quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

"RECEITA DE ANO NOVO"


Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre".



Drummnond em mais uma das suas epifanias...texto lido, relido , conhecidíssimo, mas indubitavelmente perfeito sempre.

Oportunamente lembrado pelo meu amigo João Carlos(http://cartasdetiro.wordpress.com/)

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

O terceiro pensamento.




"Tem horas em que, de repente, o mundo vira pequenininho.Mas noutro de repente ele se torna demais de grande outra vez.
A gente deve de esperar o terceiro pensamento."

Guimarães Rosa in Primeiras Estórias.

Gizelda...esperando desesperadamente esse terceiro pensamento.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Eu quero.


... à procura, procura do vento. Porque a minha vontade tem o tamanho de uma lei da terra. Porque a minha força determina a passagem do tempo.

Eu quero. Eu sou capaz de lançar um grito para dentro de mim, que arranca árvores pelas raízes, que explode veias em todos os corpos, que trespassa o mundo. Eu sou capaz de correr através desse grito, à sua velocidade, contra tudo o que se lança para deter-me, contra tudo o que se levanta no meu caminho, contra mim próprio.

Eu quero. Eu sou capaz de expulsar o sol da minha pele, de vencê-lo mais uma vez e sempre. Porque a minha vontade me regenera, faz-me nascer, renascer. Porque a minha força é imortal.

In Cemitério de Pianos

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Arrumar os amores :primeira regra da vida.


Arrumei os amores, é a primeira regra da vida – saber arquivá-los, entendê-los, contá-los, esquecê-los. Mas ninguém nos diz como se sobrevive ao murchar de um sentimento que não murcha. A amizade só se perde por traição – como a pátria. Num campo de batalha, num terreno de operações. Não há explicações para o desaparecimento do desejo, última e única lição do mais extraordinário amor. Mas quando o amor nasce protegido da erosão do corpo, apenas perfume, contorno, coreografado em redor dos arco-íris dessa animada esperança a que chamamos alma – porque se esfuma? Como é que, de um dia para o outro, a tua voz deixou de me procurar, e eu deixei que a minha vida dispensasse o espelho da tua?

Inês Pedrosa
Mais Literatura Portuguesa porque toca a sensibilidade (a não ser as inevitáveis polêmicas provocadas por Saramago, mesmo assim imperdíveis).

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Um grande buraco negro que se chama depois...



"Devia existir um manual de instruções para acabar relações. A verdade é que sabemos sempre começá-las, agarramo-nos aos inícios com a sabedoria dos mágicos, operámos transformações milagrosas em nós próprios e no objecto do nosso amor, de repente tudo nos é fácil e grato, sentimo-nos com asas como albatrozes, nas nossas costas cresce uma capa encarnada e carregamos no peito o símbolo do Super Homem, tudo é óbvio e santo visto assim, "o mundo não é um mundo é um jardim", como diz Florbela Espanca.

Não há nada melhor do que começar uma relação. O novo é irresistível. Descobrem-se coincidências que vão desde o mesmo nome dado ao irmão imaginário até à mesma colecção de cromos. É a primeira vez outra vez em tudo. Descobrimos o outro em nós e nós no outro. Descobrimos que afinal gostamos de futebol e sabemos cozinhar e até uma visita ao Mosteiro de Alcobaça para ver o túmulo de Pedro e Inês de Castro é muito romântico, porque foram criaturas que morreram de amor.

No inicio de todos os inícios sentimo-nos tão estupidamente felizes que seríamos capazes de morrer a seguir, porque achamos que atingimos o ponto máximo possível da felicidade.O pior vem a seguir.

Como dizia o Picasso "bom mesmo é o início porque a seguir começa logo o fim". E quando o fim chega já é tarde demais para voltar atrás. É sempre tarde demais, porque isto do amor é mesmo uma coisa complicada, começa-se do nada, vive-se na ilusão que se tem tudo, mas o que fica quando o amor acaba é um nada ainda maior.

E o pior, o pior é que na primeira oportunidade repetem-se os mesmos erros à espera de resultados diferentes, o que é uma boa definição de demência. E quem se considere imune a tais disparates e nunca tenha passado por estas avarias sentimentais, que atire a primeira pedra.

O Miguel Sousa Tavares escreveu "primeiro parece fácil, é o coração que arrasta a cabeça, a vontade de ser feliz que cala as dúvidas e os medos. Mas depois é a cabeça que trava o coração, as pequenas coisas que parecem derrotar as grandes, um sufoco inexplicável que aparece onde antes estava a intimidade." E pronto, já está tudo estragado. Acaba-se a festa, o delírio, o fogo de artifício, o sabor da novidade e onde vamos parar? Ao vazio. Ao abismo. Ao grande buraco negro dessa coisa horrível e inevitável que se chama depois, depois de se apagar a chama.

É esta a condição humana, doa a quem doer.Ou então, a ironia da vida separa os amantes para sempre e o fim do amor é o início do mito do amor eterno. Pedro e Inês foram sepultados de frente um para o outro, para que se pudessem ver, caso regressassem ao mundo. Romeu e Julieta nunca mais se separaram no imaginário Ocidental. Dante viveu para sempre ao lado de Beatriz, a Penélope recuperou o seu guerreiro depois de 20 anos de espera.

O amor esse mistério que antecede a vida e sobrevive à morte, reina como um tirano por cima de todas as coisas, mas poucos são os que o conseguem agarrar. É mais difícil de alcançar do que o Olimpo, porque não está nem no céu nem na terra, paira como uma substância invisível, mais leve que o ar, mais profundo que toda a água dos oceanos. Talvez seja apenas uma invenção dos homens para fugir à morte. Ou talvez tenha outro nome na bioquímica. Mas não podemos viver sem ele e quando o perdemos achamos que nunca mais o vamos conseguir encontrar."



Margarida Rebelo Pinto in Jornal de Noticias

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Talvez...


Talvez não ser,
é ser sem que tu sejas,
sem que vás cortando
o meio dia com uma
flor azul,
sem que caminhes mais tarde
pela névoa e pelos tijolos,
sem essa luz que levas na mão
que, talvez, outros não verão dourada,
que talvez ninguém
soube que crescia
como a origem vermelha da rosa,
sem que sejas, enfim,
sem que viesses brusca, incitante
conhecer a minha vida,
rajada de roseira,
trigo do vento..
E desde então, sou porque tu és
E desde então és
sou e somos...
E por amor
Serei... Serás...Seremos...


Pablo Neruda

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009


"Um livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive..."

Padre António Vieira

domingo, 13 de dezembro de 2009

Fronteiras são freios.


O conhecimento tem sido responsável pela "quebra" de fronteiras que o ser humano realiza,hoje.Pensar, pressupunha,outrora,desejar,querer,ansiar.Agora, significa realizar.Fácil acreditar que o mundo não tem limites para quem ousa e cria.

Um breve olhar através do tempo mostra-nos o homem pressionado por uma fronteira moral,vivendo uma realidade dúbia: o que ele pensava estava longe de ser uma realização.O medo,a incerteza, o julgamento social o atemorizavam e o deixavam à mercê de em comportamento tímido,até enrustido.Isso em nome da moral.Mas o que é essa moral que tanto constrange as pessoas?

Identificam-se como moral os valores intrinsecos e extrinsecos que regem a personalidade no contexto em que está inserida.E , por isso, o individuo moralmente equilibrado comporta-se de acordo com o esperado.Comportava-se...porque a globalização ,ao derrubar fronteiras físicas,o fez ainda no tocante às fronteiras morais. Pode-se perfeitamente ser um em um espaço,e outro, no mesmo momento, em diverso lugar.Isso é positivo? Negativo?

Até que ponto é preciso observar limites? Eles devem existir?

Devem, precisam existir sempre.Fronteiras são freios.Modo definitivo de estabelecer limites em quaisquer campos de ação, sejam eles físicos, morais, científicos, religiosos e os demais.

Quando o homem não mais obedecer a eles, o caos será seu começo e seu fim.

A amizade deve ser uma alegria gratuita .


