sábado, 14 de agosto de 2010

Como anda minha vida?




A solidão dos homens tem a medida da solidão de suas mulheres. Isso eu disse e escrevi - e repito - em dezenas de palestras por este país afora. Aí me pedem para escrever sobre o casal perfeito: bom para quem gosta de desafios.

O casal perfeito seria o que sabe aceitar a solidão inevitável do ser humano, sem se sentir isolado do parceiro - ou sem se isolar dele? O casal perfeito seria o que entende, aceita, mas não se conforma, com o desgaste de qualquer convívio e qualquer união?

Talvez se possa começar por aí: não correr para o casamento, o namoro, o amante (não importa) imaginando que agora serão solucionados ou suavizados todos os problemas - a chatice da casa dos pais, as amigas ou amigos casando e tendo filhos, a mesmice do emprego, chegar sozinha às festas e sexo difícil e sem afeto.

Não cair nos braços do outro como quem cai na armadilha do "enfim nunca mais só!", porque aí é que a coisa começa a ferver. Conviver é enfrentar o pior dos inimigos, o insidioso, o silencioso, o sempre à espreita, o incansável: o tédio, o desencanto, esse inimigo de dois rostos.

Passada a primeira fase de paixão (desculpem, mas ela passa, o que não significa tédio nem fim de tesão), a gente começa a amar de outro jeito. Ou a amar melhor; ou, aí é que a gente começa a amar. A querer bem; a apreciar; a respeitar; a valorizar; a mimar; a sentir falta; a conceder espaço; a querer que o outro cresça e não fique grudado na gente.

O cotidiano baixa sobre qualquer relação e qualquer vida, com a poeira do desencanto e do cansaço, do tédio. A conta a pagar, a empregada que não veio, o filho doente, a filha complicada, a mãe com Alzheimer, o pai deprimido ou simplesmente o emprego sem graça e o patrão de mau humor.

E a gente explode e quer matar e morrer, quando cai aquela última gota - pode ser uma trivialíssima gota - e nos damos conta: nada mais é como era no começo.

Nada foi como eu esperava. Não sei se quero continuar assim, mas também não sei o que fazer. Como a gente não desiste fácil, porque afinal somos guerreiros ou nem estaríamos mais aqui, e também porque há os filhos, os compromissos, a casa, a grana e até ainda o afeto, é preciso inventar um jeito de recomeçar, reconstruir.

Na verdade devia-se reconstruir todos os dias. Usar da criatividade numa relação. O problema é que, quando se fala em criatividade numa relação, a maioria pensa logo em inovações no sexo, mas transar é o resultado, não o meio. Um amigo disse no aniversário de sua mulher uma das coisas mais belas que ouvi: "Todos os dias de nosso casamento (de uns 40 anos), eu te escolhi de novo como minha mulher".

Mas primeiro teríamos de nos escolher a nós mesmos diariamente. Ao menos de vez em quando sentar na cama ao acordar, pensar: como anda a minha vida? Quero continuar vivendo assim? Se não quero, o que posso fazer para melhorar?

Quase sempre há coisas a melhorar, e quase sempre podem ser melhoradas. Ainda que seja algo bem simples; ainda que seja mais complicado, como realizar o velho sonho de estudar, de abrir uma loja, de fazer uma viagem, de mudar de profissão.

Nós nos permitimos muito pouco em matéria de felicidade, alegria, realização e sobretudo abertura com o outro. Velhos casais solitários ou jovens casais solitários dentro de casa são terrivelmente tristes e terrivelmente comuns. É difícil? É difícil. É duro? É duro. Cada dia, levantar e escovar os dentes já é um ato heróico, dizia Hélio Pellegrino.

Viver é um heroísmo, viver bem um amor mais ainda. O casal perfeito talvez seja aquele que não desiste de correr atrás do sonho de que, apesar dos pesares, a gente, a cada dia, se escolheria novamente, e amém.


Lia Luft

Hoje, eu acordei com vontade de escrever, mas diante desse texto...coube-me constatar que sou uma pessoa, não um casal.Não obstante por me fazer essa pergunta inúmeras vezes, já recomecei outras tantas.E, ao refazê-la agora, sinto que está na hora de mudar mais uma vez.Quando eu me for,muitas coisas ficarão por fazer, mas levarei comigo a certeza de ter aprendido a não me me deixar estagnar, quando algo me incomoda.
Sim, definitivamente, sempre é hora de recomeçar mais uma vez.

