domingo, 14 de janeiro de 2007

De Água-viva (excertos)



É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica. Porque ninguém me prende mais. Continuo com capacidade de raciocínio — já estudei matemática que é a loucura do raciocínio — mas agora quero o plasma — quero me alimentar diretamente da placenta. Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois o próximo instante é o desconhecido. O próximo instante é feito por mim? Ou se faz sozinho? Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma desenvoltura de toureiro na arena.

(...)

Fixo instantes súbitos que trazem em si a própria morte e outros nascem — fixo os instantes de metamorfose e é de terrível beleza a sua sequência e concomitância.

(...)

E se muitas vezes pinto grutas é que elas são o meu mergulho na terra, escuras mas nimbadas de claridade, e eu, sangue da natureza — grutas extravagantes e perigosas, talismã da Terra, onde se unem estalactites, fósseis e pedras, e onde os bichos que são doidos pela sua própria natureza maléfica procuram refúgio. As grutas são o meu inferno. Gruta sempre sonhadora com suas névoas, lembrança ou saudade? Espantosa, espantosa, esotérica, esverdeada pelo limo do tempo. Dentro da caverna obscura tremeluzem pendurados os ratos com asas em forma de cruz dos morcegos. Vejo aranhas penugentas e negras. Ratos e ratazanas correm espantados pelo chão e pelas paredes. Entre as pedras o escorpião. Caranguejos, iguais a eles mesmos desde a pré-história, através de mortes e nascimentos, parecem bestas ameaçadoras se fossem do tamanho de um homem. Baratas velhas se arrastam na penumbra. E tudo isso sou eu.

(...)

Como se arrancasse das profundezas da terra as nodosas raízes da árvore descomunal, é assim que te escrevo, e essas raízes como se fossem poderosos tentáculos como volumosos corpos nus de fortes mulheres envolvidas em serpentes e em carnais desejos de realização, e tudo isso é uma prece de missa negra, e um pedido rastejante de amém: porque aquilo que é ruim está desprotegido e precisa da anuência de Deus: eis a criação.

(...)

O que diz este jazz que é improviso? Diz braços enovelados em pernas e as chamas subindo e eu passiva como uma carne que é devorada pelo adunco agudo de uma águia que interrompe seu vôo cego. Expresso a mim e a ti com os meus desejos mais ocultos e consigo com as palavras uma orgíaca beleza confusa.

(...)

Não sei sobre o que estou escrevendo: sou obscura para mim mesma. Só tive inicialmente uma visão lunar e lúcida, e então prendi para mim o instante antes que ele morresse e que perpetuamente morre. Não é um recado de idéias que te transmito e sim uma instintiva volúpia daquilo que está escondido na natureza e que adivinho. E esta é uma festa de palavras. Escrevo em signos que são mais um gesto que voz. Tudo isso é o que me habituei a pintar mexendo na natureza íntima das coisas. (...) O mundo não tem ordem visível e eu só tenho a ordem da respiração. Deixo-me acontecer.

(...)

Equilíbrio perigoso, o meu, perigo de morte de alma. A noite de hoje me olha com entorpecimento, azinhavre e visgo. Quero dentro desta noite que é mais longe que a vida, quero, dentro desta noite, vida crua e sangrenta e cheia de saliva. Quero a seguinte palavra: esplendidez, esplendidez é a fruta na sua suculência, fruta sem tristeza. Quero lonjuras. Minha selvagem intuição de mim mesma. Mas o meu principal está sempre escondido. Sou implícita. E quando vou me explicitar perco a úmida intimidade.

De que cor é o infinito espacial? É da cor do ar.

Nós — diante do escândalo da morte.

Clarice Lispector

2 comentários:

  1. Amei seu blog, Gizelda... Todos os textos até agora são maravilhosos !Mas esse comentário chega a ser redundância em se tratando de você, afinal, você sempre souber escolher muito bem os textos para nos encantar nas aulas de literatura...!
    Beijos de sua ex-aluna, ex-tentativa-de-escritora (virei engenheira, fazer o quê...), mas sempre apaixonada pelos livros!

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  2. Poesia em prosa ...
    Gi,disse que viria! Minha alma está até mais quente agora.
    Um beijo !

    ps: estou vendo o blog desde lá de cima , e esse comentário é válido para todos os textos.

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