Esse espaço não foi criado para desabafos , nem exposição de problemas pessoais. Longe disso .Sempre teve a intenção de garimpar preciosidades literárias que povoaram a minha vida, fizeram-me melhor e mais rica do que eu poderia ser e que tenho pena que se percam sem que alguns as conheçam.
Há pouco mais de dois anos, estou a dar aulas de literatura em uma escola particular de dimensão e celebridade reconhecidas. Recém-construída em um local inacreditável, um paraíso exuberante de matizes de azuis, verdes e pássaros. Literalmente, no meio do mato. Um dos meus nichos pedagógicos é a biblioteca: grande, ensolarada, cujas imensas paredes de vidro permitem às crianças que vivenciem a natureza na sua esplendorosa criação. Indescritível admirar dali o pôr-do sol , assim como o nascer das primeiras estrelas no final das aulas vespertinas.
Em manhãs extremamente azuis, as corujas buraqueiras saem para tomar sol em grupinhos organizados de três. Dezenas de quero-queros bicam bichinhos bem ao alcance das nossas mãos, maritacas em bando voam aos gritos saudando as manhãs Mais de uma vez, minha aula da manhã foi interrompida , quando- pasmem- uma ave imensa tentou bicar o vidro da janela e as crianças maravilhadas viveram ,em aula, amor aos animais, literatura da alma. Não tenho noção do que é, ou era,mas - linda.Crianças e pássaros, a conjunção perfeita. Como diria um cartão de crédito : isso não tem preço!
Mas... sempre há uma adversativas nas histórias de cada um.
Para nós foi a especulação imobiliária que, em dois anos, povoou os arredores. Espigões sobem em uma velocidade assustadora,placas comerciais preenchem espaços antes vazios e poluem os olhos, enfim o terror” do século XXI : lucro.
Assim , bem à frente da escola, o terreno imenso foi vendido para uma sociedade e será nele construído um shopping. Dá para acreditar? O que era só uma notícia má, nessa quinta solidificou-se em realidade. Alguns homens vestidos de azul, com capacetes coloridos, plantaram no espaço o início de um acampamento. Bom para alguns, um prejuízo natural imenso para a maioria. Mas, quem se importa? No próximo ano , o nosso entardecer será ver através dos vidros um imenso neon do Mc Donald`s ...entre carros e buzinas que irão se engalfinhar por estacionamento.
A sequência dessa história era previsível... Ontem pela manhã , as corujinhas não estavam mais ali. Esconderam-se? Fugiram? Para onde foram? Tentei encontrá-las, em vão, porém,mais ao fundo, vi, pela primeira vez, uma belíssima garça azul . Uma cena inacreditável contra o sol que nascia. Eu nunca a vira ali. Seria uma só?Quantas delas não estarão se sentindo ameaçadas...senti uma tristeza profunda.
Levei, nessa manhã, as crianças à biblioteca e mostrei-lhes , ao lado dos homens que trabalhavam, dezenas de pássaros- as mais variadas espécies- no mato rasteiro, juntos,uma profusão de cinzas e azuis, como que cerrando fileiras em defesa do seu chão.
As crianças surpreeenderam-se ,encantaram-se e comoveram-se.
À tarde, sentada na sala dos professores, com a Ana Amélia ,minha parceira de aulas, comentei sobre o meu incômodo. Para minha surpresa, ela sacou o celular da bolsa e me disse: “Olha a foto da corujinha nessa janela. Eu olhava para ela , ela , para mim, vezes sem conta. Tive que fotografá-la.”Ao olhar aquilo,meu coração se estreitou. Um bichinho indefeso encostado no vidro da janela. Seria um mudo pedido de socorro? A foto gerou esse post, porque continua doendo.
É manhã de sábado. Continuo com lágrimas nos olhos. Como é difícil ser impotente diante da cegueira humana! Sim, temos que “OLHAR E VER”. Mas, o que fazer com isso? Apenas condoer-se e aceitar como se fosse natural?
Há algum tempo tenho estado incomodada –muito- com coisas que tenho visto e vivido. Acho que não há mais lugar no mundo contemporâneo para alguém como eu...Estou fora de sintonia.
Hoje, abri espaço aqui para falar sobre mim, sobre você, sobre nós. Falar sobre uma sexta-feira triste...como muitas outras em muitos lugares do planeta por motivos semelhantes.
Gizelda...sem ficção.
Em tempo : Guimarães Rosa em “ Primeiras Estórias” escreveu magistralmente sobre a destruição ambiental que a construção de Brasília causou no Planalto Central. “Às margens da alegria “ abre o livro e nos mostra – sob o ponto de vista de uma criança- quando ele,GR, ao lado do amigo- presidente, Juscelino Kubitschek , sobrevoou o local, “OLHOU E VIU” o que ia acontecer.
Quanto custou Brasília, além do dinheiro? Rosa previu e como era iluminado mostrou-nos sua mágoa sob forma literária. Eu sabia que o conto tinha origem real, mas só ontem ele saltou do livro e deixou de ser ficção.
Leitura obrigatória para quem se emociona em qualquer idade, em qualquer tempo.Deveria ser para todos.
02 /11/2013
A conclusão previsível dessa triste história.
Há alguns dias o imenso shopping foi inaugurado. As pessoas se engalfinham pelos corredores imaculadamente novos e intensamente iluminados.
Pena que não percebam que as luzes brilhantes substituiram das estrelas ...e para cada barulho do dinheiro caindo em uma caixa registradora, um pássaro deixou de cantar.
Felizmente, não estou mais lá, não tenho que conviver com isso todos os dias.
"Maravilhoso" mundo novo! Será??????