia intrincada , elos de uma corrente que só tem fim quando " ela" chega. E descobrimos que nenhuma resposta  definitiva virá, a não ser "ela"Mas , aí, que importa a resposta se ela não passa de uma outra pergunta ? E agora?...

sábado, 28 de maio de 2011

Um passado de amor pode ser insuperável.


Durante sete anos , separados pelo destino, amaram-se a distância. Sem que um soubesse o paradeiro do outro, procuravam-se através dos continentes, cruzavam pontes e oceanos, vasculhavam vielas, indagavam. Bússola de longa busca, levavam a lembrança de um rosto sempre mutante, em que o desejo, incessantemente, redesenhava os traços apagados pelo tempo.
Já quase nada havia em comum entre aqueles rostos e a realidade, quando enfim, num praça se encontraram. Juntos, podiam agora viver a vida com que sempre haviam sonhado.Porém cedo descobriram que a força do seu passado amor era insuperável.
Depois de tantos anos de afastamento, não podiam viver senão separados, apaixonadamente desejando-se. E, entre risos e lágrimas, despediram-se, indo morar em cidades distantes.

Marina Colasanti

Sem palavras. Só saudades.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Entre partir e ficar.

Entre partir e ficar hesita o dia,
enamorado de sua transparência.
A tarde circular é uma baía:
em seu quieto vai e vem se move o mundo.

Tudo é visível e tudo é ilusório,
tudo está perto e tudo é intocável.
Os papéis, o livro, o vaso, o lápis
repousam à sombra de seus nomes.

Pulsar do tempo que em minha têmpora repete
a mesma e insistente sílaba de sangue.
A luz faz do muro indiferente
Um espectral teatro de reflexos.

No centro de um olho me descubro;
Não me vê, não me vejo em seu olhar.
Dissipa-se o instante. Sem mover-me,
eu permaneço e parto: sou uma pausa.

Otávio Paz

É na pausa que mora o segredo.
Partir é desnudar o desconhecido,aventurar-se; ficar é receber o aconchego do já vivido.
Mas, como diria Zuenir Ventura : A cabeça pode gostar de novidade, mas o coração adora repetir o já provado. Se as idéias vivem da originalidade, os sentimentos gostam da redundância. Não é por acaso que o prazer procura a repetição.

É assim que , na maioria das vezes, acabamos ficando...

sábado, 21 de maio de 2011

Algumas escolhas nós vivemos vezes sem fim.

Uma máxima de aviador: "A Regra das Consequências Não-Intencionais.

Em vinte anos você saberá como isso é profundo. Todo professor de verdade é você mesmo disfarçado.Gostaria de possuir algumas máximas de primeira? Estou vasculhando minha vida neste minuto para lhe fornecer de graça o melhor que sei, comprado ao preço de todos os meus dias. Você é infinitamente inteligente. Se não as entender agora, vai entendê-las mais tarde, no seu próprio tempo.

"Ponha a segurança acima da felicidade e esse é o preço que irá pagar por ela."

"Culpa é a tensão que sentimos por mudarmos o passado, presente ou futuro em função de alguém."

"Algumas escolhas nós vivemos não uma só vez, mas vezes sem fim, lembrando para o resto de nossas vidas. Nossa sorte é não termos recordação de outras vidas...imobilizados pela memória, não poderíamos prosseguir com esta."

"_Tenha isso em mente: nós nunca crescemos. Tudo o que vemos de uma pessoa, rica ou pobre, alegre ou triste, num determinado momento, é um instantâneo de sua vida. Instantâneos não mostram as milhões de decisões que levaram àquele momento."

"A mais leve sugestão de mudança é uma ameaça de morte a alguns status quo."

"Razão premente nunca convence emoção cega."

As coisas ao nosso redor...casas, empregos, carros...são acessórios, cenários para o nosso amor. As coisas que possuímos, os lugares em que vivemos, os eventos de nossas vidas: cenários vazios. Como é fácil mudar os cenários, esquecer diamantes!

A única coisa que importa, ao final de uma estada na Terra, é quão bem amamos, qual foi a qualidade do nosso amor?

Richard Bach

Não se pode ensinar a vida. Ela acontece cheia de imprevistos que resolvemos ou não, mas nada nos prepara nem para resolvê-los , nem para ensiná-los.E nem mesmo para aprender.
Sem dúvida, viver é escolher- todos os dias -algo que nos levará a algum lugar ou a alguém. Mas, onde?... e a quem?

terça-feira, 17 de maio de 2011

O homem nasceu para a felicidade.


Ser feliz é, afinal, não esperar muito da felicidade, ser feliz é ser simples, desambicioso, é saber dosar as aspirações até àquela medida que põe o que se deseja ao nosso alcance. Pegando de novo em Tolstoi, que vem sendo em mim um padrão tutelar, lembremos de novo um dos seus heróis, o príncipe Pedro Bezoukhov (do romance 'Guerra e Paz'). As circunstâncias fizeram-no conviver no cativeiro com um símbolo da sabedoria popular, um tal Karataiev. Pois esse companheirismo desinteressado e genuíno, esse encontro com a vida crua mas desmistificadora, não só modificaram o príncipe Pedro como lhe revelaram o que ele precisava de saber para atingir o que nós, pobres humanos, debalde perseguimos: a coerência, a pacificação interior, que são correctivos da desventura.

Tolstoi salienta-nos que Pedro, após essa vivência, apreendera, não pela razão mas por todo o seu ser, que o homem nasceu para a felicidade e que todo o mal provém não da privação mas do supérfluo, e que, enfim, não há grandeza onde não haja verdade e desapego pelo efémero. Isto, aliás, nos é repetido por outra figura de Tolstoi, a princesa Maria, ao acautelar-nos com esta síntese desoladora: «Todos lutam, sofrem e se angustiam, todos corrompem a alma para atingir bens fugazes».

Fernando Namora, in 'Sentados na Relva'
Nascer para a felicidade e não perceber como tocá-la...Corromper a alma para atingir bens fugazes...triste destino!

domingo, 15 de maio de 2011

Um sentimento de glória interior.

Você quer escrever. Certo, mas você quer escrever? Ou todo mundo te cobra e você acha que tem que escrever? Sei que não é simplório assim, e tem mil coisas outras envolvidas nisso. Mas de repente você pode estar confuso porque fica todo mundo te cobrando, como é que é, e a sua obra? Cadê o romance, quedê a novela, quedê a peça teatral? DANEM-SE, demônios. Zézim, você só tem que escrever se isso vier de dentro pra fora, caso contrário não vai prestar, eu tenho certeza, você poderá enganar a alguns, mas não enganaria a si e, portanto, não preencheria esse oco.

Não tem demônio nenhum se interpondo entre você e a máquina. O que tem é uma questão de honestidade básica. Essa perguntinha: você quer mesmo escrever? Isolando as cobranças, você continua querendo? Então vai, remexe fundo, como diz um poeta gaúcho, Gabriel de Britto Velho, "apaga o cigarro no peito / diz pra ti o que não gostas de ouvir / diz tudo". Isso é escrever. Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a "função social", nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te. Você não está com medo dessa entrega? Porque dói, dói, dói. É de uma solidão assustadora. A única recompensa é aquilo que Laing diz que é a única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de glória interior. Essa expressão é fundamental na minha vida.
Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de "meio doida”. Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud.

Caio Fernando Abreu

Escrever é sangrar.Esse excerto é fragmento de um texto longo, mas intenso, viceral. É para ser bebido e degustado como a um bom vinho , aos goles.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

...um inconfundível momento azul.

Não fora a foto no porta- retrato, eu diria que inventei você.

Entre amarelos e roxos você ficou na minha memória como um inconfundível momento azul.Na  realidade etérea  colibris cantavam intermitentes ,esperando que você se fosse, mas você vinha.
E ficava.
O minuto tinha sabor de horas que se esgotavam em sonhos tão palpáveis que minha alma não ousava acreditar.Nem minhas mãos.
Breves longos instantes , sabor agridoce de volúpia e  medo.
Há quantos tempo? Ecos indistintos ,a volta em uma névoa esmaecida do nunca mais.
Foram-se ,você e a vida...

