sábado, 30 de janeiro de 2010

in Desassossego.


"O coração, se pudesse pensar, pararia."

"Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.

Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem também."


Fernando Pessoa

...


"Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas."

Heinrich Heine

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

...o mundo não nos dá garantia alguma.


Uma pequenina mudança hoje acarreta-nos um amanhã profundamente diferente. São grandes as recompensas para aqueles que optam pelos caminhos duros e difíceis, mas essas recompensas acham-se ocultas pelos anos.

Toda escolha é feita inteiramente às cegas, e o mundo não nos dá garantia alguma. A única maneira de evitar todas as escolhas assustadoras consiste em deixar a sociedade e tornar-se um ermitão, e também isso é uma escolha assustadora.

O bom caráter advém de seguirmos nosso supremo senso de retidão, de confiarmos nos ideais sem querer estarmos certos de que darão certo. Um dos desafios de nossa aventura na terra consiste em nos elevarmos acima de sistemas mortos... guerras, religiões, nações, destruições... recusarmos a fazer parte deles, e em vez disso exprimirmos o que temos de melhor dentro de nós.

Não importa qual seja nossa habilitação ou nosso merecimento, nunca alcançaremos uma vida melhor até conseguirmos imaginá-la para nós próprios e permitir-nos tê-la.
Deus sabe que isso é verdade!”


(Richard Bach – Fugindo do Ninho)

domingo, 24 de janeiro de 2010

Sempre é tempo de entender.


É domingo. O sol entra pela fresta da janela no meu quarto.Pela claridade difusa percebo que ainda é cedo.Repito, então, um ritual que me acompanha desde os 8 anos: aliso um velho tapete colorido e fico esperando que ele se mova.
Nada. O que é que eu esperava? Que ele voasse, sem dúvida.Deito-me ali mesmo e me pergunto se estou ficando maluca.

Foi há tanto tempo...há precisos 15 anos atrás.Também era domingo, a casa estava imersa no doce silêncio da manhã que nem acabara de nascer.
Descalça, sonolenta,abri a porta e caminhei lentamente pelo corredor.Quando meus pés nus pisotearam o tapetinho, ele se mexeu .Estatelei-me no chão,aborrecida com minha falta de jeito.Mas então esfreguei os olhos a tempo de vê-lo levantar vôo comigo.
Queria gritar, mas minha voz não saiu. Algo estava muito errado. Mas, o quê???

O tapete parecia doido. Desviava de móveis, deslizava pelo corredor e...onde estavam todos ? Ninguém viria me socorrer?
Tudo acontecia de maneira espantosa.Sobrevoamos a geladeira em um lance tão rasante que eu me deitei e agarrada a ele fechei os olhos.Passamos pela pequena abertura do vitrô da cozinha e ganhamos espaço.

Maravilhada abri os olhos. O medo se fora.O céu muito azul, nuvens de algodão quase tocáveis, pássaros, amplidão, nós, eu e ele. Inacreditável.
Comecei a gostar da aventura.Olhei para baixo -uma vertigem: outro céu?O mar.Céu e mar azuis e límpidos. Eu tinha morrido, com certeza.Mas, então , pouco me importava. Aquilo era um presente do qual eu iria usufruir até o fim .

Parecendo entender o que eu sentia, em volteios encantadores,o tapete foi descendo e tocou as ondas geladas. Respingos. Por que não?Que mal havia naquilo se só eu sabia?
Depois de requebros e meneios, voou em uma velocidade surpreendente até uma sala imaculadamente em ordem. Que lugar era aquele? Vozes, risadas e duas meninas gritavam pela avó.Permaneci imóvel. Quem eram? O que eu fazia ali? Será que me viam?

As duas afastaram-se, cheguei –me a um móvel alto e espelhado; ali estava a foto de um rosto que me era conhecido.Claro. Claríssimo. Era eu, envelhecida, cercada de flores, bichos e duas crianças.

Não houve tempo para entender.Eu me vi – a outra- entrando na sala . Quantos anos eu teria? 60? Engoli seco.O que iria acontecer. Enquanto eu-velha saia de cena, eu- menina fechei os olhos desesperadamente não querendo abri-los no mesmo lugar.Contei até 10, mais 20, criei coragem , abri-os e continuava ali. Vagarosa, com medo, sentei-me no tapete em um mudo pedido de socorro e ele me tirou dali.

