quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Talvez,uma capacidade de me enternecer.

Fernando Pauler-"Mulher"

Pão e Poesia
Na minha escola havia uma matéria chamada "Biblioteca", adorada por todos os alunos. O motivo de tanta adoração não é esse que a nossa esperança literária acalenta, o amor pela leitura. Era de outra ordem: o amor pelo ócio. Ou melhor, pela liberdade, para não soarmos tão vagabundos. Durante uma hora, não precisávamos copiar textos do quadro, nem fazer exercícios, nem decorar regras e sistemas, nem nada. Estávamos livres. Era assim, ao menos, que a maioria compreendia a matéria. Íamos para a biblioteca, e folheávamos revistas, e batíamos papo, e cantávamos baixinho, e dormíamos. Ler? Ah, sim, estávamos rodeados de livros. Havia inclusive uma simpática bibliotecária que sempre nos perguntava, "O que vocês vão ler hoje?". A maioria mostrava, sorridente, uma revista: de quadrinhos, de cinema, de fofocas. A simpática bibliotecária balançava a cabeça, em reprovação afetuosa, e seguia adiante. Quando passava por mim, piscava o olho e me dizia baixinho, "Chegou aquele livro de poesia", tão baixinho que só eu ouvia, só eu era atingida por aquela rajada de vento entre as mesas da biblioteca, naquela hora repleta de risadas abafadas e sussurros incontroláveis. O livro em questão era da Cecília Meireles. Na época, eu estava mortalmente apaixonada por um menino da escola. E como o menino nem desconfiava da minha existência, eu acabei mais apaixonada ainda, pela poesia. "Procurei-te em vão pela terra, perto do céu, por sobre o mar. Se não chegas nem em sonho, por que insisto em te imaginar?", era o verso do poema Meu sonho, de Cecília, que eu repetia e repetia e repetia sem cansaço nem descanso. Era uma música, para mim. Com o mesmo poder melódico de me transportar, comover e transformar. De alegre, ficava triste. De tanta tristeza, me alegrava.


Em outra aula, a bibliotecária simpática não me viu mais entre as risadas e as revistas. Lá estava eu entre as estantes, menina arrastando pernas e esperanças, diante de uma plaquinha na qual estava escrito "Poesia brasileira". Havia pego por acaso um livro. "Amar o perdido/ deixa confundido/ este coração.As coisas tangíveis/ tornam-se insensíveis/ à palma da mão." E por acaso os meus olhos haviam caído naquela página. E lia palavras que eu não entendia imediatamente o significado (o que é tangível?, perguntei à minha mãe naquela noite, durante o jantar), mas as entendia completamente numa outra ordem de entendimento. Numa ordem esquisita de taquicardia e ardor no rosto. "Mas as coisas findas/ muito mais que lindas/ essas ficarão." De onde estava, a bibliotecária simpática não podia ver: eu suspirava. Lendo Memória, poema de Carlos Drummond de Andrade, eu esquecia aos poucos o menino da escola, mas acendia e reacendia eternamente o meu amor. Assustada, compreendi, também numa outra ordem de compreensão (de mãos frias e tropeços ofegantes) que as palavras têm temperatura. Elas esquentam e esfriam como qualquer coisa viva.


Anos depois, quando eu não frequentava mais a aula de "Biblioteca", mas um cursinho pré-vestibular, me deparei com o mesmo Carlos Drummond de Andrade, numa livraria. "Amor é privilégio dos maduros", dizia o poema Amor e seu tempo, que eu li aterrada, entre as estantes, pensando no meu primeiro namorado. "Estendidos na mais estreita cama", o poeta cantava, e eu me perguntava, como seria aquele amor maduro, que acontecia à mulher e ao homem depois de tantos outros. Eu estava na idade em que, se tratando do amor e de outras eloqüências, quase tudo era pela primeira vez. "Roçando, em cada poro, o céu do corpo", passei noites insones repetindo, sem saber na época, que se tratando de amores, a primeira descoberta é entrada para as outras. Que ficaríamos sempre nesse ciclo interminável de inícios e fins, num eterno movimento de cobrir e descobrir. "Amor é o que se aprende no limite", aprendi, mais tarde, no espanto de ver se concretizar em mim o poema, como a realização de uma profecia. Mas não é isso que nos fazem os versos? Nos tiram de um lugar em nós mesmos para nos devolver depois, desordenados, e ao mesmo tempo, mais inteiros?
Comecei a perder a memória poética quando entrei para a Faculdade de Letras. Precisava de tempo para estudar literatura, teoria literária e outras disciplinas que enchiam as minhas prateleiras de livros. Livros sobre algum escritor, ou algum movimento literário, ou alguma teoria, ou algum teórico, ou a respeito de certo aspecto da literatura tal destrinchado por, ou a obra de um escritor de acordo com, ou fragmentos de comentados por, ou ensaios de sobre. Quando me formei, já não conseguia mais repetir de coração nenhum poema. Um único verso que fosse, eu não sabia. Afinal, era uma moça estudada.


