quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer...



Carta a Mário de Sá Carneiro


Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental - uma ânsia aflita de falar consigo. Como de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto - que estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim. Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro.

Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá; e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueca. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.

Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a minha consciência do meu corpo, que sou a crianca triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia catorze de Marco, às nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto.

No jardim que entrevejo pelas janela caladas do meu sequestro, atiraram com todos os baloucos para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto; e assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginacão, ter baloucos para esquecer a hora.
Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste momento.

Como à veladora do "Marinheiro" ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com a brochura a descoser-se.

Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e que as coisas de nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do que me sinto. Mas você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide ou de chávena - chia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o verde nas folhas.

Foi por isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que as frases absurdas dão uma grande vontade de chorar.
Pode ser que, se não deitar hoje esta carta no correio amanha, relendo-a, me demore a copiá-la à máquina, para inserir frases e esgares dela no "Livro do Desassossego". Mas isso nada roubará à sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa inevitabilidade com que a sinto.

As últimas notícias são estas. Há também o estado de guerra com a Alemanha, mas já antes disso a dor fazia sofrer. Do outro lado da Vida, isto deve ser a legenda duma caricatura casual.

Isto não é bem a loucura, mas a loucura deve dar um abandono ao com que se sofre, um gozo astucioso dos solavancos da alma, não muito diferentes destes.
De que cor será sentir?

Milhares de abracos do seu, sempre muito seu,

FERNANDO PESSOA

P.S. - Escrevi esta carta de um jacto. Relendo-a, vejo que, decididamente, a copiarei amanha, antes de lha mandar. Poucas vezes tenho tão completamente escrito o meu psiquismo, com todas as suas atitudes sentimentais e intelectuais, com toda a sua histero-neurastenia fundamental, com todas aquelas intersecções e esquinas na consciência de si-próprio que dele são tao características...
Você acha-me razão, não é verdade?

(em 14 de Marco de 1916)
Fernando Pessoa, Livro do Desassossego por Bernardo Soares



O que é esse Desassossego que me deixa sem fala? Fernando Pessoa...até onde um homem pode se dilacerar dessa maneira e nos presentear com essa obra?

8 comentários:

  1. Esta correspondência é de um enorme interesse. Pena não se poder complementar com as cartas de Mário de Sá Carneiro para Pessoa.
    O Livro do Desassossego é um labirinto onde gosto de me perder.

    L.B.

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  2. Há Pessoa(s) cuja mente, beneficiada por um qualquer acaso genético, nasceram com a capacidade de ver fundo (ou longe) muito fundo... Mas a Natureza, benfazeja nesse aspecto, condenou esses seres à solidão, obrigando-os a debater-se com os contornos das sombras da sua visão. E, no jogo das sombras, tudo é possível nessas Pessoa(s), calcorreando labirintos onde a lucidez se cruza com anseios cerzidos em delírios.
    Passados todos estes anos ainda os outros andam a procurar as pontas do novelo que os possa conduzir à compreensão do labirinto. Talvez seja por isso que o Príncipe não reinou, pois o labirinto apenas fazia sentido nessa(s) Pessoas.

    Gizelda, obrigado por me proporcionar esta destemperada reflexão, possivelmente sem qualquer nexo.

    Beijo :)

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  3. Gizelda,Tenho em casa um racanto chamado "Lugar de Pessoa" onde coloco tudo que dele compro ou me é oferecido.
    Pessoa é a minha paixão saciada de poesia e sempre com fome dela. Tenho uma edição brasileira em papel pergarminho,com a obra completa do escritor. É a minha bíblia de cabeceira.
    Conheço este"desassossego" de cor e salteado.E isso sobressalta-me e tranquiliza-me. Entende, não é?
    Hoje sinto-me muito próxima de si.
    Um grande abraço.

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  4. Amiga, vim te deixar um abraço, lhe oferecer
    um pouco de carinho e encontro uma obra prima
    dessa aqui... Realmente não consigo nem
    comentar... Obrigada minha linda,por
    compartilhar...
    Querida tem um selinho pra você lá no meu
    blog, te aguardo lá...
    Tenha uma linda noite! Bjsss

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  5. Qerida Lídia...

    Eu daria tudo para ouvir uma conversa dessas entre os dois.Atormentados e " grandes", privilégio de poucos.

    Obrigado por estar aqui.

    beijos.

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  6. Se esse texto fosse uma tela, não poderia querer nenhuma moldura mais significativa do que seu comentário. Brilhante.

    O território do Príncipe pertence a ele com todos os novelos, segredos e magia que lhe cabem.
    Aos súditos,admirar Pessoa(s)é algo absolutamente elementar.

    Beijos, querido AC,
    ...e obrigada por sempre vir aqui com o tempero que deixa o post saboroso.

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  7. Minha querida Ibel...

    Adoro partilhar com você essa admiração irrestrita e essa reverência a alguém que expõe a sua alma e a nossa com tanta sensibilidade.

    Entendo-a ,perfeitamente, porque tenho o hábito de folhear o Livro do Desassossego a qualquer momento e sempre parar em alguma página que diz mais do que eu poderia querer ler.

    É mágico.

    Beijos, querida. Obrigada pelo comentário.

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  8. Querida Flor...

    Nem sei quantas vezes li esse texto, mas ele sempre me fala de solidão, desespero ,dor de alguém que se deu tanto aos leitores e viveu na tristeza.

    Partilhar Pessoa com as pessoas é , para mim, um exercício de amor, porque lê-lo engrandece a alma.

    Beijos, querida.

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