15 comentários:

  1. Belissimo texto!
    E é exatamente isso: construir e reinventar o amor a cada dia - tarefa fácil na teoria e dificilima na prática...
    O dia traz tantas coisas a serem resolvidas: a empregada, o aluguel, os problemas do escritório... isso pq nem tenho filhos!!!!
    Muitas vezes dá vontade de chegar em casa e fazer nada...
    Mas qq relação traz recompensas... e acho que a maior delas é testar nossos próprios limites de amor e de dor.
    Amar é uma arte que só se aprende amando. E a convivência a dois é só a palheta de tintas, pronta a receber a cor que quisermos depositar nela.
    Bjinho e obrigada por enriquecer meu sábado com esse texto.

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  2. Gizelda,
    Entre o consciente e o inconsciente, é uma questão que me coloco demasiadas vezes. Mas não é a quantidade que me aflige é a resposta que muitas vezes não encontro, nem sei dar a mim mesma...
    Mas é como é referido no texto, recomeço o dia, recomeço nos porquês, recomeços nos "Se", ... se é difícil... claro que sim! Mas também nunca fui de desistir, nem que o meu ponto de chegada coincida com o de partida, pelo menos sei que recolho algo pelo caminho queme ajuda a recomeçar. :)

    Obrigada, Gizelda por proporcionar tamanha reflexão, tamanha descida ao interior... É como se a consciência tomasse consciência de si própria, sempre que leio o que aqui apresenta!

    Um grande beijinho

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  3. Certa vez, levei à minha psiquiatra um de meus inúmeros escritos, no qual escrevi: "existir é condição necessária para a solidão". Ela não compreendeu bem o que isso significava. Sucede que ela não compreendeu que 'existir' é 'relação com', é um movimento da consciência para o exterior; por isso existimos na relação com o Outro. Rubem Alves, em seu texto, "solidão amiga", ensina-nos que a solidão é um estado resultante de uma comparação que fazemos entre nossa situação atual (p.ex. está em casa numa noite de sexta-feira chuvosa) e situações em que alguém está numa festa ou numa boate, envolvido em alegria e êxtase. A solidão resulta desse confrontro entre o nosso tédio e o êxtase externo imaginado.
    Creio em que a solidão e os conflitos inerentes às relações com o Outro podem, pelo menos, serem atenuados, caso cada um dos envolvidos tivessem o hábito de interiorizar-se, de imergir nos recônditos de sua alma para (re)conhecer-se a cada nova manhã. O problema é que a nossa sociedade é uma sociedade de indivíduos que se autoabandonam, indíviduos desconhecidos de si mesmos.

    Adoro Lia Luft! Obrigado por nos ofertar este belo texto, que faz germinar reflexões!

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  4. Vanessa...
    saudades de você!

    Na verdade, qualquer convivência é extremamente difícil, porque primeiro temos que aprender a viver conosco e isso não há como ensinar. Aprende-se a duras penas.

    Depois, vem aquela ideia de que sonho e realidade são a mesma coisa ... e não são.
    Aos solavancos, vamos aprendendo cada dia um pouco. Espera-se que a tempo de ser feliz.

    Você tem muuuuuuuiiiiiiiito tempo, querida.
    Beijos.

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  5. Bruno...

    Foi uma grata surpresa sua visita por aqui, e mais ainda pela intensidade do seu comentário.

    Para mim, tanto Lya , quanto Rubem são dois filósofos do cotidiano. Traduzem com uma simplicidade ímpar o que é tão difícil de exteriorizar: nós , o Outro eo contexto.

    Volte sempre, Bruno. Será um prazer tê-lo aqui.
    Obrigada.
    Beijo.

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  6. Querida JB...

    Acho que o que nos incomoda mais é fazermos as perguntas,termos consciência das respostas e depois?...Depois que se sabe, tem-se que tomar atitudes ou conviver com uma certeza que era apenas dúvida.

    Talvez seja esse o motivo que nos impede de ir mais fundo em nossos questionamentos.
    Entretanto, de vez em quando, um texto como esse pode dar uma revitalizada em nossos desejos e em nossas atitudes, se estivermos dispostos a ousar.

    Querida, nunca é demais dizer como gosto de você por aqui.

    beijinhos.

