sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Súplica.



Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

Miguel Torga

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Fragmentos...



Passei a vida ( longa?...curta?...) lendo e escrevendo.Muito de mim foi para o papel que se tornou íntimo e pessoal. No entanto, o que é tão fácil no cotidiano,em agendas e papéis quaisquer, torna-se uma árdua tarefa em um blog. Por quê?

Talvez as pessoas que compartilhem comigo desse espaço, diante dos textos selecionados possam entender esse bloqueio . Acho que criei esse blog não para meus devaneios, mas para congregar autores e textos que admiro e dos quais tenho me nutrido.A cada vez que os releio tenho uma sensação de descoberta, de novidade, de prazer, de alegria de ter podido conviver com palavras que se encontraram e se harmonizaram.Passo momentos intermináveis colocando-me no momento dessas criações e me maravilho que tenham existido.

Nessa travessia não consegui, nem de longe, beirar o talento para escrever de modo tão profundo , encontrar e encantar platéia que pudesse reconhecer anseios e beleza, porque me declaro incapaz de fazê-lo.Felizmente, muitos são os escolhidos e premiados que, com uma sensibilidade rara ,transformaram minha vida e minha alma nesse eterno... desassossego.

Gizelda/21/02/2007

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

João e Maria



Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy era você além das outras três
Eu enfrentava os batalhões, os alemães e seus canhões
Guardava o meu bodoque e ensaiava o rock para as matinês

Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei a gente era obrigado a ser feliz
E você era a princesa que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país

Não, não fuja não
Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu pião, o seu bicho preferido
Vem, me dê a mão, a gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido

Agora era fatal que o faz-de-conta terminasse assim
Pra lá desse quintal era uma noite que não tem mais fim
Pois você sumiu no mundo sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar

O que é que a vida vai fazer de mim?


Chico Buarque
Composição: Chico Buarque/ Sivuca

domingo, 18 de fevereiro de 2007

Canção das mulheres.



Que o outro saiba quando estou com medo, e me tome nos braços sem fazer perguntas demais.

Que o outro note quando preciso de silêncio e não vá embora batendo a porta, mas entenda que não o amarei menos porque estou quieta.

Que o outro aceite que me preocupo com ele e não se irrite com minha solicitude, e se ela for excessiva saiba me dizer isso com delicadeza ou bom humor.

Que o outro perceba minha fragilidade e não ria de mim, nem se aproveite disso.

Que se eu faço uma bobagem o outro goste um pouco mais de mim, porque também preciso poder fazer tolices tantas vezes.

Que se estou apenas cansada o outro não pense logo que estou nervosa, ou doente, ou agressiva, nem diga que reclamo demais.

Que o outro sinta quanto me dói a idéia da perda, e ouse ficar comigo um pouco - em lugar de voltar logo à sua vida.

Que se estou numa fase ruim o outro seja meu cúmplice, mas sem fazer alarde nem dizendo 'Olha que estou tendo muita paciência com você!'

Que quando sem querer eu digo uma coisa bem inadequada diante de mais pessoas, o outro não me exponha nem me ridicularize.

Que se eventualmente perco a paciência, perco a graça e perco a compostura, o outro ainda assim me ache linda e me admire.

Que o outro não me considere sempre disponível, sempre necessariamente compreensiva, mas me aceite quando não estou podendo ser nada disso.

Que, finalmente, o outro entenda que mesmo se às vezes me esforço, não sou, nem devo ser a mulher-maravilha, mas apenas uma pessoa: vulnerável e forte, incapaz e gloriosa, assustada e audaciosa - uma mulher.

Crônica de Lya Luft
Pensar é Transgredir /Editora Record, 2004.

sábado, 17 de fevereiro de 2007

Ameixas em calda com chantilly...




A maioria das minhas lembranças não são filmes, nem músicas: são cheiros e sabores.

Não me recordo quando foi que meu pai me prometeu que me levaria a S.Paulo. Pelas minhas contas, hoje, pareceria impossível, porque meu cérebro infantil não conseguia contabilizar a distancia entre o lugarejo em que morávamos e a capital.Mas, se era uma promessa, eu , um dia, iria lá, com certeza.

Quantos anos eu tinha? 10? Não sei.A promessa se cumpriu.Viajamos á noite e chegamos de manhãzinha.Enquanto eu guardava a visão da cidade, absorvendo aquela paisagem inusitada, não sobrava memória para nada mais.

Foi um grande dia...Cinzento, enevoado, e da janelinha do vagão restaurante do trem o que me descortinava era algo muito além das minhas expectativas.

São Paulo me chegou, pela primeira vez, como algo que nunca acabava, poderosa,maior do que cabia na minha imaginação.Tudo era novo e o burburinho de pessoas – de onde vinham tantas ? - me deixava atônita.

Entretanto, a impressão definitiva aconteceu quando fui levada ao “ Restaurante Leão”.Que rua era aquela? Avenida São João...um prédio sisudo, ambiente escuro de mesas com toalhas imaculadamente brancas, tilintar de copos e talheres.

Lembro-me tão bem!Se me pusessem nele , ainda hoje, 50 anos depois, eu seria capaz de parar naquela mesa, bem no meio, encostada numa pilastra quadrada e escura. O cardápio, a escolha por “Tutu à mineira” e então, ela...a sobremesa, irresistível : ameixas em calda com chantilly!

A cada bocado , eu tinha certeza de que não queria que aquilo acabasse. Mas , como tudo, acabou. Meu pai também se acabou... Entretanto, quando me lembro dele em 49 anos convivendo juntos,sinto que esse foi o momento de maior proximidade entre nós dois. Cumplicidade silenciosa e encantada na hora do almoço.

Em minha geladeira nunca faltam ameixas em calda, mesmo que eu não as consuma.Porém aquele gosto nunca mais...

Descobri assim que o que eu sempre busquei não era a sobremesa, mas o sabor da presença do meu pai...Este ficou para sempre, atrelado à imagem de São Paulo, mesmo que eu nunca mais coma ameixas em calda com chantilly...

Gizelda/02/04/2003

domingo, 11 de fevereiro de 2007

Pastelaria.


Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir
de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Nobilíssima Visão (1945-1946), in burlescas, teóricas e sentimentais (1972)
Mário Cesariny de Vasconcelos

domingo, 4 de fevereiro de 2007

As Palavras.



São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam;
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugênio de Andrade em Coração do Dia (1958)