quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

Cíntia.




Linda. Cachos de ouro velho teimosamente caem sobre olhos de avelã , profundos, vivos, inquisidores.Neta, filha, pessoa, companheira de todas as horas. 4 anos e dez meses de puro deleite.

Sabida como ela só, enche de apreensão e alegria minha precária vida.Amo-a tanto que dói.Não sei viver sem esperá-la, sem seu beijo molhado, sem alegrá-la, sem chegar ao seu quarto, de mansinho, e vê-la ressonando abraçada ao seu “querido boi” , um cobertor rosa sujo e desbotado.

Veio ao mundo em uma hora inadequada em que tudo conspirava contra ela, desde as circunstâncias até a frágil saúde. E lutou bravamente para sobreviver , 35 dias na UTI. Conseguiu. Admiro-a, desde então.É uma vencedora.
Por ela e para ela tenho vivido. Talvez para compensar o que lhe foi reservado, muito diferente do que possuem crianças felizes de famílias estruturadas e cobradas pelas convenções.

Porém todas as histórias de fadas se nutrem de bruxas e sombras. E eu não sou Galaaz, Parsifal, nem Lancelot, nem mesmo uma avó com saúde e idade suficientes para enfrentar bruxas malvadas.Se for preciso, no entanto , buscarei forças onde elas existam para ajudá-la a cumprir seu destino.
Só quero que ela seja feliz dentro do possível e, para tanto, preciso me fortalecer para protegê-la até que tenha discernimento para escolher o caminho de sua travessia.

Cíntia, você é luz.É sol.É ouro.É mar.É céu.É azul... Te amo.

Vovó.
Valinhos,19 de abril de 2003.

domingo, 28 de janeiro de 2007

Amar!



Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui...além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente
Amar!Amar!E não amar ninguém!


Recordar?Esquecer?Indiferente!...
Prender ou desprender?É mal?É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!


Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!


E se um dia hei-de ser pó,cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...

Florbela Espanca

sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

AUSÊNCIA



Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.

Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

A Terceira Margem do Rio (excerto)

(...) amo os grandes rios, pois são pro fundos como a alma do homem.
Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas
são tranqüilos e escuros como os sofrimentos dos homens.
Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade.
Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade.
João Guimarães Rosa



Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.

Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.


(Meu Deus, como um homem consegue escrever assim? Lindo, lindo...)

segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

de O Vendedor de Passados.



Passa-se com alma algo semelhante ao que aontece à água: flui.Hoje está um rio.Amanhã estará mar.A água toma a forma do recipiente.Dentro de uma garrafa parece uma garrafa. Porém, não é uma garrafa.Eulálio será sempre Eulálio, quer encarne ( em carne) quer em peixe.Vem-me à memória a imagem em branco e preto de Martim Luther King discursando à multidão:eu tive um sonho. Ele deveria ter dito antes : eu fiz um sonho.

Há alguma diferença, pensando bem, entre ter um sonho ou fazer um sonho.

José Eduardo Agualusa

domingo, 21 de janeiro de 2007

Paixão.



“…o único afrodisíaco verdadeiramente infalível é o amor. Nada consegue deter a paixão acesa de duas pessoas apaixonadas. Neste caso não importam os achaques da existência, o furor dos anos, o envelhecimento físico ou a mesquinhez das oportunidades; os amantes dão um jeito de se amarem porque, por definição, esse é o seu destino.”


“Afrodite: Contos, Receitas e Outros Afrodisíacos”
Isabel Allende

sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

Uma oração.



Minha boca pronunciou e pronunciará, milhares de vezes e nos dois idiomas que me são íntimos, o pai-nosso, mas só em parte o entendo. Hoje de manhã, dia primeiro de julho de 1969, quero tentar uma oração que seja pessoal, não herdada. Sei que se trata de uma tarefa que exige uma sinceridade mais que humana. É evidente, em primeiro lugar, que me está vedado pedir.

Pedir que não anoiteçam meus olhos seria loucura; sei de milhares de pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias. O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que se rompa um elo dessa trama de ferro, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre.

Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não o ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar a coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo.

Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém repita uma cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu à meia-noite a árvore que sangra, a Cruz, e pense que pela primeira vez a ouviu de meus lábios.

O restante não me importa; espero que o esquecimento não demore. Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não nos serão revelados.

Quero morrer completamente; quero morrer com este companheiro, meu corpo.

Jorge Luis Borges

quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Recomeço.




Recomeça... se puderes, sem angústia e sem pressa e os passos que deres, nesse caminho duro do futuro, dá-os em liberdade, enquanto não alcances não descanses, de nenhum fruto queiras só metade."

Miguel Torga

terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Resíduo




De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco


Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).


Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.


Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.


Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.


Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.


Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?


Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.


De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.


E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.


Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 14 de janeiro de 2007

De Água-viva (excertos)



É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica. Porque ninguém me prende mais. Continuo com capacidade de raciocínio — já estudei matemática que é a loucura do raciocínio — mas agora quero o plasma — quero me alimentar diretamente da placenta. Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois o próximo instante é o desconhecido. O próximo instante é feito por mim? Ou se faz sozinho? