quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Enquanto me lembrar estarei vivo.



A memória é a nossa escola de vida. É a nossa única verdadeira defesa contra a traição e o abandono. Tudo pode ser traído e abandonado menos a memória. É mais fiel que qualquer amigo, é mais longa que a própria vida é mais verdadeira do que qualquer verdade que temos como certa.

Não posso negar o que vi, o que cheirei, o que senti, o que amei. Não posso negar que fui feliz, se fecho os olhos e sinto outra vez todos os instantes felizes. Não não posso negar que atravessei rios contigo, que te ensinei o nome das estrelas, que ouvimos juntos os pássaros e o vento nas árvores, que caminhei pelas ruas de mãos dadas contigo..

Enquanto me lembrar estarei vivo, porque esse é o mais certo indício de vida. Eu estarei vivo e, vivendo, não deixarei morrer quem caminhou comigo, ao longo do caminho.

Miguel Sousa Tavares

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Amigos...




Nessa madrugada acordei sobressaltada com uma sensação estranha de que algo estava fora do lugar. Inquieta, sem conseguir dormir e controlar o caos de pensamentos fui levada a lembranças de pessoas com as quais convivo e convivi.E me veio a incrível solidão de sentir-me longe dos amigos, aqueles para com os quais não são necessárias palavras, um olhar é mais.

Com uma clareza contundente pude selecionar conhecidos, colegas e , poucos , raros amigos. Estes ,os que por mim passaram e passam deixando a si próprios, e por quem também me deixei,cuja ausência é a presença mais nítida de ombro, de identidade, de complemento de abraço. Amor em duas mãos, incondicional, dia e noite.

Outros, os primeiros, transitórios ,oportunistas presenças na conveniência, na deslavada altitude de usufruir sem se dar, de transitoriedade, de olhos baixos porque não há como tê-los altos, Afinal não foi através de um olhar que Bentinho se perdeu em Capitu?...

É para os amigos preciosos que escrevo, hoje, na certeza de que não preciso citar nomes : eles sabem o quê e quem são. Poucos e bons.
Minha alma ficou repleta e em paz.
Então...adormeci.



Esse post já esteve nesse blog em setembro de 2008. Mas, ao lê-lo, hoje, senti uma necessidade premente de repeti-lo. Saudades de amigos raros que escreveram minha história e de quem estou precisando agora.Só para um abraço.

Os deuses não nos protegem do medo.


Somos iguais aos animais, em que as mesmas coisas terríveis podem acontecer a eles e a nós. Mas somos diferentes deles porque eles só sofrem como se deve sofrer, isto é, quando o terrível acontece. E nós, tolos, sofremos sem que ele tenha acontecido. Sofremos imaginando o terrível. O medo é a presença do terrível-não-acontecido, se apossando das nossas vidas. Ele pode acontecer? Pode. Mas ainda não aconteceu e nem se sabe se acontecerá.

Curioso: nós, humanos, somos os únicos animais a ter prazer no medo. A colina suave não seduz o alpinista. Ele quer o perigo dos abismos, o calafrio das neves, a sensação de solidão. A terra firme, tão segura, tão sem medo, tão monótona! Mas é o mar sem fim que nos chama: “A solidez da terra, monótona, parece-nos fraca ilusão. Queremos a ilusão do grande mar, multiplicada em suas malhas de perigo...“ (Cecília Meireles).

A pomba, que por medo do gavião, se recusasse a sair do ninho, já se teria perdido no próprio ato de fugir do gavião. Porque o medo lhe teria roubado aquilo que de mais precioso existe num pássaro: o vôo. Quem, por medo do terrível, prefere o caminho prudente de fugir do risco, já nesse ato estará morto. Porque o medo lhe terá roubado aquilo que de mais precioso existe na vida humana: a capacidade de se arriscar para viver o que se ama.

O medo não é uma perturbação psicológica. Ele é parte da nossa própria alma. O que é decisivo é se o medo nos faz rastejar ou se ele nos faz voar. Quem, por causa do medo, se encolhe e rasteja, vive a morte na própria vida. Quem, a despeito do medo, toma o risco e voa, triunfa sobre a morte. Morrerá, quando a morte vier. Mas só quando ela vier. Esse é o sentido das palavras de Jesus: “Aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á. Mas quem perder a sua vida, a encontrará.“ Viver a vida, aceitando o risco da morte: isso tem o nome de coragem. Coragem não é ausência do medo. É viver, a despeito do medo.