Desejar a amizade é um grande erro. A amizade deve ser uma alegria gratuita como as que a arte ou a vida oferecem. É preciso recusá-la para se ser digno de a receber: ela é da categoria da graça («Meu Deus, afastai-vos de mim...»). É dessas coisas que são dadas por acréscimo. Toda a ilusão de amizade merece ser destruída.[…]

A amizade não se procura, não se imagina, não se deseja; exercita-se (é uma virtude).
[…]
A amizade não se deixa afastar da realidade, tal como o belo. E o milagre existe, simplesmente, no fato de que ela existe.


Simone Weil, 'A Gravidade e a Graça'

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Cansaço.


O que há em mim é sobretudo cansaço - Não disto nem daquilo, Nem sequer de tudo ou de nada: Cansaço assim mesmo, ele mesmo, Cansaço. A sutileza das sensações inúteis, As paixões violentas por coisa nenhuma, Os amores intensos por o suposto em alguém, Essas coisas todas - Essas e o que falta nelas eternamente -; Tudo isso faz um cansaço, Este cansaço, Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito, Há sem dúvida quem deseje o impossível, Há sem dúvida quem não queira nada - Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles: Porque eu amo infinitamente o finito, Porque eu desejo impossivelmente o possível, Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser, Ou até se não puder ser... E o resultado? Para eles a vida vivida ou sonhada, Para eles o sonho sonhado ou vivido, Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...

Para mim só um grande, um profundo, E, ah com que felicidade infecundo, cansaço, Um supremíssimo cansaço, Íssimno, íssimo, íssimo, Cansaço...


(Álvaro de Campos/Fernando Pessoa)

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

O Natal da minha infância.


As bolas vermelhas brilham faiscantes na imensa árvore artificial. O silêncio quebrado pelo rumor da minha memória.Ela me vem através de gosto e cheiro...o perfume do cipreste do Natal da minha infância. O gosto do bolo xadrez depois da Missa do Galo....

Estranho que tanto tempo se tenha passado. Uma vida. No entanto, aí está com a nitidez de algo que nunca vai se apagar.Os natais da minha infância eram feitos de dezenas de presépios que se multiplicavam em cores e luzes nas casas abertas de amigos.Presentes raros e parcos, presenças fartas ,doces e preciosas. E família, amigos,sonhos...tantos.

Na cama,desde cedo,vestido e sapatos novos que eu não me cansava de olhar.Tocá-los era puro prazer. Quanto disso eu percebia na época? Muito. Tenho certeza agora de que aquela inefável sensação de alegria existia real dentro de mim. E ficou para sempre intocada em algum lugar que não sei qual é.
O surpreendente é que a recobrei hoje , não sem muita nostalgia.Fiquei muito tempo mergulhada em um tempo que se foi ,mas ficou.

O perfume do cipreste e o gosto do bolo estão vivos, vivíssimos.Sinto- os com todos os meus sentidos em todas as suas nuances.
Eles se chamam SAUDADE.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Soneto de Natal.


Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço no Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto... A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"



Texto extraído do livro "Poesias Completas - Ocidentais", 1901
Machado de Assis...porque ele "cabe" em qualquer lugar e em todas as horas.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Escrever é sangrar (2)



Zézim, remexa na memória, na infância, nos sonhos, nas tesões, nos fracassos, nas mágoas, nos delírios mais alucinados, nas esperanças mais descabidas, na fantasia mais desgalopada, nas vontades mais homicidas, no mais aparentemente inconfessável, nas culpas mais terríveis, nos lirismos mais idiotas, na confusão mais generalizada, no fundo do poço sem fundo do inconsciente: é lá que está o seu texto. Sobretudo, não se angustie procurando-o: ele vem até você, quando você e ele estiverem prontos. Cada um tem seus processos, você precisa entender os seus. De repente, isso que parece ser uma dificuldade enorme pode estar sendo simplesmente o processo de gestação do sub ou do inconsciente.

E ler, ler é alimento de quem escreve. Várias vezes você me disse que não conseguia mais ler. Que não gostava mais de ler. Se não gostar de ler, como vai gostar de escrever? Ou escreva então para destruir o texto, mas alimente-se. Fartamente. Depois vomite. Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, escrever é enfiar um dedo na garganta. Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda-a, transforma. Pode sair até uma flor. Mas o momento decisivo é o dedo na garganta. E eu acho — e posso estar enganado — que é isso que você não tá conseguindo fazer. Como é que é? Vai ficar com essa náusea seca a vida toda? E não fique esperando que alguém faça isso por você. Ocê sabe, na hora do porre brabo, não há nenhum dedo alheio disposto a entrar na garganta da gente.

(...)

Às vezes penso que, quando escrevo, sou apenas um canal transmissor, digamos assim, entre duas coisas totalmente alheias a mim, não sei se você entende. Um canal transmissor com um certo poder, ou capacidade, seletivo, sei lá. Hoje pela manhã não fui à praia e dei o conto por concluído, já acho que na quarta versão. Mas vou deixá-lo dormir pelo menos um mês, aí releio — porque sempre posso estar enganado(...)


Caio Fernando Abreu
Perfeito.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Eu não sou nada. Sou o minuto e a eternidade.


Não me compreendo nem compreendo os outros. Não sei quem sou e vou morrer. Tudo me parece inútil e agarro-me com desespero a um fio de vida, como um náufrago a um pedaço de tábua.

Nem sei o que é a vida. Chamo vida ao espanto. Chamo vida a esta saudade, a esta dor; chamo vida e morte a este cataclismo. É a imensidade e um nada que me absorve; é uma queda imensa e infinita, onde disponho de um único momento.Talvez o mundo não exista, talvez tudo no mundo sejam expressões da minha própria alma.

Faço parte de uma coisa dolorosa, que totalmente desconheço, e que tem nervos ligados aos meus nervos, dor ligada à minha dor, consciência ligada à minha consciência. Estou até convencido que nenhum destes seres existe. Este fel é o meu fel, este sonho grotesco o meu sonho. Estou convencido que tudo isto são apenas expressões de dor – e mais nada.

Nós não vemos a vida – vemos um instante da vida. Atrás de nós a vida é infinita, adiante de nós a vida é infinita. A primavera está aqui, mas atrás deste ramo em flor houve camadas de primaveras de oiro, imensas primaveras extasiadas, e flores desmedidas por trás desta flor minúscula.

O tempo não existe. O que eu chamo a vida é um elo, e o que aí vem um tropel, um sonho, desmedido que há-de realizar-se. E nenhum grito é inútil, para que o sonho vivo ande pelo seu pé. A alma que vai desesperada à procura de Deus, que erra no universo, ensanguentada e dorida, a cada grito se aproxima de Deus. Lá vamos todos a Deus, os vivos e os mortos.

O mundo é um grito. Onde encontrar a harmonia e a calma neste turbilhão infinito e perpétuo, neste movimento atroz? O mundo é um sonho sem um segundo de paz. A dor gera dor num desespero sem limites. Eu não sou nada. Sou o minuto e a eternidade. Sou os mortos. Não me desligo disto – nem do crime, nem da pedra, nem da voragem.

Sou o espanto aos gritos.O sonho completo é o universo realizado.Cada vez mais fujo mais de olhar para dentro de mim mesmo. Sinto-me nas mãos de uma coisa desconforme. Sinto-me nas mãos de uma coisa imensa e cega – de uma tempestade viva. Não só a sensibilidade é universal – a inteligência é exterior e universal.

O universo é uma vibração. A vida é uma vibração na vibração. Toda a teoria mecânica do universo é absurda. Daqui a alguns anos todos os sistemas serão ridículos – até o sistema planetário.

Raul Brandão - Húmus

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

A arte de pensar sem riscos.


Não fossem os caminhos da emoção a que leva o pensamento, pensar já teria sido catalogado como um dos modos de se divertir. Não se convidam os amigos para o jogo por causa da cerimônia que se tem em pensar. O melhor modo é convidar apenas para uma visita e, como quem não quer nada, pensa-se junto, no disfarçado das palavras.

Isso, enquanto jogo leve. Pois pensar fundo – que é grau máximo do hobby – é preciso estar sozinho. Porque entregar-se a pensar é uma grande emoção, e só se se tem coragem de pensar na frente de outrem quando a confiança é grande a ponto de não haver constrangimento em usar, se necessário, a palavra outrem, Além do mais, exige-se muito de quem nos assiste a pensar: que tenha um coração grande, amor, carinho, e a experiência de também de ter dado a pensar. Exige-se tanto de quem ouve as palavras e os silêncios – como se exigiria para sentir. Não, não é verdade. Para sentir exige-se mais.

Bom, mas, quanto a pensar com divertimento, a ausência de riscos o põe ao alcance de todos. Alguns risco tem, é claro. Brinca-se e pode-se sair de coração pesado. Mas de um modo geral, uma vez tomados os cuidados intuitivos, não tem perigo.

Como hobby apresenta a vantagem de ser por excelência transportável. Embora no seio do lar seja melhor, segundo eu. Em certas horas da tarde, por exemplo, em que a casa cheia de luz mais parece esvaziada pela luz, enquanto a cidade inteira estremece trabalhando e só nós trabalhamos em casa mas ninguém sabe – nessas horas em que a dignidade se refaria se tivéssemos uma oficina de consertos ou uma sala de costuras – nessas horas, pensa-se. Assim: começa-se do ponto exato em que se estiver, mesmo que não seja de tarde, só de noite é que não aconselho.

Uma vez, por exemplo – no tempo em que mandávamos roupa pra lavar fora – eu estava fazendo um rol. Talvez por hábito de dar título ou por súbita vontade de ter o caderno limpo como o de escola, escrevi: rol de... E foi nesse instante em que a vontade de não ser séria chegou. É o primeiro sinal de animus brincandi, em matéria de pensar – como – hobby. E escrevi, esperta: rol de sentimentos. O que eu queria dizer com isso tive que deixar pra ser depois – o outro sinal de estar em caminho certo é o de não ficar aflita por não entender.

Então comecei uma listinha de sentimentos dos quais não sei o nome. Se recebo um presente dado com carinho por uma pessoa de quem não gosto – como se chama o que eu sinto? A saudade que de tem da pessoa de quem a gente não gosta mais, essa mágoa e esse rancor – como se chama? Estar ocupada – e de repente parar por ter sido tomada por uma súbita desocupação desanuviadora e beata, como se uma luz de milagre tivesse entrado na sala: como se chama o que se sentiu?

Mas devo avisar. Às vezes começa-se a brincar de pensar, e eis que inesperadamente o brinquedo é que começa a brincar conosco. Não é bom. É apenas frutífero”


Clarice Lispector in Brincar de pensar
Instigante...como tudo que vem dela.

Para Bruna - que coloriu o meu dia.
( Telas de Clarisse / angustia existencial)

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Excertos in " O Conto da Ilha Desconhecida"



Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar.

(...)mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és...

(...) é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós.

(...)o sonho é um prestidigitador hábil, muda as proporções das coisas e as suas distâncias, separa as pessoas, e se elas estão juntas, reúne-as...

A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma.



"Buscar a si mesmo" na imagem poética de uma ilha misteriosa, assim como são misteriosos os sonhos humanos, reflete um desejo universal, desde tempos ancestrais.
É filosófico afirmar que "todo homem é uma ilha", e o personagem do conto quer descobrir a si mesmo, o sentido de sua existência.
A ilha desconhecida é a imagem metafórica da consciência, de "o mundo interior". E se somos ilhas, aí está um exercício de autoconhecimento.

http://www.releituras.com/jsaramago_conto.asp - É imprescindível ler mais.

domingo, 22 de novembro de 2009

Escrever é sangrar.


Você quer escrever. Certo, mas você quer escrever? Ou todo mundo te cobra e você acha que tem que escrever? Sei que não é simplório assim, e tem mil coisas outras envolvidas nisso. Mas de repente você pode estar confuso porque fica todo mundo te cobrando, como é que é, e a sua obra? Cadê o romance, quedê a novela, quedê a peça teatral? DANEM-SE, demônios. Zézim, você só tem que escrever se isso vier de dentro pra fora, caso contrário não vai prestar, eu tenho certeza, você poderá enganar a alguns, mas não enganaria a si e, portanto, não preencheria esse oco.

Não tem demônio nenhum se interpondo entre você e a máquina. O que tem é uma questão de honestidade básica. Essa perguntinha: você quer mesmo escrever? Isolando as cobranças, você continua querendo? Então vai, remexe fundo, como diz um poeta gaúcho, Gabriel de Britto Velho, "apaga o cigarro no peito / diz pra ti o que não gostas de ouvir / diz tudo". Isso é escrever. Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a "função social", nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te. Você não está com medo dessa entrega? Porque dói, dói, dói. É de uma solidão assustadora. A única recompensa é aquilo que Laing diz que é a única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de glória interior. Essa expressão é fundamental na minha vida.

Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de "meio doida”. Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud.


Caio Fernando Abreu
Esse texto é fragmento de um conto ,longo, mas inteiramente belo. Para que nada se perca, vamos "bebê-lo aos goles" como a um bom vinho. Serão postados outros excertos, quando a gente acabar de se maravilhar com esse.

sábado, 21 de novembro de 2009

...tudo o que é bonito é absurdo - Deus estável.



"Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flor. O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nestas fantasias. Dormi nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo o que é bonito é absurdo - Deus estável. Ouro e prata que Diadorim aparecia ali, a uns dois passos de mim, me vigiava. Sério, quieto, feito ele mesmo, só igual a ele mesmo nesta vida".

Grande Sertão: Veredas

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Do fim para o começo.



A coisa mais injusta sobre a vida é a maneira como ela termina. Eu acho que o verdadeiro ciclo da vida está todo de trás pra frente. Nós deveríamos morrer primeiro, nos livrar logo disso. Daí viver num asilo, até ser chutado pra fora de lá por estar muito novo. Ganhar um relógio de ouro e ir trabalhar.

Então você trabalha 40 anos até ficar novo o bastante pra poder aproveitar sua aposentadoria. Aí você curte tudo, bebe bastante álcool, faz festas e se prepara pra faculdade. Você vai pro colégio, tem várias namoradas, vira criança, não tem nenhuma responsabilidade, se torna um bebezinho de colo, volta pro útero da mãe, passa seus últimos nove meses de vida flutuando….

E termina tudo com um ótimo orgasmo!!! Não seria perfeito?”


Charles Chaplin

Cada criatura humana traz duas almas...



Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro...

Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir.

A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc.

Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. (...) Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...

- Não?
- Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável.

Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade...


Machado de Assis in " O espelho".
Machado é...Machado. Só e tudo.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Feliz aniversário, minha filha!



Se eu pudesse, hoje, me comparar a um objeto, seria a uma Rocha Flutuante, uma dessas pedras trabalhadas, sabe?! Flutuante pela leveza e Rocha pela sensação de ser indestrutível.
(...)
Não tenho palavras para descrever a sensação de vitória que estou carregando agora!!! É um êxtase de sucesso, de conquista, e é só meu...
Então, dei-me conta que a escuridão virou passado, e que eu sou uma rocha, uma rocha bonita, de aparência frágil, porém, indestrutível...
Descobri que não importa quantos obstáculos, a vida venha a oferecer, não importa o grau de dificuldade destes obstáculos, eu vou passar por cada um deles... E aquela rocha, vai ficando talhada, cada vez mais marcada, por cada uma das dificuldades superadas; e serão justamente essas marcas, que farão da rocha cada vez mais bonita e mais valiosa!!!
É assim que me sinto hoje!!!
(...)
Somos gerações de pedras, bonitas por fora, mas com valor imensurável por dentro. Ricas em história, em vida; marcamos presença aqui neste plano, não simplesmente deixamos a vida passar. Temos que ter orgulho disso, de sermos pedras preciosas!!!
(...)
Eu precisava muito compartilhar isso com você, mãe!

E quem disse que a vida não vale a pena? Se não fossem as dificuldades, não teríamos como conhecer o sabor da vitória!

Bom, é isso aí!!!

Te amo muito!

Milhares de Beijos,

Inayê


Excertos do seu email recebido em 13 de novembro de 2009.Não vou transcrevê-lo inteiro , porque não me cabe desnudar sua vida aqui. Mas , posso sim, selecionar algumas palavras que me emocionaram profundamente,que encheram minha alma e meu coração de orgulho,

e...no seu aniversário, quem ganha o presente sou eu.

Obrigada por ter dividido esses anos comigo . Filhos são escolhidos por nós antes de nascer. Eu escolhi você e você me aceitou como mãe.

Tivemos momentos pesados, difíceis, mas dores e alegrias fazem parte do caminho . Sobrevivemos, íntegras.As rochas sempre sobrevivem. Modificam-se , porém sabem porque estão ali.E cumprem seu destino.Sempre.

Te amo. como uma rocha.Para sempre.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O homem escreve livros porque se sabe mortal.




O homem constrói casas porque está vivo, mas escreve livros porque se sabe mortal.

Ele vive em grupo porque é gregário, mas lê porque se sabe só.

Esta leitura é para ele uma companhia que não ocupa o lugar de qualquer outra, mas nenhuma outra companhia saberia substituir. Ela não lhe oferece qualquer explicação definitiva sobre o seu destino, mas tece uma trama cerrada de conivências entre a vida e ele. Ínfimas e secretas conivências que falam da paradoxal felicidade de viver, enquanto elas mesmas deixam claro o trágico absurdo da vida.

De tal forma que nossas razões para ler são tão estranhas quanto nossas razões para viver. E a ninguém é dado o poder para pedir contas dessa intimidade.




Daniel Pennac, Como um Romance (Rocco)

domingo, 15 de novembro de 2009


quando a dor é uma parte da lucidez não existe agonia. há só um dia que sobe e outro que desce. em comprimentos iguais. o silêncio que sobra é caução do espanto.

ardem as sombras na inexistência dos dias.


Maria José Quintela : porque eu gostaria de ter talento para escrever assim.

O amor é uma espécie de morte.


"Somos todos imortais. Teoricamente imortais, claro. Hipocritamente imortais. Por que nunca consideramos a morte como uma possibilidade cotidiana, feito perder a hora no trabalho ou cortar-se fazendo a barba, por exemplo. Na nossa cabeça, a morte não acontece como pode acontecer de eu discar um número telefônico e, ao invés de alguém atender, dar sinal de ocupado. A morte, fantasticamente, deveria ser precedida de certo “clima”, certa “preparação”. Certa “grandeza”.

Deve ser por isso que fico (ficamos todos, acho) tão abalado quando, sem nenhuma preparação, ela acontece de repente. E então o espanto e o desamparo, a incompreensão também, invadem a suposta ordem inabalável do arrumado (e por isso mesmo “eterno”) cotidiano.

A morte de alguém conhecido ou/e amado estupra essa precária arrumação, essa falsa eternidade. A morte e o amor. Por que o amor, como a morte, também existe – e da mesma forma dissimulada. Por trás, inaparente. Mas tão poderoso que, da mesma forma que a morte – pois o amor é uma espécie de morte (a morte da solidão, a morte do ego trancado, indivisível, furiosa e egoisticamente incomunicável) – nos desarma.

O acontecer do amor e da morte desmascaram nossa patética fragilidade."

Caio Fernado Abreu

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Tecendo a Manhã.



Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.


E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.



João Cabral de Melo Netto (A Educação pela Pedra)

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

in 'O Homem Revoltado'.



O homem recusa o mundo tal como ele é, sem aceitar o eximir-se a esse mesmo mundo. Efetivamente os homens gostam do mundo e, na sua imensa maioria, não querem abandoná-lo. Longe de quererem esquecê-lo, sofrem, sempre, pelo contrário, por não poderem possuí-lo suficientemente, estranhos cidadãos do mundo que são, exilados na sua própria pátria. Exceto nos momentos fulgurantes da plenitude, toda a realidade é para eles imperfeita.

Os seus atos escapam-lhes noutros atos; voltam a julgá-los assumindo feições inesperadas; fogem, como a água de Tântalo, para um estuário ainda desconhecido. Conhecer o estuário, dominar o curso do rio, possuir enfim a vida como destino, eis a sua verdadeira nostalgia, no ponto mais fechado da sua pátria. Mas essa visão que, ao menos no conhecimento, finalmente os reconciliaria consigo próprios, não pode surgir; se tal acontecer, será nesse momento fugitivo que é a morte; tudo nela termina.

Para se ser uma vez no mundo, é preciso deixar de ser para sempre.

Neste ponto nasce essa desgraçada inveja que tantos homens sentem da vida dos outros. Apercebendo-se exteriormente dessas existências, emprestam-lhes uma coerência e uma unidade que elas não podem ter, na verdade, mas que ao observador parecem evidentes. Este não vê mais que a linha mais elevada dessas vidas, sem adquirir consciência do pormenor que as vai minando. Então fazemos arte sobre essas existências. Romanceamo-las de maneira elementar. Cada um, nesse sentido, procura fazer da sua vida uma obra de arte. Desejamos que o amor perdure e sabemos que tal não acontece; e ainda que, por milagre, ele pudesse durar uma vida inteira, seria ainda assim um amor imperfeito.

Talvez que, nesta insaciável necessidade de subsistir, nós compreendêssemos melhor o sofrimento terrestre, se o soubéssemos eterno. Parece que, por vezes, as grandes almas se sentem menos apavoradas pelo sofrimento do que pelo fato de este não durar. À falta de uma felicidade incansável, um longo sofrimento ao menos constituiria um destino. Mas não; as nossas piores torturas terão um dia de acabar.

Certa manhã, após tantos desesperos, uma irreprimível vontade de viver virá anunciar-nos que tudo acabou e que o sofrimento não possui mais sentido do que a felicidade.


Albert Camus

domingo, 8 de novembro de 2009


Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor .Conhecer o frio para conhecer o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto.

Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser; que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e
simplesmente ir ver.


Amyr Klink, Mar sem fim.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

O Deus de cada um.


Os trinta nomes de Deus.
De vez em quando perguntam-me se acredito em Deus. Mas é claro. Acredito mais que a maioria das pessoas. Tenho até trinta e três nomes para ele. Esses nomes foi a Margueritte Yourcenar que me contou. Ela foi uma escritora maravilhosa, autora do livro Memórias de Adriano, quem lê nunca mais esquece, quer ler de novo. Pois esses são os trinta e três nomes de Deus que ela me ensinou. É só falar o nome, ver na imaginação o que o nome diz, para que a alma se encha de uma alegria que só pode ser um pedaço de Deus... Mas é preciso ler bem devagarinho...

1.Mar da manhã. 2.Barulho da fonte nos rochedos sobre as paredes de pedra. 3.Vento do mar de noite, numa ilha... 4.Abelha. 5.Vôo triangular dos cisnes. 6. Cordeirinho recém-nascido.... 7.Mugido doce da vaca, mugido selvagem do touro. 8.Mugido paciente do boi. 9. Fogo vermelho no fogão. 10.Capim. 11.Perfume do capim. 12.Passarinho no céu. 13.Terra boa... 14.Garça que esperou toda a noite, meio gelada, e que vai matar sua fome no nascer do sol. 15. Peixinho que agoniza no papo da garça. 16. Mão que entra em contato com as coisas. 17.A pele, toda a superfície do corpo 18. O olhar e tudo o que ele olha. 19.As nove portas da percepção. 20.O torso humano. 21.O som de uma viola e de uma flauta indígena. 22.Um gole de uma bebida fria ou quente. 23.Pão. 24.As flores que saem da terra na primavera. 25.Sono na cama. 26. Um cego que canta e uma criança enferma. 27. Cavalo correndo livre. 28.A cadela e os cãezinhos. 29.Sol nascente sobre um lago gelado. 30.O relâmpago silencioso. 31. O trovão que estronda. 32.O silêncio entre dois amigos. 33.A voz que vem do leste, entra pela orelha direita e ensina uma canção...”
Agradeço ao Carlos Brandão por haver me apresentado os trinta e três nomes de Deus da Margueritte. Não é preciso que sejam os seus.

Faça a sua própria lista. Eu incluiria: Ouvir a sonata Apassionata de Beethoven. Sapos coaxando no charco. O canto do sabiá. Banho de cachoeira. A tela “Mulher lendo uma carta”, de Vermeer. O sorriso de uma criança. O sorriso de um velho. Balançar num balanço tocando com o pé as folhas da árvore... Morder uma jabuticaba... Todas essas coisas são os pedaços de Deus que conheço... Sim, acredito muito em Deus
.

Rubem Alves.Quarto de Badulaques.

Um adendo para http://cartasdetiro.wordpress.com/ 4º comentário a um post
Uma visão poética irresistível. Um jeito especial de dizer que Deus está vivo. Depende apenas de como a gente O vê.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Nada é impossível de mudar.