Não fora a foto no porta -retrato, eu diria que inventei você...


...para alguém que se foi, mas não esmaeceu.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Algumas coisas não servem mais.

A gente finge que arruma o guarda-roupa, arruma o quarto, arruma a bagunça. Tira aquele tanto de coisa que não serve, porque ocupar espaço com coisas velhas não dá. As coisas novas querem entrar, tanta coisa bonita nas lojas por aí. Mas a gente nunca tira tudo. Sempre as esconde aqui, esconde ali, finge para si mesmo que ainda serve. A gente sabe. Que tá curta, pequeno, apertado. É que a gente queria tanto. Tanto.


Acredito que arrumar a bagunça da vida é como arrumar a bagunça do quarto. Tirar tudo, rever roupas e sapatos, experimentar e ver o que ainda serve, jogar fora algumas coisas, outras separar para doação. Isso pode servir melhor para outra pessoa. Hora de deixar ir. Alguém precisa mais do que você. Se livrar. Deixar pra trás.
Algumas coisas não servem mais. Você sabe. Chega. Porque guardar roupa velha dentro da gaveta é como ocupar o coração com alguém que não lhe serve. Perda de espaço, tempo, paciência e sentimento. Tem tanta gente interessante por aí querendo entrar. Deixa. Deixa entrar: na vida, no coração, na cabeça.

Caio F.Abreu

...precisando, urgentemente, arrumar a bagunça da vida!

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Eu não sou nada. Sou o minuto e a eternidade.


Não me compreendo nem compreendo os outros. Não sei quem sou e vou morrer. Tudo me parece inútil e agarro-me com desespero a um fio de vida, como um náufrago a um pedaço de tábua.

Nem sei o que é a vida. Chamo vida ao espanto. Chamo vida a esta saudade, a esta dor; chamo vida e morte a este cataclismo. É a imensidade e um nada que me absorve; é uma queda imensa e infinita, onde disponho de um único momento.Talvez o mundo não exista, talvez tudo no mundo sejam expressões da minha própria alma.


Faço parte de uma coisa dolorosa, que totalmente desconheço, e que tem nervos ligados aos meus nervos, dor ligada à minha dor, consciência ligada à minha consciência. Estou até convencido que nenhum destes seres existe. Este fel é o meu fel, este sonho grotesco o meu sonho. Estou convencido que tudo isto são apenas expressões de dor – e mais nada.
Nós não vemos a vida – vemos um instante da vida. Atrás de nós a vida é infinita, adiante de nós a vida é infinita. A primavera está aqui, mas atrás deste ramo em flor houve camadas de primaveras de oiro, imensas primaveras extasiadas, e flores desmedidas por trás desta flor minúscula.
O tempo não existe. O que eu chamo a vida é um elo, e o que aí vem um tropel, um sonho, desmedido que há-de realizar-se. E nenhum grito é inútil, para que o sonho vivo ande pelo seu pé. A alma que vai desesperada à procura de Deus, que erra no universo, ensanguentada e dorida, a cada grito se aproxima de Deus. Lá vamos todos a Deus, os vivos e os mortos.
O mundo é um grito. Onde encontrar a harmonia e a calma neste turbilhão infinito e perpétuo, neste movimento atroz? O mundo é um sonho sem um segundo de paz. A dor gera dor num desespero sem limites. Eu não sou nada. Sou o minuto e a eternidade. Sou os mortos. Não me desligo disto – nem do crime, nem da pedra, nem da voragem.
Sou o espanto aos gritos.O sonho completo é o universo realizado.Cada vez mais fujo mais de olhar para dentro de mim mesmo. Sinto-me nas mãos de uma coisa desconforme. Sinto-me nas mãos de uma coisa imensa e cega – de uma tempestade viva. Não só a sensibilidade é universal – a inteligência é exterior e universal.
O universo é uma vibração. A vida é uma vibração na vibração. Toda a teoria mecânica do universo é absurda. Daqui a alguns anos todos os sistemas serão ridículos – até o sistema planetário.


Raul Brandão - Húmus
Eu, meu coração e minha consciência lemos esse texto .É um dos que preenchem a alma e ela permanece vazia, embora repleta de indagações.

domingo, 8 de maio de 2011

Mãe.