Houve um tempo em que eu invocava os deuses para me proteger do medo. Eu repetia os poemas sagrados para exorcizar o medo: “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum...“ “Mil cairão à tua direita, dez mil à tua esquerda, mas nenhum mal te sucederá...“ A vida me ensinou que esses consolos não são verdadeiros. Os deuses não nos protegem do medo. Eles nos convidam à coragem de viver a despeito dele.

Rubem Alves

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

e vai como veio.




vem sem aviso. em pequeninas doses. e vai como veio. talvez com um pouco menos de ruído.

e é só isto a felicidade. um sorriso a abrir o nevoeiro.




Maria José Quintela...porque menos é mais.

domingo, 27 de setembro de 2009

Podemos ser livres! Podemos aprender a voar!




"Não tardou muito para que Fernão Gaivota voltasse a pairar no céu, sozinho, esfomeado, feliz, aprendendo. Revoltava-o saber que uma gaivota era uma presa fácil, por voar muito devagar.

O tema era a velocidade. E depois de uma semana de prática, conseguira aprender mais sobre velocidade do que a gaivota viva mais rápida.

Aprendeu que encurtando as asas, como as asas do falcão, poderia atingir em mergulho a velocidade fantástica de trezentos e vinte quilómetros por hora.

Isto aconteceu numa manhã, logo a seguir ao nascer do sol, Fernão Gaivota atravessou o Bando da Alimentação que perseguia um barco de pesca; como uma bala, riscando o céu a trezentos e vinte quilómetros por hora, num tremendo rugido de vento e penas. A Gaivota da Fortuna sorriu-lhe desta vez e ninguém foi ferido.

Radiante, pensava no bando, "Ficarão loucos de alegria. Como vale a pena agora viver! Em vez da monótona labuta de procurar peixe junto dos barcos de pesca, temos uma razão para estar vivos! Podemos subtrair-nos à ignorância, podemos encontrar-nos como criaturas excelentes, inteligentes e hábeis. Podemos ser livres! Podemos aprender a voar!"

Ao voltar à noite para o bando, Fernão foi chamado ao centro. As palavras do mais velho foram pronunciadas no tom mais solene. Ser chamado ao centro só podia significar grande vergonha ou grande honra.

Fernão Gaivota - disse o mais velho -, é chamado ao centro por vergonha aos olhos das gaivotas suas semelhantes... pela sua desastrada irresponsabilidade por violar a dignidade e tradição da família das gaivotas... não se pode esquecer, que estamos neste mundo para comer e para nos mantermos vivos tanto quanto pudermos.

Uma gaivota nunca contesta o Conselho do Bando, mas a voz de Fernão ergueu-se gritando:

Quem é mais responsável do que uma gaivota que descobre e desenvolve um significado, um propósito mais elevado na vida? Passamos mil anos lutando por cabeças de peixe, mas agora temos uma razão para viver, para aprender, para descobrir, para sermos livres!

O bando mostrou-se impenetrável como a pedra. Fernão foi banido da sociedade das gaivotas, condenado para a vida solitária nos Penhascos Longínquos.

Fernão Gaivota passou o resto dos dias sozinho, mas voou muito além dos Penhascos Longínquos. A solidão não o entristecia. Entristecia-o que as outras gaivotas se tivessem recusado a acreditar na glória do vôo que as esperava. Recusaram -se a abrir os olhos e a ver."

Richard Bach

sábado, 26 de setembro de 2009

Sou um ponto no horizonte...



Sou uma nascente de tanto te querer
Uma solidão no tempo perdida que corre forte.
Sou um pedaço de mim em novo desnorte
Que não se encontra,
Mal se vê.
Sou um manto de poesia fraca e velha
Um canteiro na terra pregado.
Sou um grito de novo chorado
Que não se vê,
Mal se encontra.
Sou um ponto no horizonte dos sonhos
Uma voz, ternura à deriva e tontura.
Sou uma canção que entre ti e mim ainda perdura
Mas não se encontra
e mal se vê.
Sou um rosto de desejo, de sorriso menino
Uma flor deitada sobre o teu leito.
Sou este embriagado vagabundo e desfeito
Que mal se encontra
E está cansado de se ver!