Minutos depois, sentada no corredor da sala, ouvi a voz do meu pai : Menina, o que faz tão cedo acordada?Por que está aí no chão?Hoje é domingo. Volte para a cama .

Os anos se passaram , e por mais que minha sanidade me diga que dormi ali no chão e sonhei, acredito que houve algo mais.

Tenho 23 anos agora e continuo vagando pelo corredor nas manhãs de domingo à espera de que a mesma cena se repita e que eu consiga entendê-la.

Mas não foi hoje...ainda não.De uma maneira ou de outra , acredito que foi maior do que um sonho....Eu estive lá...onde um dia, com certeza, vou estar!


.....................................................................................
Escrito em uma agenda de 1971 /13 de dezembro.Enquanto transcrevo aqui esse texto de ficção, claro!- jamais andei em um tapete encantado-olho à minha frente e vejo a mim, envelhecida, refletida em um espelho.Ao lado a foto de minhas duas netas.A nítida impressão de algo já vivido. Teria sido premonição?????Afinal, aqui estamos,eu e elas .

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

De sorrisos e risos.


Há muitas formas de riso e de rir. Entre o rir e o sorrir, existe um espaço extremamente complexo. Não cultivo o riso, cultivo a ironia. A ironia não chega a ser riso, também não é sorriso, estando mais próxima do sorriso do que o riso. O riso, subjacente a alguns dos meus textos, é uma forma de ironia, manifestação pouco comum na tradição portuguesa. Quando se diz rir em português significa algo em que não me incluo de maneira nenhuma, embora possa rir com os amigos. Existem alguns sorrisos na minha obra, riso não.

Ana Hatherly

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Entender é sempre limitado.


Estou atrás do que fica atrás do pensamento. Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo. Gênero não me pega mais. Além do mais, a vida é curta demais para eu ler todo o grosso dicionário a fim de por acaso descobrir a palavra salvadora. Entender é sempre limitado. As coisas não precisam mais fazer sentido. Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é possível fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada. Porque no fundo a gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro


Clarice Lispector
...um pouco do muito.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Melhor interromper o processo em meio quando se conhece o fim.


(...)"Mas se eu tivesse ficado, teria sido diferente? Melhor interromper o processo em meio: quando se conhece o fim, quando se sabe que doerá muito mais -por que ir em frente? Não há sentido: melhor escapar deixando uma lembrança qualquer, lenço esquecido numa gaveta, camisa jogada na cadeira, uma fotografia –qualquer coisa que depois de muito tempo a gente possa olhar e sorrir, mesmo sem saber por quê. Melhor do que não sobrar nada, e que esse nada seja áspero como um tempo perdido.

Eu prefiro viver a ilusão do quase, quando estou "quase" certa que desistindo naquele momento vou levar comigo uma coisa bonita. Quando eu "quase" tenho certeza que insistir naquilo vai me fazer sofrer, que insistir em algo ou alguém pode não terminar da melhor maneira, que pode não ser do jeito que eu queria que fosse, eu jogo tudo pro alto, sem arrependimentos futuros!

Eu prefiro viver com a incerteza de poder ter dado certo, que com a certeza de ter acabado em dor. Talvez loucura, medo, eu diria covardia, loucura quem sabe!”


Caio Fernando Abreu

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Pega no telefone e liga-lhe.


“Pega no telefone e liga-lhe, não tens nada a perder. Diz-lhe que tens saudades dele, que ninguém te faz tão feliz, que os teus dias são secos, frios e áridos, como um deserto imenso, sem oásis nem miragens, sempre que não estão juntos.

Pega no telefone e liga-lhe. Se ele não atender, deixa-lhe uma mensagem. Ou então escreve-lhe um sms a dizer que queres estar com ele. Não te alongues nem elabores, os homens nunca percebem o que queres deixar cair nas entrelinhas. Tens de ser clara, directa e incisiva.