Foi uma pessoa que não lembro agora, provavelmente alguém desavisado, que me presenteou, na minha formatura, com um livro de poesia. "Da primeira vez em que me assassinaram", li, trêmula, com o diploma nas mãos. E agora? Eu perguntava, apertando com força Mario Quintana. Só então eu percebia que algo precioso havia se escapado de mim. E agora? Formada, fui dar aulas de literatura brasileira para o Ensino Médio, com a viva esperança de trabalhar com a leitura e a escrita. No entanto, apenas um semestre foi o suficiente para me desesperançar. "Da primeira vez em que me assassinaram", repeti o verso de Quintana, assim que saí da sala, após a prova na qual era muito importante saber qual era o período literário representado por Cecília Meireles, "perdi o jeito de sorrir que eu tinha", e se Carlos Drummond de Andrade podia ser considerado modernista, "Depois, de cada vez que me mataram/ foram levando qualquer coisa minha.../". Quando saí desse emprego, fiquei rodando horas pela cidade até me deparar enfim com uma livraria. Entrei, sôfrega. "Poesia", pedi ao livreiro, como se pedisse num bar uma bebida. "Com pedaços de mim monto um ser atônito", era o Manoel de Barros que me falava. Li e reli o verso, sorvendo das palavras o espanto, a alegria, a angústia de uma menina na biblioteca, o pousar de mãos de um senhor em seus cabelos brancos, o saltitar de um menino atravessando a rua, a moça que, de brincadeira, se escondia do namorado. "Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação", o poeta cantava, e eu repetia, repetia. Tentava recuperar algo que sentia perdido, e que talvez só a poesia... Talvez, uma capacidade de me enternecer.

Claúdia Lage in Rascunho-O jornal da Literatura do Brasil.



Esse texto é, no mínimo,comovente.Quase palpável. Já me senti assim inúmeras vezes, também entrei em livrarias ( agora sei o que procurava...era eu!)comprei livros, não necessariamente de poesia, mas jamais tive a iluminação para registrar esses momentos com tanta delicadeza e brilho.Sinto imenso prazer em partilhar um texto como esse .

8 comentários:

  1. Ainda bem que o partilhou, Gizelda.Também eu me procurei sempre com fome nos livros, sobretudo na poesia,buscando nas palavras escritas as que não encontrava para me conhecer em plenitude. A minha experiência mais comovente foi o encontro com Eugénio,num período de inquietação sentimental "já gastámos as palavras pela rua, meu amor/ E o que nos ficou não chega para afastar o frio de quatro paredes". Desmoronei e desabei em lágrimas na livraria. Senti que não podia viver sem a realidade poética. Só ela me servia de espelho para me ver nas águas mais fundas da minha interioridade. Fiquei cativa para sempre.
    Beijinho, Gizelda.

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  2. A gente lê e sente cá dentro uma amálgama de calorzinho com brisa fresca, coisas adormecidas a reavivar...
    As suas postagens são o máximo, Gizelda!

    Beijo :)

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  3. Querida Ibel...

    Somos reféns da sensibilidade , talvez, por isso, nos incomoda tanto ser submetidas à burocratização do ensino, principalmente o da línga.Poderíamos- e deveríamos - ensinar os alunos a amar o texto, a palavra, a poesia, mas ficamos cobrando regras e nomes.

    Eles fogem de nós e ficamos desolados porque há muito a partilhar , com que encantar.. Temos, então , esses encontros maravilhados e únicos com autores que nos falam à alma. Eugênio é um deles, com certeza.É a hora em que a gente desaba.

    beijos.

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  4. AC...

    Esse seu comentário alegrou a minha alma. É muito bom poder partilhar um espaço com pessoas que entendem o que eu quero dizer e sentem o mesmo que eu.

    Você é um adendo de bom gosto que sempre acrescenta algo positivo , quando comenta aqui.

    beijo. Obrigada.

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  5. Oi, Mailson...

    feliz com sua presença por aqui, agradeço as gentis palavras. Volte sempre que quiser, será um prazer recebê-lo.

    Estou indo conhecer seu blog.

    beijo.

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  6. Gizelda,

    Viajei até à infância e lembro-me que na altura sempre que fazia anos havia uma prenda que me enchia os olhos: receber um livro. Assim iniciei a minha primeira colecção de contos infantis, que até era em BD. Confesso que não era uma escrita poética mas o folhear e a descoberta do segredo que cada livro me contava (e que eu transportava para o mundo dos sonhos) me enriqueciam, me davam imenso prazer... Sempre gostei de ler mais do que o nos ensinam as letras, brincava pensando o que cada uma esconderia... Gosto muito de ler poesia e sei que muitos professores me transmitiram o seu mais belo sentir, o olhar por detrás das letras e ainda hoje sou um aprendiz que se delicia para além da tinta...

    Uma ternura este texto! Mais uma deliciosa escolha, Gizelda!

    Beijinhos

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  7. Querida JB...

    Acho que todos nós, professores,sempre tivemos sonhos e, por consequência, desilusões na área em que atuamos.

    Sonhamos com desbravar almas e seduzi-las e acabamos reféns de notas que nem sempre dizem a verdade sobre cada criança que passa por nós.

    Mas, como muito apropriadamente você relata : algo de muito precioso fica e a gente o recupera
    nem que seja em um post de blog.

    Beijos, minha querida. Bom domingo.

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  8. Fiquei muito feliz de ver minha tela ilustrando seu blog. Muito obrigado. Grande abraço. Fernando Pauler

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