Pedro Branco ...porque a poesia transborda em seus textos, sempre.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Seus filhos não são seus.



Seus filhos não são seus.
Eles são os filhos e filhas do desejo da Vida por si mesma.
Eles vêm através de você mas não de você
e, embora possam lhe haver sido entregues, não lhe pertencem.
Você pode lhes dar seu amor, mas não seus pensamentos,
Pois eles têm os seus próprios.
Você pode abrigar seus corpos, mas não suas almas,
Pois estas vivem na morada do amanhã, a qual você não pode visitar nem em sonhos.
Você pode lutar para tornar-se como eles, mas não tente transformá-los no que você é.
Pois a vida não anda para trás nem se prende ao passado.


Kahlil Gibran, O Profeta

Sábio e lindo, mas como é que se põe em prática?????...

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Somos o rio.


Somos o tempo, somos a famosa
parábola de Heraclito, o Obscuro.
Somos a água, não diamante duro
a que se perde, não a que repousa.
Somos o rio e somos esse rio
a olhar-se no rio. A sua imagem
muda na água do espelho entre as margens,
no rio que varia, fogo cego.
Somos o rio vão, predestinado
rumo ao seu mar. De fogo está cercado.
Tudo nos diz adeus, tudo nos deixa.
A memória não cunha moeda lesta.
E no entanto há algo que ainda resta
e no entanto ainda há algo que se queixa.


Jorge Luís Borges, in Os Conjurados

domingo, 20 de setembro de 2009





Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de.
Apesar de, se deve comer.
Apesar de, se deve amar.
Apesar de, se deve morrer.

Inclusive muitas vezes é o próprio "apesar de" que nos empurra para a frente.
Foi o "apesar de" que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora da minha própria vida.


Clarice Lispector, in 'Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres'

Sempre ela...é preciso mais?

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Ouvir música.





Há muitas, quase infinitas maneiras de ouvir música. Entretanto, as três mais freqüentes distinguem-se pela tendência que em cada uma delas se torna dominante: ouvir com o corpo, ouvir emotivamente, ouvir intelectualmente.

Ouvir com o corpo é empregar no ato da escuta não apenas os ouvidos, mas a pele toda, que também vibra ao contato com o dado sonoro: é sentir em estado bruto. É bastante freqüente, nesse estágio da escuta, que haja um impulso em direção ao ato de dançar.

Ouvir emotivamente, no fundo, não deixa de ser ouvir mais a si mesmo que propriamente a música. É usar da música a fim de que ela desperte ou reforce algo já latente em nós mesmos. Sai-se da sensação bruta em entra-se no campo dos sentimentos.

Ouvir intelectualmente é dar-se conta de que a música tem, como base, estrutura e forma. Referir-se à música a partir dessa perspectiva seria atentar para a materialidade de seu discurso: o que ele comporta, como seus elementos se estruturam, qual a forma alcançada nesse processo.


Adaptado de J. Jota de Moraes, O que é música.

Saber esperar.




Há dias em que me sinto inconsistente, questionando tudo e todos como se nada tivesse muito sentido...

Porém, como lufadas de ar fresco acontecem manhãs como a de hoje, em que o azul e o amarelo são mais nítidos, têm perfume e, embora não respondam a minhas perguntas me dão a sensação de que o que eu quero está logo ali...tangível, sereno.
É só questão de paciência. Saber esperar.

Mas, o que é que eu quero?!!!
E até quando?!...


PS. Hoje,há festa no céu...

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Como uma faca.



O mundo pára. E lembro-me de ti como uma faca, uma faca profunda, a lâmina infinita de uma faca espetada infinitamente em mim.

Não passou muito tempo desde que a manhã nasceu. Passou muito tempo desde que me deixaste sozinho entre as sombras que se confundiam com a noite. Noutras noites, olhamos para a lua. Nesta noite, não olhámos para a lua. Noutras noites, olhamos para a lua e enchemo-nos de desejos. Nesta noite, não olhamos para a lua e sofremos. Noutras noites, olhamos para a lua e não sabíamos o que era sofrer.