Nada é impossível mudar
Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural
nada deve parecer impossível de mudar.


Bertolt Brecht
Analisando com seriedade a obra brechtiana – coisa que os “assassinos” de Brecht jamais fizeram – vê-se de cara que o autor será sempre atual ou, pelo menos – e isso talvez equivalha a sempre – enquanto houver a exploração do homem pelo homem, a injustiça social, a miséria e a violência do poder...

sábado, 31 de outubro de 2009

O agasalho do coração.



Ante o frio,
faz com o coração
o contrário do que fazes com o corpo:
despe-o.
Quanto mais nu,
mais ele encontrará
o único agasalho possível
- um outro coração.

[Mia Couto, «A Chuva Pasmada»]

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

...sob o coração, quase esperança sem nome.


É esta a mais grandiosa história dos homens, a de tudo o que estremece, sonha, espera e tenta, sob a carapaça da sua consciência, sob a pele, sob os nervos, sob os dias felizes e monótonos, os desejos concretos, a banalidade que escorre das suas vidas, os seus crimes e as suas redenções, as suas vítimas e os seus algozes, a concordância dos seus sentidos com a sua moral.

Tudo o que vivemos nos faz inimigos, estranhos, incapazes de fraternidade. Mas o que fica irrealizado, sombrio, vencido, dentro da alma mais mesquinha e apagada, é o bastante para irmanar esta semente humana cujos triunfos mais maravilhosos jamais se igualam com o que, em nós mesmos, ficará para sempre renúncia, desespero e vaga vibração.

O mais veemente dos vencedores e o mendigo que se apoia num raio de sol para viver um dia mais, equivalem-se, não como valores de aptidões ou de razão, não talvez como sentido metafísico ou direito abstracto, mas pelo que em si é a atormentada continuidade do homem, o que, sem impulso, fica sob o coração, quase esperança sem nome.

Agustina Bessa-Luís in A Sibila
( Imperdível, comovente, grandioso...mais um "gol" da Literatura Portuguesa)

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Nunca te amei tudo. Vou-te amar no absoluto.



«E devagar, ao centro de convergência de toda a bruta inquietação, rígida a procura do teu abismo interior. Refreio o ímpeto, quero entrar com a consciência difícil do que procuro, o impossível do teu ser. Rebento no limite de reter-me no sofrimento. Mas quero entender, entender. O modo único de nada me escapar ao prazer de ti. Do mistério irritante do que acontece no amar-te agora por sobre quanto te amei.

Entender. Amar-te na conglomeração de todas as vezes e formas e impossível em que te amei. Mónica, minha querida. Minha doença insuportável. Porque o teu corpo não é só o teu corpo. Não é isso, não é isso. É entrar em ti, e a tua pessoa estar lá, seres tu ainda no íntimo de te tocar e estares aí como no teu riso, na tua presença. Seres tu ainda quase reconhecível como se não soubesse que eras tu e entrar em ti e reconhecer-te como se aí fosses reconhecível.

Preciso de entender, não te vou agora amar à toa. Seres por dentro única como nas impressões digitais. Saber que és tu, mesmo sendo cego e surdo. Entrar em ti e tu estares toda lá dentro como estás por fora. Tocar o intransmissível de ti, reconhecer que és tu, inconfundível, no igual do teu íntimo ao de toda a mulher. Porque tu és tão diferente. No riso no ar na voz, na totalidade do teu corpo. E sentir que isso tudo é lá também esse tudo. Diferente na sua igualdade.

Entrar em ti e ir reconhecendo pouco a pouco no meu entrar a mulher que amo até à estupidez. Reconhecer encontrar dentro o que amei fora. Nunca te amei toda, vou-te amar o que sempre faltou. Nunca te amei tudo, aproveitei sempre uma fatia de te amar.

O teu olhar, o teu riso, a exemplaridade do teu corpo, o seu espectáculo, o encantamento às vezes, o teu andar, o prazer rápido, o prazer trabalhado para te submeter a tê-lo. Coisas assim avulsas. Vou-te amar agora, vou-te amar no absoluto. Amar-te no prazer e rebentar.»

Vergílio Ferreira, «Em nome da terra», Quetzal, pág.143]

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Humildade. É a última coisa que me resta, e a melhor.


Encontro, algures na minha natureza, alguma coisa que me diz que não há nada no mundo que seja desprovido de sentido, e muito menos o sofrimento.

Essa qualquer coisa, escondida no mais fundo de mim, como um tesouro num campo, é a humildade. É a última coisa que me resta, e a melhor (…). Ela veio-me de dentro de mim mesmo e sei que veio no bom momento. Não teria podido vir mais cedo nem mais tarde. Se alguém me tivesse falado dela, tê-la-ia rejeitado. Se ma tivessem oferecido, tê-la-ia rejeitado (…). É a única coisa que contém os elementos da vida, de uma vida nova (…). Entre todas as coisas ela é a mais estranha (…).

É somente quando perdemos todas as coisas que sabemos que a possuímos.

(Oscar Wilde, in “De Profundis”)

domingo, 25 de outubro de 2009

in " Caim"




"(...) Sucedeu então algo até hoje inexplicado. O fumo da carne oferecida por abel subiu a direito até desaparecer no espaço infinito, sinal de que o senhor aceitava o sacrifício e nele se comprazia, mas o fumo dos vegetais de caim, cultivados com um amor pelo menos igual, não foi longe, dispersou-se logo ali, a pouca altura do solo, o que significava que o senhor o rejeitava dia ser que houvesse ali uma corrente de ar que fosse a causa do distúrbio, e assim fizeram, mas o resultado foi o mesmo. Estava claro, o senhor desdenhava caim. Foi então que o verdadeiro carácter de abel veio ao de cima. Em lugar de se compadecer do desgosto do irmão e consolá-lo, escarneceu dele, e, como se isto ainda fosse pouco, desatou a enaltecer a sua própria pessoa, proclamando-se, perante o atónito e desconcertado caim, como um favorito do senhor, como um eleito de deus. (...) A cena repetiu-se, invariável, durante uma semana, sempre um fumo que subia, sempre um fumo que podia tocar-se com a mal e logo se desfazia no ar. E sempre a falta de piedade de abel, os dichotes de abel, o desprezo de abel. Um dia caim pediu ao irmão que o acompanhasse a um vale próximo onde era voz corrente que se acoitava uma raposa e ali, com as suas próprias mãos, o matou a golpes de uma queixada de jumento que havia escondido antes num silvado, portanto com aleivosa premeditação. Foi nesse exacto momento, isto é, atrasada em relação aos acontecimentos, que a voz do senhor soou, e não só soou ela como apareceu ele. (...) Que fizeste com o teu irmão, perguntou, e caim respondeu com outra pergunta, Era eu o guarda-costas de meu irmão, Mataste-o, Assim é, mas o primeiro culpado és tu, eu daria a vida pela vida dele se tu não tivesses destruído a minha, Quis pôr-te à prova, E tu quem és para pores à prova o que tu mesmo criaste, Sou o dono soberano de todas as coisas, E de todos os seres, dirás, mas não de mim nem da minha liberdade, Liberdade para matar, Como tu foste livre para deixar que eu matasse a abel quando estava na tua mão evitá-lo, bastaria que por um momento abandonasses a soberba da infalibilidade que partilhas com todos os outros deuses, bastaria que por um momento fosses realmente misericordioso, que aceitasses a minha oferenda com humildade, só porque não deverias atrever-te a recusá-la, os deuses, e tu como todos os outros, têm deveres para com aqueles a quem dizem ter criado, Esse discurso é sedicioso, É possível que o seja, mas garanto-te que, se eu fosse deus, todos os dias diria Abençoados sejam os que escolheram a sedição porque deles será o reino da terra, Sacrilégio, Será, mas em todo o caso nunca maior que o teu, que permitiste que abel morresse, Tu é que o mataste, Sim, é verdade, eu fui o braço executor, mas a sentença foi dada por ti, O sangue que aí está não o fiz verter eu, caim podia ter escolhido entre o mal e o bem, se escolheu o mal pagará por isso, Tão ladrão é o que vai à vinha como aquele que fica a vigiar o guarda, disse caim, E esse sangue reclama vingança, insistiu deus, Se é assim, vingar-te-ás ao mesmo tempo de uma morte real e de outra que não chegou a haver, Explica-te, Não gostarás do que vais ouvir, Que isso não te importe, fala, É simples, matei abel porque não podia matar-te a ti, pela intenção estás morto, Compreendo o que queres dizer, mas a morte está vedada aos deuses, Sim, embora devessem carregar com todos os crimes cometidos em seu nome ou por sua causa (...)"



