domingo, 29 de junho de 2008

Vou, sou, nao sei bem...



Cada peso da palavra me magoa.Rompe-me os silêncios por entre as memórias e as viagens.Tudo é rouquidão, cansaço, inquietação que atordoa os secretos trilhos de todas as passagens
Vou, sou, não sei bem.
Caio, grito, talvez demais.Choro, sonho, tudo tem os pedaços de terra por onde vais.
Tudo é fogo, ardente caminhar.
Vertigem, retalhos, suor em sargaço.Que de tanto eu ser rio e ser mar, morro, renasço em tudo o que faço.

Lindo. (Pedro Branco 6/27/2008 )

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Aninha e suas pedras



Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.

Cora Coralina (Outubro, 1981)

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Há dias...



“Há dias em que a melancolia chove dentro de nós como num pátio interior, atapetado de jornais velhos. Não se ouve, não se sente - mas rebrilha na sujidade densa. Eu estava num desses dias quando afastei a cortina e olhei pela janela a tarde que se ofuscara de repente, com pressa de se evadir da atmosfera enfastiada e, sobretudo, de um cenário sem alegria…”. (…)

“Mas em fechando a cortina tudo isso desaparecia: eis-me de novo isolado no gabinete fofo, de paredes que, a partir de certo momento, me davam a sensação irrespirável de uma espessura acolchoada onde tudo ficava retido: a fadiga, o silêncio…"


Fernando Namora - Retalhos da Vida de Um Médico

terça-feira, 3 de junho de 2008

Não foi há muito tempo que nasci...



«Saboreei por muito tempo a minha vida perdida; pensei com alegria que a minha juventude tinha passado, porque é uma alegria sentir o frio invadir-nos o coração, e poder dizer, tateando-o com uma mão, como uma lareira que ainda fumega: já não queima. Lentamente fui recordando todas as coisas da minha vida, ideias, paixões, dias de cólera, dias de luto, latejos de esperança, tormentos de angústia. Revi tudo, como um homem que visita as catacumbas e contempla lentamente, dos dois lados, os mortos alinhados uns a seguir aos outros.

Todavia, se contar os anos, não foi há muito tempo que nasci, mas tenho inúmeras recordações que me oprimem, como os velhos são oprimidos por todos os dias que viveram; às vezes, parece-me que já vivo há séculos, e que o meu ser contém os restos de mil existências passadas. Por quê? Amei? Odiei? Procurei alguma coisa? Ainda duvido; vivi à margem de todo o movimento, de toda a ação, sem me mexer, nem pela glória, nem pelo prazer, nem pela ciência, nem pelo dinheiro.
Ninguém, nem aqueles que me viam todos os dias, nem os outros, soube alguma coisa do que vai seguir-se…»


Novembro, de Gustave Flaubert

domingo, 1 de junho de 2008

Escreve...não te deixes vencer.




«As pessoas nem poderiam calcular que dor era aquela. Às vezes, ah, quão perto lhe parecia estar do alvo. Quão perto do instante do combate. E então, curiosamente, sentia-se, ou julgava sentir-se, como os pugilistas. Era assim: os dedos das mãos pediam exercício, pediam uso, até pediam violência. E punha-se a esticá-los e a flecti-los, ou a bater com a mão fechada na concavidade da outra mão, como se estivesse nas vésperas de subir ao ring para uma disputa decisiva, contra um último e impiedoso adversário.
Corria à mesa de trabalho, afastava os papéis intrusos – perante si apenas a tal dúzia de folhas impecáveis que queriam ser violadas. Vamos a isto, André. Insiste, André. Chora de raiva, se for preciso. Escreve uma vez, outra, mais outra, emenda, rasga, destrói, recomeça – não te deixes vencer. Isto é um combate, André, o teu combate. Sobe ao ring para te medires com o mais duro dos adversários – tu próprio, desencantado e incrédulo.»

O Rio Triste, de Fernando Namora