Escuridão e esperança.

Na lua, víamos mais do que o reflexo daquilo que queríamos inventar: os nossos sonhos. Víamos um futuro que era maior do que os nossos sonhos e que nos envolvia e que nos puxava para dentro de si. Nós sabíamos que nos esperava algo muito maior do que aquilo com que podíamos sonhar. Estávamos enganados.

Aqui, sobre estas pedras que brilham, sob estas lágrimas no meu rosto, sei que nos enganamos e sei a lâmina infinita de uma faca.
José Luís Peixoto

terça-feira, 15 de setembro de 2009

A tristeza jamais será eterna.



Pode ser difícil fazer algumas escolhas, mas muitas vezes isso é necessário, existe uma diferença muito grande entre conhecer o caminho e percorrê-lo.

Não procure querer conhecer seu futuro antes da hora, nem exagere em seu sofrimento, esperar é dar uma chance à vida para que ela coloque a pessoa certa em seu caminho.

"A tristeza pode ser intensa, mas jamais será eterna"

A felicidade pode demorar a chegar, mas o importante é que ela venha para ficar e não esteja apenas de passagem...

Luís Fernando Veríssimo

O absurdo é o divino.




Tornarmo-nos esfinges, ainda que falsas, até chegarmos ao ponto de já não sabermos quem somos. Porque, de resto, nós o que somos é esfinges falsas e não sabemos o que somos realmente.

O único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios. O absurdo é o divino. Estabelecer teorias, pensando-as paciente e honestamente, só para depois agirmos contra elas - agirmos e justificar as nossas acções com teorias que as condenam. Talhar um caminho na vida, e em seguida agir contrariamente a seguir por esse caminho.

Ter todos os gestos e todas as atitudes de qualquer coisa que nem somos, nem pretendemos ser, nem pretendemos ser tomados como sendo. Comprar livros para não os ler; ir a concertos nem para ouvir a música nem para ver quem lá está; dar longos passeios por estar farto de andar e ir passar dias no campo só porque o campo nos aborrece.


Bernardo Soares in, Livro do Desassossego

domingo, 13 de setembro de 2009

Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo.




Minha boca pronunciou e pronunciará, milhares de vezes e nos dois idiomas que me são íntimos, o pai-nosso, mas só em parte o entendo. Hoje de manhã, dia primeiro de julho de 1969, quero tentar uma oração que seja pessoal, não herdada. Sei que se trata de uma tarefa que exige uma sinceridade mais que humana. É evidente, em primeiro lugar, que me está vedado pedir.

Pedir que não anoiteçam meus olhos seria loucura; sei de milhares de pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias. O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que se rompa um elo dessa trama de ferro, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre.

Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não o ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar a coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo.

Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém repita uma cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu à meia-noite a árvore que sangra, a Cruz, e pense que pela primeira vez a ouviu de meus lábios.

O restante não me importa; espero que o esquecimento não demore. Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não nos serão revelados.

Quero morrer completamente; quero morrer com este companheiro, meu corpo.

Jorge Luis Borges

sábado, 12 de setembro de 2009




Dentro de mim todas as palavras não ditas...dentro de você os espaços que não preenchi .
Dentro de nós um caminho, curvas na estrada, o escuro do mais além, o nada.

Andarilha de mim mesma, em busca da ponte-abrigo, até que as palavras se soltem , alcem vôo e o coração cuspa todos os espinhos...

Lassidão de alma, sombras,rascunho de vida.

Sábado , como dezenas de outros, de inquietude e espera. De quê?

Noite de mim sem mim...

Preciso urgentemente amanhecer.

...uma possibilidade de amor.




Fragmentos disso que chamamos de "minha vida".

Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.

Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível". Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.

De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.

Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.

Caio Fernando Abreu
(Publicado no jornal "O Estado de S. Paulo", 22/04/1986)

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Sê vivo.




Vive o instante que passa.Vive-o intensamente até à última gota de sangue. É um instante banal, nada há nele que o distinga de mil outros instantes vividos. E no entanto ele é o único por ser irrepetível e isso o distingue de qualquer outro. Porque nunca mais ele será o mesmo nem tu que o estás vivendo. Absorve-o todo em ti, impregna-te dele e que ele não seja pois em vão no dar-se-te todo a ti.