E não podes ter medo, porque o medo é o maior inimigo do amor. Cada vez que deixares o medo entrar-te nas tuas veias, ele vai gelar-te o sangue e paralisar-te os nervos, ficas transformada numa estátua de sal e morres por dentro. A vida é uma incógnita, hoje estás aqui, amanhã podes ficar doente, ou cair-te um piano em cima quando fores a andar na rua. Ainda há pessoas que atiram pianos pela janela, sabias?

Nunca se sabe como será o dia de amanhã, por isso não percas tempo e pega no telefone e liga-lhe. Tenho a certeza que ele te vai ouvir, tenho a certeza que ele te vai ajudar, tenho a certeza que ele, à sua maneira – e é tão estranha a forma como os homens gostam de nós – ainda gosta de ti.

Mesmo que já não te ame, ainda gosta de ti, como tu vais aprender a gostar dele, quando a vida te obrigar a desistir deste amor. Ele está longe, mas olha para ti por entre memórias, presentes e flores. À noite, entre sonhos alterados pelo álcool e as drogas leves, tu apareces-lhe na cama e ele volta a sentir o cheiro da tua pele e volta a amar-te com todas as suas forças.

Ainda que não acredites, tu viverás para sempre nele, tal como ele vive em ti, na memória das tua células, num passado que pode ser o teu escudo, mesmo que não seja o teu futuro.

Pega no telefone e liga-lhe. Fala com ele de coração aberto, diz-lhe o que queres ver, chora se for preciso, pede-lhe que te diga se sim ou se não. Se for preciso, por mais que te custe, pede-lhe para escrever a palavra NÃO. Pede-lhe uma resposta para o teu coração. Mais vale saberes que acabou tudo do que viveres com as laranjas todas no ar, qual malabarista exausto, sem saberes nem como nem quando elas vão cair. Mais vale chorar a tristeza de um amor perdido do que sonhar com um oásis que se tranformou numa miragem.

Pega no telefone e liga-lhe. Liga as vezes que forem precisas até conseguires uma resposta, a paz de uma certeza, mesmo que essa certeza não seja a que desejavas ouvir. Mas não fiques quieta, à espera que a vida te traga respostas. a vida é tua, tens de ser tu a vivê-la, não podes deixar que ela passe por ti, tu é que passas por ela.

E quando todas as laranjas caírem, apanha-as com cuidado, guarda-as num cesto e muda de profissão. O circo é para quem não tem casa nem país, não é vida para ninguém. Guarda as laranjas num cesto, leva-as para casa e faz um bolo de saudades para esquecer a mágoa.

E nunca deixes de sonhar que, um dia, vais encontrar alguém mais próximo e mais generoso, que te ensine a ser feliz, mesmo com todas as pedras que encontrarem no caminho. Larga as laranjas e muda de vida. A vida vai mudar contigo.



Margarida Rebelo Pinto, “Vou contar-te um segredo”

domingo, 10 de janeiro de 2010

Três anos.




Há pessoas que guardam coisas pela vida afora, prendendo-as a fatos, família, amigos, amores , saudades.Isso é um vício? Um hábito? Uma mania? Não sei...mas eu , estranhamente, guardo minhas agendas usadas.
Bizarro, mas fácil de explicar. Elas, as agendas, são muito mais que repositórios de meus compromissos; são fieis e caladas cúmplices do que me acontece durante os anos que transcorrem.Nelas vão sendo colocados desejos, sonhos, frustrações, sucessos,às vezes algo que só eu sinto e sei, que vivo na hora, registro,e que depois se esvai de mim,da vida, mas permanece.

Todos os anos prometo que vou me desfazer daquelas dezenas empilhadas,no entanto, quando abro uma, em página qualquer, e a leio, sinto incômodo, como se ao descartá-la apagasse algo importante . É como truncar minha história e extirpar dela o que vivi. Reponho-a em seu lugar com a reverência de quem se guarda.

Tudo isso só para explicar como nasceu esse blog...

Em 10 de janeiro de 2007, fazendo a pseudo-limpeza de agendas passadas,consegui eliminar uma :2003. Um ano difícil que eu gostaria de apagar.Simbolicamente o fiz, porque me desfiz dela,mas o que eu queria mesmo que ficasse era uma crônica nascida em um sinaleiro em Campinas,no meu trajeto para Souzas, a caminho da escola.