ETERNO.
Corrias pelo campo por entre searas inocentes, carregando nos bolsos as histórias tricotadas por asas de sonho. Só repousavas nos braços da pequena montanha, que avistavas da janela do teu quarto. Acreditavas que o céu lhe beijava o rosto sempre que o sol e a lua poisavam a mão no seu regaço. Convicta dessa ilusão, escancaravas os olhos e imaginavas poder abraçar o céu e semeá-lo num pedaço do teu jardim onde as flores teriam o simples brilho das estrelas. Sonhavas poder beber esse azul e navegar pelo céu povoado de ilhas brancas e árvores com asas. O infinito não cabia nos teus olhos, mas ias guardando e cultivando pequenos fragmentos dessa morada... Agora que os teus bolsos se tornaram demasiado pequenos, e as searas ganharam outra cor, já não precisas de correr. Pois as histórias tricotadas por asas de sonho foram crescendo e (sobre)vivem na única morada onde cabe todo esse infinito, o teu eterno coração de mãe...

O original está em:


http://jb-emtonsdeazul.blogspot.com/

...um blog que vale a pena pelo talento e pela sensibilidade da  querida JB.

sábado, 7 de maio de 2011

O essencial faz a vida valer a pena.



Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já vivi até agora.
Tenho muito mais passado do que futuro.
Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas.
As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam
poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram,
cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir
assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar
da idade cronológica, são imaturos.


Detesto fazer acareação de desafectos que brigaram pelo majestoso cargo
de secretário geral do coral.
‘As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos’.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência,
minha alma tem pressa…
Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana,
muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com
triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade,
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade,
O essencial faz a vida valer a pena.
E para mim, basta o essencial!

Mario de Andrade


As cerejas da minha bacia estão se esgotando com uma rapidez incrível e continuo perdendo tempo com tantas coisas e pessoas descartáveis!.Gostaria de ter coragem e sapiência para escolher e viver o essencial..

quinta-feira, 5 de maio de 2011

O segredo das almas.

Em todas as almas há coisas secretas cujo segredo é guardado até à morte delas. E são guardadas, mesmo nos momentos mais sinceros, quando nos abismos nos expomos, todos doloridos, num lance de angústia, em face dos amigos mais queridos - porque as palavras que as poderiam traduzir seriam ridículas, mesquinhas, incompreensíveis ao mais perspicaz. Estas coisas são materialmente impossíveis de serem ditas. A própria Natureza as encerrou - não permitindo que a garganta humana pudesse arranjar sons para as exprimir - apenas sons para as caricaturar.

E como essas ideias-entranha são as coisas que mais estimamos, falta-nos sempre a coragem de as caricaturar. Daqui os isolados que todos nós, os homens, somos. Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive - não existem. Nem poderiam existir. No dia em que se compreendessem totalmente - ó ideal dos amorosos! - eu tenho a certeza que se fundiriam numa só. E os corpos morreriam.

Mário de Sá-Carneiro, in 'Cartas a Fernando Pessoa'

domingo, 1 de maio de 2011

Primeiro de Maio : Praia?!...

Contos Novos: Literatura e História
Em 1947, postumamente, foi publicado o livro Contos Novos de Mário de Andrade, destacando-se  “Primeiro de Maio” e seu herói “35”: um pobre carregador de bagagens da Estação da Luz. A caminhada de “35” pelas ruas de São Paulo revelou o retrato da cidade na década de 30. Era o começo da ditadura do presidente Vargas e o início da modernização na capital paulista.
Com um estilo populista o governo Vargas foi marcado pela manipulação dos proletários e pela intermediação dos conflitos: capital e trabalho. Por ser um líder carismático,assumiu as reivindicações dos trabalhadores e as satisfez dentro de certas condições impostas pela burguesia nacional. Aproximou-se das “massas” como um “messias”, um salvador da pátria que veio libertar os trabalhadores da exploração capitalista.
Essa relação entre Vargas e os trabalhadores foi fortalecida, em virtude de se comemorar o dia do trabalho. O foco no trabalho e não no trabalhador ofuscava esse dia de luta, de protestos e motins. Isso, por um lado, permitiu ao Estado controlar os sindicatos e, por outro, desmobilizar a classe trabalhadora.