Olha o sol difícil entre as nuvens, respira à profundidade de ti, ouve o vento. Escuta as vozes longínquas de crianças, o ruído de um motor que passa na estrada, o silêncio que isso envolve e que fica.E pensa-te a ti que disso te apercebes, sê vivo aí, pensa-te vivo aí, sente-te aí. E que nada se perca infinitesimalmente no mundo que vives e na pessoa que és. (...)

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente IV'

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Tudo tem sua hora certa.




não se pode ficar no mesmo lugar para sempre. de braços arrumados ao longo do corpo. na pausa aparente de um tempo que não pousa. tudo tem a sua hora certa. desacertada pelo acerto do relógio. e entre a volta do ponteiro e a queda de uma estrela damos o braço ao tempo. a tempo de não morrer já.

Maria José Quintela.

(Lindooooo! quando o pouco diz muito...)

domingo, 6 de setembro de 2009

Eu fiz um sonho.



Passa-se com alma algo semelhante ao que acontece à água: flui.Hoje está um rio.Amanhã estará mar.A água toma a forma do recipiente.Dentro de uma garrafa parece uma garrafa. Porém, não é uma garrafa.Eulálio será sempre Eulálio, quer encarne ( em carne) quer em peixe.Vem-me à memória a imagem em branco e preto de Martim Luther King discursando à multidão:eu tive um sonho. Ele deveria ter dito antes : eu fiz um sonho.

Há alguma diferença, pensando bem, entre ter um sonho ou fazer um sonho.

José Eduardo Agualusa in " O vendedor de Passados"

sábado, 5 de setembro de 2009

Onde estará esse alguém?




Não quero alguém que morra de amor por mim.
Só preciso de alguém que viva por mim, que queira estar junto de mim, me abraçando.

Não exijo que esse alguém me ame como eu o amo, quero apenas que me ame, não me importando com que intensidade.

Não tenho a pretensão de que todas as pessoas que gosto, gostem de mim...
Nem que eu faça a falta que elas me fazem, o importante para mim é saber que eu, em algum momento, fui insubstituível...
E que esse momento será inesquecível...

Só quero que meu sentimento seja valorizado.
Quero sempre poder ter um sorriso estampado em meu rosto, mesmo quando a situação não for muito alegre...
E que esse meu sorriso consiga transmitir paz para os que estiverem ao meu redor.

Quero poder fechar meus olhos e imaginar alguém...
E poder ter a absoluta certeza de que esse alguém também pensa em mim quando fecha os olhos, que faço falta quando não estou por perto.

Queria ter a certeza de que apesar de minhas renúncias e loucuras, alguém me valoriza pelo que sou, não pelo que tenho...

Que me veja como um ser humano completo, que abusa demais dos bons sentimentos que a vida lhe proporciona, que dê valor ao que realmente importa, que é meu sentimento...
E não brinque com ele.

E que esse alguém me peça para que eu nunca mude, para que eu nunca cresça, para que eu seja sempre eu mesmo.

Não quero brigar com o mundo, mas se um dia isso acontecer, quero ter forças suficientes para mostrar a ele que o amor existe...
Que ele é superior ao ódio e ao rancor, e que não existe vitória sem humildade e paz.

Quero poder acreditar que mesmo se hoje eu fracassar, amanhã será outro dia, e se eu não desistir dos meus sonhos e propósitos, talvez obterei êxito e serei plenamente feliz.

Que eu nunca deixe minha esperança ser abalada por palavras pessimistas...
Que a esperança nunca me pareça um "não" que a gente teima em maquiá-lo de verde e entendê-lo como "sim".

Quero poder ter a liberdade de dizer o que sinto a uma pessoa, de poder dizer a alguém o quanto ela é especial e importante para mim, sem ter de me preocupar com terceiros... Sem correr o risco de ferir uma ou mais pessoas com esse sentimento.

Quero, um dia, poder dizer às pessoas que nada foi em vão...
Que o amor existe, que vale a pena se doar as amizades e as pessoas,
que a vida é bela sim,
que eu sempre dei o melhor de mim
... e que valeu a pena!!!

