sábado, 30 de junho de 2007

O poema




O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Como rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo

Sohia de Mello B.Andresen /Livro Sexto (1962)

terça-feira, 12 de junho de 2007

Ser feliz é...




Ser feliz é, afinal, não esperar muito da felicidade, ser feliz é ser simples, desambicioso, é saber dosar as aspirações até àquela medida que põe o que se deseja ao nosso alcance.

Tolstoi salienta-nos que Pedro, após essa vivência, apreendera, não pela razão mas por todo o seu ser, que o homem nasceu para a felicidade e que todo o mal provém não da privação mas do supérfluo, e que, enfim, não há grandeza onde não haja verdade e desapego pelo efémero. Isto, aliás, nos é repetido por outra figura de Tolstoi, a princesa Maria, ao acautelar-nos com esta síntese desoladora: «Todos lutam, sofrem e se angustiam, todos corrompem a alma para atingir bens fugazes».

Fernando Namora, in 'Sentados na Relva'

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Teu vulto leve ao fundo do passado...



Teu vulto leve ao fundo do passado,
Volve-me às vezes um olhar magoado
Que lembra o luar, por entre névoas finas.
Ainda tenho no espelho das retinas
O parque familiar, e os velhos bancos
Onde a vida juntou em dias vãos,
às tuas lindas mãos as minhas mãos.

Onde estás , minha doce companheira?
Como a rosa que tomba da roseira,
A hora tomba no espaço, sem rumor...
Longe murmura a trompa do pastor,
Pela tarde que morre, lentamente.
E o poente é como aquele mesmo poente
Que a terra toda encheu de um sonho triste
Quando sombra, entre sombras, me fugiste!

Ficaste numa curva do passado...
Como dói recordar o tempo andado
Nas manhãs de ilusão, nas noites calmas
Como um pálido sol num céu de outono.
Um gesto, um longo gesto de abandono,
Um desconsolo, um pouco de saudade,
E nisto está toda a felicidade.

Sobre os campos , em seu vestido louro,
A primavera ri no seus botões de ouro,
Entre as ondas vermelhas das espigas
Voltam cantndo em bandos as raparigas.

E dentre a púrpura que envolve o ambiente
Vai surgindo aos meus olhos lentamente,
Como um rolo de incenso, no ar lavado,
Teu vulto leve ao fundo do passado...

Ronald de Carvalho

Preciosidade encontrada no meu album de recordações, escrita em 11 de agosto de 1960, por alguém que , hoje, é apenas " um vulto leve ao fundo do passado..."
Premonição?!...