José Saramago ...Porque , depois de Memorial do Convento" e "Evangelho segundo Jesus Cristo" essa obra é uma continuidade natural.
A entrevista dada pelo autor foi desastrosa ; afirmou que «a Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana» A Bíblia é só um livro .Cabe a cada leitor decidir o que lhe convém, porque fé não se discute.Ler Saramago não significa concordar com o que ele diz.Apenas apreciar uma boa leitura e refletir.
Felizmente,a qualidade do que ele escreve é muito superior à do que fala.

sábado, 24 de outubro de 2009

Uma vez é nunca.



Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado.

Mas, o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida?É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço.

No entanto, mesmo “esboço” não é palavra certa porque um esboço é um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço da nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro.

Tomás repete para si mesmo o provérbio alemão: einmal it keinmal, uma vez não conta, uma vez é nunca. Não poder viver senão uma vida é como não viver nunca.

Milan Kundera in A insustentável leveza do ser.

A impaciência é uma energia inútil.


o tempo não tem todo o mesmo peso. há um tempo que abre feridas e outro que as cicatriza. a impaciência é uma energia inútil e os heróis são personagens de outro palco. já quis acarear o tempo. agora só quero ir ao lado dele.

nutro-me de utopias. desabo debaixo de grafias líquidas. concedo-me o destino das algas. e devolvo-me às marés. de peito aberto. para ser só coração. vibrante e voraz. vocação de vaga que explode o beijo na areia.

mas há-de vir o inverno. o frio na pele. o aperto no coração. a gestação dos diálogos. quentes e doces. aveludada teia que retorna ao pensamento quando os dias quietos se retocam de nostalgia. sei então que em algum momento e lugar voaremos em movimento de asas sincronizado. teremos então a idade do ouro.


Maria José Quintela...porque indiscutivelmente tê-la "descoberto" foi uma das coisas mais significativas que me aconteceram nesse ano.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A convicção ( falsa) de que se tem outra oportunidade.



Havia de ter a sensatez de não folhear os álbuns de fotografias; mas não conseguiria deixar de visualizar as imagens que tinha na cabeça – dos momentos desperdiçados porque se supunham infinitos, das noites em que os dois, cansados, se tinham contentado com uma breve carícia em vez de um enlace impetuoso, voltando as costas um ao outro e dispondo-se a um sono gratificante, na convicção total de que ambos teriam outra oportunidade, no dia seguinte, ou no sábado de manhã.

Todas essas oportunidades tinham sido enfiadas numa bola de trapos, que um destino indiferente se encarregara de arremessar para bem longe.”


Um Natal Que Não Esquecemos/ Jacquelyn Mitchard

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Nós somos o que nunca é concluído.


Imaginar um mundo novo é vivê-lo diariamente, cada pensamento, cada olhar, cada passo, cada gesto matando e criando de novo, com a morte sempre um passo à frente.

Cuspir no passado não é bastante. Proclamar o futuro não é bastante. A gente precisa agir como se o passado estivesse morto e o futuro fosse irrealizável. A gente precisa agir como se o próximo passo fosse o último, o que ele é.

(…) Somos aqui da terra para nunca acabar, o passado nunca cessando, o futuro nunca começando, o presente nunca acabando. O mundo do nunca-nunca que seguramos em nossas mãos e vemos, mas que não somos nós mesmos.

Nós somos o que nunca é concluído, nunca é modelado para ser reconhecido, tudo que existe mas que não é o todo, as partes sendo tão maiores que o todo que só Deus, o matemático, pode imaginá-lo”.

Henry Miller in Primavera Negra.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

A felicidade não está nas coisas, nem é alguma coisa.



Felicidade é um estado. Isso quer dizer uma maneira de ser que consiste em ser por nada senão por ser e em encontrar nessa maneira de ser assim gratuitamente uma forma de plenitude.

Em virtude disso, a felicidade não está nas coisas nem é alguma coisa.

Ela também não está em alguém nem é alguém, mas está na maneira pela qual se vivem as coisas e os outros.

Tudo pode, portanto, tornar-se ocasião de felicidade. Todo mundo igualmente.

Por menos que se faça não só um esforço para ser, mas também e sobretudo o esforço de ser. Donde a extraordinária liberdade da felicidade.

Sua extraordinária capacidade igualmente de poder transformar tudo.

Bertrand Vergerly, O Sofrimento, p. 129 (EDUSC)

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

"Cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias ..."




“Florentino Ariza não deixou de pensar nela um único instante desde que Fermina Daza o rechaçou sem apelação depois de uns amores contrariados e longos, e haviam transcorrido a partir de então cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias
......................................................................................

Depois de um longo tempo, Florentino Ariza olhou Fermina Daza ao fulgor do rio, viu-a espectral, o perfil de estátua suavizado por um tênue resplendor azul, e viu que chorava em silêncio.Mas, em vez de consolá-la, ou esperar que esgotasse suas lágrimas, como queria ela, deixou-se invadir pelo pânico.

-Você quer ficar só?
-Se quisesse não diria a você que entrasse.-disse ela.

Então ele estendeu os dedos gelados na escuridão, buscou tateante a outra mão na escuridão, e a encontrou à espera.Ambos foram bastante lúcidos para perceber , num mesmo instante fugaz, que nenhuma das duas era a mão que tinham imaginado antes de se tocar, e sim duas mãos de ossos velhos.


Gabriel Garcia Márquez

Gizelda ,impregnada até os ossos pelo amor incondicional de Florentino Ariza por Fermina Daza... Lindo.Imperdível.

domingo, 18 de outubro de 2009

Você não pode voltar atrás no que vê.




...Porque você não pode voltar atrás no que vê. Você pode se recusar a ver, o tempo que quiser: até o fim de sua maldita vida, você pode recusar, sem necessidade de rever seus mitos ou movimentar-se de seu lugarzinho confortável.

Mas a partir do momento em que você vê, mesmo involuntariamente, você está perdido: as coisas não voltarão a ser mais as mesmas e você próprio já não será o mesmo.

Caio F. Abreu

quinta-feira, 15 de outubro de 2009




Preciso fazer uma escolha , urgente. E não posso errar.Não mais.

Para onde devo ir?

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Cíntia.



Linda. Cachos de ouro velho teimosamente caem sobre olhos de avelã , profundos, vivos, inquisidores.Neta, filha, pessoa, companheira de todas as horas. 4 anos e dez meses de puro deleite.

Sabida como ela só, enche de apreensão e alegria minha precária vida.Amo-a tanto que dói.Não sei viver sem esperá-la, sem seu beijo molhado, sem alegrá-la, sem chegar ao seu quarto, de mansinho, e vê-la ressonando abraçada ao seu “querido boi” , um cobertor rosa sujo e desbotado.

Veio ao mundo em uma hora inadequada em que tudo conspirava contra ela, desde as circunstâncias até a frágil saúde. E lutou bravamente para sobreviver , 35 dias na UTI. Conseguiu. Admiro-a, desde então.É uma vencedora.
Por ela e para ela tenho vivido. Talvez para compensar o que lhe foi reservado, muito diferente do que possuem crianças felizes de famílias estruturadas e cobradas pelas convenções.

Porém todas as histórias de fadas se nutrem de bruxas e sombras. E eu não sou Galaaz, Parsifal, nem Lancelot, nem mesmo uma avó com saúde e idade suficientes para enfrentar bruxas malvadas.Se for preciso, no entanto , buscarei forças onde elas existam para ajudá-la a cumprir seu destino.
Só quero que ela seja feliz dentro do possível e, para tanto, preciso me fortalecer para protegê-la até que tenha discernimento para escolher o caminho de sua travessia.

Cíntia, você é luz.É sol.É ouro.É mar.É céu.É azul... Te amo.

Vovó.
Valinhos,19 de abril de 2003.