Mário Quintana

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Sofremos por quê?



Definitivo, como tudo o que é simples.

Nossa dor não advém das coisas vividas,mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram.

Por que sofremos tanto por amor?
O certo seria a gente não sofrer, apenas agradecer por termos conhecido uma pessoa tão bacana, que gerou em nós um sentimento intenso e que nos fez companhia por um tempo razoável, um tempo feliz.

Sofremos por quê?
Porque automaticamente esquecemos o que foi desfrutado e passamos a sofrer pelas nossas projeções irrealizadas,
por todas as cidades que gostaríamos de ter conhecido ao lado do nosso amor e não conhecemos, por todos os filhos que gostaríamos de ter tido junto e não tivemos,
por todos os shows e livros e silêncios que gostaríamos de ter compartilhado, e não compartilhamos. Por todos os beijos cancelados, pela eternidade.

Sofremos não porque nosso trabalho é desgastante e paga pouco, mas por todas as horas livres que deixamos de ter para ir ao cinema, para conversar com um amigo,
para nadar, para namorar.

Sofremos não porque nossa mãe é impaciente conosco,
mas por todos os momentos em que poderíamos estar confidenciando a ela nossas mais profundas angústias
se ela estivesse interessada em nos compreender.

Sofremos não porque nosso time perdeu, mas pela euforia sufocada.

Sofremos não porque envelhecemos, mas porque o futuro está sendo confiscado de nós, impedindo assim que mil aventuras nos aconteçam, todas aquelas com as quais sonhamos e nunca chegamos a experimentar.

Como aliviar a dor do que não foi vivido?
A resposta é simples como um verso: Se iludindo menos e vivendo mais!!!

A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos,
nas forças que não usamos,
na prudência egoísta que nada arrisca, e que,
esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade.

A dor é inevitável.
O sofrimento é opcional.

Carlos Drumond de Andrade

( se não fosse pela beleza simples, pela sensibilidade inacreditável, pela harmonia das palavras , pela sutileza das idéias, poderíamos dizer que esse texto está aqui porque -simplesmente-foi escrito por Drummond... nada mais)

terça-feira, 1 de setembro de 2009

O livro.




Às vezes uma palavra é suficiente para despertar em nós reflexões às quais nunca recorreríamos em circunstancias habituais.Aconteceu comigo nessa semana.Na segunda-feira..

Presenteei, há meses , um amigo com o livro que me é essencial.Ao fazê-lo pretendi compartilhar com ele algo que me é muito precioso e que divido com pouca gente.

A obra -descobri–a em 1997 - passou a fazer parte do meu cotidiano , acalmar minha alma, levar-me a muitas indagações para as quais não tenho resposta e me provocar a pensar em muitas coisas, em especial na vida e na morte...Elegi-a no meio de centenas que me povoam e me encantam. A intenção era premiar.

No início da semana reencontrei meu amigo (?) pela primeira vez depois do acontecido e fui surpreendida quando ele se lembrou,agradeceu-me e mencionou o fato de que a obra era tensa, pesada, desconfortável. Talvez nem sejam essas as palavras, mas o sentido, estou certa, era sim.

Hoje é sábado, mas desde aquela hora há seis dias atrás com extrema insistência tenho pensado a respeito.Cada ser humano é um.Quantas vezes já ouvi ou disse isso? Como não percebi?...a verdade é que não percebi, envolta no significado que o livro tinha para mim.

Cegueira ? Egoísmo?...Acredito que nenhum dos dois, embora não consiga precisar bem o que aconteceu.

Sinto-me,desde então, incomodada, querendo reparar minha falta . Passei bastante tempo procurando um exemplar que tivesse qualidades,leveza e me redimisse do ato. Porém estou insegura : não acho discernimento para escolher.

Há tantos...e ao mesmo tempo, nenhum.Como saber o que pode preencher prazerosamente a alma de alguém que pensamos conhecer e não conhecemos o suficiente?

Creio que a comparação vai parecer esdrúxula, mas livro é como perfume: o que é delicioso para um pode ser profundamente enjoativo para outro.Espero me precaver da próxima vez...

Não em relação a livros, mas- quem sabe?- a amigos.


Encontrado , por acaso, na minha agenda 2007 , 14 de abril.