A narrativa “Primeiro de Maio” descreve um dia vivido por um personagem entusiasmado com o significado do feriado. O herói “35” não move as “massas”, é solidário, mas alienado, e de consciência confusa diante das informações veiculadas pelos jornais na Estação. Lia diferentes jornais, mas, não diferenciava as mensagens “oficiais” das revolucionárias, o que confundia ainda mais sua consciência a respeito do símbolo do dia 1º de Maio.
Logo pela manhã se arrumou com trajes da cor da bandeira nacional e partiu em busca de seus iguais, trabalhadores como ele, mas encontrou as ruas vazias. As manifestações estavam proibidas, embora os jornais divulgassem motins por toda São Paulo. Sem rumo, caminhou solitariamente, pois almejava “celebrar” seu dia. As horas passavam e nenhuma comemoração era avistada. Vai, então, ao centro e só encontrou policiais, depois se dirigiu ao Palácio das Indústrias e deparou-se com uma celebração oficial dos patrões, onde não é permitida a presença de trabalhadores.
O 1º de Maio acabou se resumindo em caminhadas e desencontros, frustrante para quem desejava comemorar. O ato de caminhar sem rumo trouxe à tona a situação dos trabalhadores no Estado Novo. O controle do Estado sobre os trabalhadores dificultava as ações políticas no grande feriado, que se originou em Chicago, 1886, em virtude de uma greve pela redução da jornada de trabalhado,que resultou num enfrentamento da polícia com os operários. Com a morte de inúmeros trabalhadores o movimento foi dissolvido.
Esse fato fugiu da memória do “35”, o mais importante, para ele, era celebrar.Não era conveniente aos capitalistas recordar os movimentos contrários aos seus interesses. Assim, o 1º de Maio foi um espetáculo para exaltar o trabalhador enquanto peça de engrenagem da nação. A cada instante, a cada passo, 35 refletia, ficou desconfiado, mas acabou se convencendo que o feriado não passava de uma ilusão. Era o despertar da consciência.
No final do dia “35” passou a entender sua própria situação. Todo o sentimento se transformou em frustração. O silêncio nas ruas e a caminhada o deixaram mais pobre em experiência. Sentiu-se inferior em relação ao mundo, pois não conseguiu se comunicar, dizer o que pensava; encontrava-se impotente diante do irrealizável, de sua ação quase inútil. Não conseguiu avistar o que desejava, nem mesmo os companheiros para celebrar.

Como o personagem kafkiano, Gregor Samsa, símbolo da fragilidade humana no mundo incomunicável, 35 sentiu-se humilhado e isolado dos seus iguais,atravessou a cidade em silêncio. O silêncio nas fábricas, nos bares, nos cafés representava uma diminuição do ritmo da produção capitalista.
Ao cair da tarde 35 tomou consciência de suas ações e percebeu que era ilusão alimentar a esperança de comemorar o feriado. De volta à Estação, 35 foi incapaz de comunicar sua experiência, pois era visível a mudança do seu próprio comportamento. Encontrou o 22 e o ajudou a carregar as malas de um passageiro, demonstrando disposição para colaborar com os companheiros no espaço de trabalho.

Paulo de Tarso Gonçalves
http://prezadomariodeandrade.com.br/contopt.pdf


De 1947 para 2011, o que mudou? Os tempos são outros...Será?
Quem é o trabalhador? O 35? O 2.527? O 3.097.005?
Uma " boiada" que caminha sem identidade, com sonhos submersos.
Um palanque conveniente aqui, um showzinho gratuito em praça pública ali ou a praia para escapar dos dois primeiros.
Essa é a " celebração" do dia do trabalho no Brasil,salve...salve.

Com perspicácia, talento e sensibilidade, Mário de Andrade expôs uma ferida social que continua aberta, doendo, sangrando...mesmo que " os tempos sejam outros".

Análise Crítica de “ Primeiro de Maio” in “ Contos Novos’-Mário de Andrade , 1947.
Os grifos são nossos.