O post, de novo,meu bichinho, porque agora você sabe ler e entender...só que hoje com mais 6 anos de amor.

domingo, 11 de outubro de 2009

O sobressalto do coração.


não quero mais do que me pertence ser. e é tanto. o que me pertence e demoro a ser. mas quero mais do que me acontece. não por merecimento mas por herança. de sangue. mesmo quando me abdico é uma forma de me pronunciar. conheço o disfarce de todos os silêncios que se encostam às palavras omissas e são pretexto para não magoar. sinto-os. toco-os. cheiro-os. assim antecipo a mágoa. só é preciso saber ler nas entrelinhas dessa língua lisa e leve que ninguém ensina.

oriento-me pelo zumbido das palavras erráticas do outro lado de mim. onde não encontro sentido. e não fazer sentido pode ser o único sentido. desperto-me quando passo para lá do véu dos outros. o alarido belisca-me. às vezes pensamo-nos pequenos. e eu sou especialmente pequena quando me espelho. o resto é eu ficar triste e isso não ser importante. outras vezes calo-me. não tenho que me provar a ninguém.

não faço confissões. só me permito os parêntesis. como entrada de emergência no texto. exploro apenas sentidos ocultos. tudo são fluxos. marés. golpes de vento. e de sorte. pequeninos derrames de sangue ou colapso de veias. alvoradas após longas noites de vigília. basta-me olhar para saber que estou noutra direcção. como água que lava. e nunca deslava. antes leva. o tempo dá o empurrão que me muda de sítio. mas sou eu que me faço acontecer as coisas. boas e más. faço concessões gratuitas e não cobro fantasias a ninguém. se me entrego fico sem mim. se não me entrego não sei que utilidade me dar. é este o dilema nos dias que nascem sob o signo da renúncia.

respiro. as horas feitas do ar e da água não se sustentam na espera de nada. escorrem-me das mãos. espoliam-me do desejo. alimentam a minha distracção. ausentam-se. respiro. às vezes acordo do avesso. e recomeço ao contrário. o que eu quero acontece-me sempre quando já não quero. o sabor amargo da recusa confirma que o desejo esgotou o prazo. como se a emoção se tivesse esgaçado num estiramento levado ao extremo. esvazio-me como um balão que perde o volume aparente. e fico neutra. como uma estátua de sal. enquanto me descentro do ruído em volta ocorre-me que o amor é a única energia.

parece límpido o céu das palavras. mas só parece. o discurso fragmentado é arbitrário. escavo palavras. aos soluços. sem antes nem depois. uso rascunhos. que rasuro e rasuro e rasuro. basta uma só palavra para desafinar um texto inteiro. ou envenenar uma deixa subtil. suja-se o poema. eu que sou uma surda selectiva tenho um excelente ouvido para estas palavras de sentido alternado. sejam elas ditas ou não ditas.
.
por mim gosto das palavras tensas. quase a quebrar. onde o chão se acaba. só assim o ressalto na pele. o sobressalto do coração.



Maria José Quintela...porque a Literatura Contemporânea em Portugal " dá um banho" na pobre Literatura brasileira. MJQ é ímpar.

sábado, 10 de outubro de 2009

A partida.



Hoje, revendo minhas atitudes quando vim embora, reconheço que mudei bastante. Verifico também que estava aflito e que havia um fundo de mágoa ou desespero em minha impaciência. Eu queria deixar minha casa, minha avó e seus cuidados. Estava farto de chegar a horas certas, de ouvir reclamações; de ser vigiado, contemplado, querido. Sim, também a afeição de minha avó incomodava-me. Era quase palpável, quase como um objeto, uma túnica, um paletó justo que eu não pudesse despir.

Ela vivia a comprar-me remédios, a censurar minha falta de modos, a olhar-me, a repetir conselhos que eu já sabia de cor. Era boa demais, intoleravelmente boa e amorosa e justa.
Na véspera da viagem, enquanto eu a ajudava a arrumar as coisas na maleta, pensava que no dia seguinte estaria livre e imaginava o amplo mundo no qual iria desafogar-me: passeios, domingos sem missa, trabalho em vez de livros, mulheres nas praias, caras novas. Como tudo era fascinante! Que viesse logo. Que as horas corressem e eu me encontrasse imediatamente na posse de todos esses bens que me aguardavam. Que as horas voassem, voassem!

Percebi que minha avó não me olhava. A princípio, achei inexplicável ela fizesse isso, pois costumava fitar-me, longamente, com uma ternura que incomodava. Tive raiva do que me parecia um capricho e, como represália, fui para a cama.

Deixei a luz acesa. Sentia não sei que prazer em contar as vigas do teto, em olhar para a lâmpada. Desejava que nenhuma dessas coisas me afetasse e irritava-me por começar a entender que não conseguiria afastar-me delas sem emoção.

Minha avó fechara a maleta e agora se movia, devagar, calada, fiel ao seu hábito de fazer arrumações tardias. A quietude da casa parecia triste e ficava mais nítida com os poucos ruídos aos quais me fixava: manso arrastar de chinelos, cuidadoso abrir e lento fechar de gavetas, o tique-taque do relógio, tilintar de talheres, de xícaras.

Por fim, ela veio ao meu quarto, curvou-se:

— Acordado?

Apanhou o lençol e ia cobrir-me (gostava disto, ainda hoje o faz quando a visito); mas pretextei calor, beijei sua mão enrugada e, antes que ela saísse, dei-lhe as costas.
Não consegui dormir. Continuava preso a outros rumores. E quando estes se esvaíam, indistintas imagens me acossavam. Edifícios imensos, opressivos, barulho de trens, luzes, tudo a afligir-me, persistente, desagradável — imagens de febre.

Sentei-me na cama, as têmporas batendo, o coração inchado, retendo uma alegria dolorosa, que mais parecia um anúncio de morte. As horas passavam, cantavam grilos, minha avó tossia e voltava-se no leito, as molas duras rangiam ao peso de seu corpo. A tosse passou, emudeceram as molas; ficaram só os grilos e os relógios. Deitei-me.

Passava de meia-noite quando a velha cama gemeu: minha avó levantava-se. Abriu de leve a porta de seu quarto, sempre de leve entrou no meu, veio chegando e ficou de pé junto a mim. Com que finalidade? — perguntava eu. Cobrir-me ainda? Repetir-me conselhos? Ouvi-a então soluçar e quase fui sacudido por um acesso de raiva. Ela estava olhando para mim e chorando como se eu fosse um cadáver — pensei. Mas eu não me parecia em nada com um morto, senão no estar deitado. Estava vivo, bem vivo, não ia morrer. Sentia-me a ponto de gritar. Que me deixasse em paz e fosse chorar longe, na sala, na cozinha, no quintal, mas longe de mim. Eu não estava morto.

Afinal, ela beijou-me a fronte e se afastou, abafando os soluços. Eu crispei as mãos nas grades de ferro da cama, sobre as quais apoiei a testa ardente. E adormeci.

Acordei pela madrugada. A princípio com tranqüilidade, e logo com obstinação, quis novamente dormir. Inútil, o sono esgotara-se. Com precaução, acendi um fósforo: passava das três. Restavam-me, portanto, menos de duas horas, pois o trem chegaria às cinco. Veio-me então o desejo de não passar nem uma hora mais naquela casa. Partir, sem dizer nada, deixar quanto antes minhas cadeias de disciplina e de amor.

Com receio de fazer barulho, dirigi-me à cozinha, lavei o rosto, os dentes, penteei-me e, voltando ao meu quarto, vesti-me. Calcei os sapatos, sentei-me um instante à beira da cama. Minha avó continuava dormindo. Deveria fugir ou falar com ela? Ora, algumas palavras... Que me custava acordá-la, dizer-lhe adeus?

Ela estava encolhida, pequenina, envolta numa coberta escura. Toquei-lhe no ombro, ela se moveu, descobriu-se. Quis levantar-se e eu procurei detê-la. Não era preciso, eu tomaria um café na estação. Esquecera de falar com um colega e, se fosse esperar, talvez não houvesse mais tempo. Ainda assim, levantou-se. Ralhava comigo por não tê-la despertado antes, acusava-se de ter dormido muito. Tentava sorrir.

Não sei por que motivo, retardei ainda a partida. Andei pela casa, cabisbaixo, à procura de objetos imaginários enquanto ela me seguia, abrigada em sua coberta. Eu sabia que desejava beijar-me, prender-se a mim, e à simples idéia desses gestos, estremeci. Como seria se, na hora do adeus, ela chorasse?