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  7. Me sinto só quando as pessoas à minha volta näo entendem a minha personalidade, (näo falo em minha lingua materna), quando digo algo sobre mim, minhas opinioes, e a verdadeira intensäo ou meu sentimento primordial nao é entendido, esse é o momento do vazio, todos me olham me escutam, mas näo sabem oque eu sou, ninguem conhece o meu intimo mesmo que eu tente, sou uma pessoa estranha;
    nesse momento eu amo profundamente o meu marido, ele é a minha esperanca de ser realmente a pessoa q eu "penso ser", ele é o meu resgate, a minha confirmacäo, ele escuta os meus olhos, mais ninguem, uhhhhhhh que alivio!!!!!!!!!
    ele me "re conheceu"!!!!!!
    bjos Gizelda!!!!!!!!

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  8. Gizelda, regressei ontem de férias e vim fazer uma visitinha a um espaço que tanto me diz. Durante as minhas andanças fui tendo, de quando em vez, acesso à Internet, mas sempre de uma forma ligeira e apressada, e os espaços que preservo não se compadecem de pressas. Por isso aqui estou, sempre na esperança de um convite para me sentar. :)
    Os seus temas são sempre pertinentes, nem outra coisa seria de esperar. Desta vez vem falar-nos da tendência humana para a acomodação, de dormir à sombra dos louros conquistados...
    Somos tão pequenos, tão ínfimos, e, no entanto, tão sobranceiros perante o que nos rodeia. Gostamos pouco de nos questionar, somos pouco receptivos à descoberta. E há ainda tanto para saber acerca de nós e do que nos rodeia!
    Sabe uma coisa?, tenho para mim que temos que nos questionar até ao fim. Não há volta a dar-lhe, a dignidade das coisas está precisamente aí. Mesmo que não se encontrem respostas, devemos continuar a insistir. Sempre. Tenho a certeza que há, à frente dos nossos olhos turvos, mil e uma portas por abrir.

    Foi, como sempre, um prazer vir aqui.
    Beijo :)

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  9. Querida Giselda:
    Vim te visitar aqui.
    Foi muito bom ler este texto da Lya Luft ( que sou fã desde que começou a editar).
    Parabéns,por este seu espaço
    bjs RUTH

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  10. Decididamente você não é só você, tal qual Fernando Pessoa ainda é você a multiplicação de seres viventes em teu corpo único. Ser e ser, é você...é tão diversa e múltipla dentro de si que nem sobra espaço para mais alguém . Aliás, isso até se arruma, mas ... como pode ir além, está tudo bem, não é?
    que será isso em seu olhar que sabe exatamente como abrir em nós os flancos do indizível? luz.... só pode ser....
    você é heroína, sensatez, prosa poética...
    mil beijos !!!

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  11. Querida Cynthia...

    Há lugares onde você sempre será reconhecida...o seu coração, a sua alma, a sua consciência.
    Você construiu uma linda história a dois, multiplicou-a e sempre que vejo suas fotos sinto uma inefável lufada de ar fresco.

    Sair de si e encontrar o Outro...e esse Outro ser seu marido, você reconhecer isso e ele reconhecê-la é exceção, não regra.Pode se dar conta de como isto é precioso?

    Quando essa sensação de ser incompreedida a assaltar, volte-se para o que realmente vale a pena , porque você não tem que procurar, já o tem.

    Beijos. Adorei vê-la aqui.

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  12. Querido AC...

    Que bom que você voltou!A cadeira vazia estava me deixando melancólica.Mas, tenho certeza de que suas andanças resultaram em visões poéticas incríveis das gentes e da vida.

    Sempre haverá um lugar à mesa à sua espera.
    Você tem razão, o questionamento faz com que olhemos situações corriqueiras sob outro ponto de vista. cabe-nos enxergá-los com sensatez e curiosidade e transformar novos sonhos em realidade palpável.

    Como anda minha vida?...Felizmente, questionando...Acredito que a sua, também.

    Beijos.

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  13. Ruth, querida...

    Que bela surpresa! Estou muito feliz que esteja aqui, convido-a a sentar-se à mesa,participar da conversa, dividir sonhos e afetos.

    Volte sempre. Sinta-se em casa.

    Obrigada.
    beijos.

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  14. Querida Thaís...

    Você vive tão imersa em poesia que, às vezes, vê algumas coisas que outros não vêem. Confesso que, quando postei esse texto, pensei se você o leria e até que ponto você teria seu coração acalmado.

    Mas, sabiamente , você tergiversou...

    Beijoooooossss.

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  15. Esse texto não me sai da cabeça.... Estou com ele até o pescoço, sufocando o que queria gritar...
    hj, choro isso.
    beijo

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