Era uma iluminada manhã de abril , vi-me diante de um gigantesco outdoor que apregoava as delícias do chocolate. Em alguns segundos minha memória voou para muito tempo atrás , recuperou algo precioso , bem ali no meio da avenida. E escrevi sobre isso tão logo foi possível. Incentivada pela minha filha, pelo desafio cheguei até aqui.Joguei fora a tal agenda, não sem antes sentir uma pontinha de remorso,e iniciei esse blog com um post salvo : Empadinhas quentes na madrugada.

Um blog precisa de nome, identidade. Algo que retrate quem vive nele. Assim, Desassossego... Por quê?
Em princípio, porque O Livro do Desassossego,Fernando Pessoa, desde que o descobri, vive à minha cabeceira. Isso mesmo. Vive. Tem vida tal a influência que produz em mim.Conversa comigo.Conversamos, aliás.
O motivo dois vem da minha ansiedade à espera de alguma coisa que não sei o que é.Acho que esperei a vida inteira e não posso procurá-la porque não tenho a menor ideia do que seja. A inquietude, no entanto, é recorrente.Está grudada em mim como pele.

Imaginei que a partir do blog descartaria qualquer confidência aos papéis e só recorreria ao computador. Ledo engano! Não consigo sobreviver sem papel....(rs)Outra mania...
Foi então que conclui que é imensamente prazeroso postar aqui, porém,definitivamente, não substitui a agenda.Ainda.

Às vezes, venho para falar sobre alguma coisa que me diz respeito, como agora, mas é muito raro. As agendas continuam repletas ( não consigo me desfazer delas ...uma questão para terapia , acho), as estantes idem e o blog- hoje- faz três anos.

Anos perfeitos onde conheci pessoas especiais, recuperei outras de quem me perdera, mas, sobretudo , porque vivo aqui com autores e livros que constroem dia-a-dia o alguém que sou. Encontros de mim comigo.Cada vez que posto um texto, sinto o inefável prazer de saber que ele pode ser partilhado , ouvido, sentido por muitos.

Percebi o quanto a literatura me transformou e me transforma e como eu sou grata por, um dia, tê-la escolhido para complementar minha vida.Por isso vou continuar.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Somente a pessoa que corre riscos é livre!


Rir é correr risco de parecer tolo. Chorar é correr o risco de parecer sentimental.

Estender a mão é correr o risco de se envolver. Expor seus sentimentos é correr o risco de mostrar seu verdadeiro eu.

Defender seus sonhos e idéias diante da multidão é correr o risco de perder as pessoas. Amar é correr o risco de não ser correspondido.

Viver é correr o risco de morrer. Confiar é correr o risco de se decepcionar. Tentar é correr o risco de fracassar. Mas os riscos devem ser corridos, porque o maior perigo é não arriscar nada.

Há pessoas que não correm nenhum risco, não fazem nada, não têm nada e não são nada. Elas podem até evitar sofrimentos e desilusões, mas elas não conseguem nada, não sentem nada, não mudam, não crescem, não amam, não vivem. Acorrentadas por suas atitudes, elas viram escravas, privam-se de sua liberdade.

Somente a pessoa que corre riscos é livre!


Sêneca -orador romano, 55 a.C.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

...

É horrível na vida da gente ficar sem alguma coisa que nós queremos; mas caramba, o que me enfurece é não poder dar a alguém alguma coisa que a gente queria que ele tivesse.


Truman Capote, Histórias maravilhosas
Há textos em que as entrelinhas completam-se em nós. Esse é um deles.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Nunca voltes ao lugar onde já foste feliz



Por muito que o coração diga, não faças o que ele diz
Nunca mais voltes à casa onde ardeste de paixão
só encontrarás erva rasa por entre as lages do chão
Nada do que por lá vires será como no passado
Não queiras reacender um lume já apagado.

São as regras da sensatez
vais sair a dizer que desta, desta é de vez...

Por grande a tentação que te crie a saudade
não mates a recordação que lembra a felicidade
Nunca voltes ao lugar onde o arco-íris se pôs
só encontrarás a cinza que dá na garganta nós.

São as regras da sensatez
vais sair a dizer que desta, desta é de vez
só mais uma vez..


Rui Veloso

Minha primeira meta 2010 : ser sensata.