Enfim, beijei sua mão, bati-lhe de leve na cabeça. Creio mesmo que lhe surpreendi um gesto de aproximação, decerto na esperança de um abraço final. Esquivei-me, apanhei a maleta e, ao fazê-lo, lancei um rápido olhar para a mesa (cuidadosamente posta para dois, com a humilde louça dos grandes dias e a velha toalha branca, bordada, que só se usava em nossos aniversários.


Osman Lins

(Um texto tristíssimo, pungente... lindo. Consegui visualizar cada centímetro desse conto e confesso que chorei.Palavras em pura emoção!)

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Por que os jovens não devem ler.




Calma, prezado leitor, nem você leu errado, nem eu pirei de vez. Este artigo pretende isso mesmo: dar novos motivos para que moços e moças continuem lendo apenas o suficiente para não bombar na escola. E continuem vendo a leitura como algo completamente estapafúrdio, irrelevante, anacrônico, e permaneçam habitando o universo ágrafo dos hedonistas incensados nos realitys shows.

(Êpa, acho que exagerei. Afinal, quem não lê muito dificilmente vai conseguir compreender esta última frase. Desculpem aí, manos. Eu quis dizer que hoje os carinhas precisam de dicionário pra entender gibi da Monica, na onda dos sarados e popozudas que vêem na telinha, e que vou dar uma força pra essa parada aí).

Eu explico mais ainda: é que, aproveitando o gancho da Bienal do Livro pensei em escrever sobre a importância da leitura. Algo leve mas suficiente para despertar em meia dúzia de jovens o gosto pela leitura. De que? De tudo! De jornais a livros de filosofia; de bulas de remédio a conselhos religiosos; de revistas a tratados de física quântica; de autores clássicos a paulos coelhos. Daí aconteceram três coisas que me fizeram mudar de rumo e de idéia.

Primeiro eu li que fizeram, alguns meses atrás, um teste de leitura com estudantes do ensino fundamental de uma dezena de vários países. Era para avaliar se eles entendiam de verdade o que estavam lendo. Adivinhem quem tirou o último lugar, até mesmo atrás de paizinhos miseráveis e perdidos no mapa mundi? Acertou, bródi: o nosso Brasil.

Logo depois, li uma notícia boa que, na verdade, é ruim. O (des)governo de São Paulo anuncia maior número de crianças na escola. Mas adotou a política da não reprovação. Traduzindo: neguinho passa de ano, sim, mas continua tecnicamente analfabeto. Porque ler sem raciocinar é como preencher cheque sem saber quanto se tem no banco.

E, por último, li em pesquisa publicada no O Estado de São Paulo, de 15 de março, que para 56% dos brasileiros entre 18 e 25 anos comprar mais significa mais felicidade, pouco se importando com problemas ambientais e sociais do consumo desenfreado. Ou seja, o jovem brasileirinho gosta de comprar muitas latinhas de cerveja, toma "todas" e joga todas nas ruas ou nas estradas, sem remorso. Viram como ler atrapalha?

A gente fica sabendo de fatos que, se não soubesse, teria mais tempo para curtir o próprio umbigo numa boa, sem ficar indignado e preocupado com a situação atual de boa parte de nossa juventude. E também faz o tico e o teco (nossos dois neurônios que ainda funcionam no cérebro, já que se dividirmos o quociente de inteligência nacional pelo número de habitantes não deve sobrar mais que isso per capita) malharem e suarem, em vez de ficarmos admirando o crescimento do muque e endurecimento dos glúteos no espelho das academias.

Por isso que, num momento de desalento, decidi que de agora em diante, como escritor e professor, nunca mais vou recomendar a ninguém que leia mais, que abra livros para abrir a cabeça. A realidade é brutal e desmentiria em seguida qualquer motivo que eu desse para um jovem tupiniquim trocar a alienação pela leitura.

Eu reconheço: a maioria está certa em não ler. E tem, no mínimo, 5 razões poderosas, maiores e melhores que meus frágeis argumentos:

1. Se ler, vai querer participar como cidadão dos destinos do País. Não vale à pena o esforço. Como disse o Lula (que não teve muita escola, mas sempre leu pra caramba), a juventude não gosta de política, mas os políticos adoram. Por isso que eles mandam e desmandam há séculos;
2. Se ler, vai saber que estão mentindo e matando montes de jovens todos os dias em todos os lugares do Brasil impunemente; principalmente porque esses jovens não percebem nem têm como saber (a não ser lendo) a tremenda cilada que é acreditar que bacana é mentir e matar também;
3. Se ler, vai acordar um dia e se perguntar que diabo é isso que anda acontecendo neste lugar, onde só ladrões, corruptos, prostitutas e ignorantes, aparecem na mídia;
4. Se ler, vai ficar mais humano e, horror dos horrores, é até capaz de sentir vontade de se engajar num trabalho comunitário, voluntário e parar de ser egoísta;
5. Se ler, vai comparar opiniões, acontecimentos, impressões e emoções e acabar descobrindo que sua vida andava meio torta, meio gado feliz.

O espaço está acabando e me deu vontade de lembrar que ninguém -nem mesmo alguém que não vê utilidade na leitura - pode achar que há um belo futuro aguardando uma juventude que vai de revólver pra escola e, lá, absorve não conhecimentos mas um baseado ou uma carreirinha maneira. Sim, é outra matéria que li, dando conta que virou moda entre os jovens estudantes irem armados à escola, encherem a cara a partir dos 13 anos e intimidarem fisicamente os professores.

Mas paro por aqui já que, apesar destes tristes tempos verdes e amarelos (as cores do vômito, papito), lembro também de tantos poetas, jornalistas e escritores que, ao longo de minha vida de leitor apaixonado, me deram toques de esperança, força e fé na mudança. De um especialmente - o poeta Tiago de Melo - com seu verso comovido e repleto de coragem:

"Faz escuro, mas eu canto!"

Talvez meu pequeno cantar sirva de guia do homem (e mulher) de amanhã. E que, lendo mais, ele/ela evite ter como única alternativa para mudar de vida dar a bunda (e a alma) ou engolir baratas (e a dignidade) diante das câmeras de televisão.

Por Ulisses Tavares (13/09/2002)

Ulisses Tavares sempre leu muito. Não ficou rico com isso. Mas deixou de ser pobre de espírito rapidinho.

Texto profundo que merece séria reflexão.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

...a vida é “muito” para ser insignificante.


Já perdoei erros quase imperdoáveis,
tentei substituir pessoas insubstituíveis
e esquecer pessoas inesquecíveis.

Já fiz coisas por impulso,
já me decepcionei com pessoas quando nunca pensei me decepcionar,
mas também decepcionei alguém.

Já abracei para proteger,
já dei risada quando não podia,
fiz amigos eternos,
amei e fui amado,
mas também já fui rejeitado,
fui amado e não amei.

Já gritei e pulei de tanta felicidade,
já vivi de amor e fiz juras eternas,
“quebrei a cara muitas vezes”!
Já chorei ouvindo música e vendo fotos,
já liguei só para escutar uma voz,
me apaixonei por um sorriso,
já pensei que fosse morrer de tanta saudade
e tive medo de perder alguém especial (e acabei perdendo).

Mas vivi, e ainda vivo!
Não passo pela vida…
E você também não deveria passar!

Viva!
Bom mesmo é ir à luta com determinação,
abraçar a vida com paixão,
perder com classe
e vencer com ousadia,
porque o mundo pertence a quem se atreve
e a vida é “muito” pra ser insignificante.


Charles Chaplin

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Sei que sou teu.




Se me esfolassem agora
encontrariam o teu nome
colado num dos meus ossos.

De mim continuariam a nada entender.
Quanto a mim, sei que sou teu.

Manuel Cintra

domingo, 4 de outubro de 2009

Roda Viva.




Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá
Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá
Roda mundo...

A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua, a cantar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a viola pra lá
Roda mundo...

O samba, a viola, a roseira
Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou

No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a saudade pra lá
Roda mundo...


(Chico Buarque)
Se eu tivesse talento e competência para tanto , hoje, eu estaria escrevendo essa letra e essa música, sem dúvida.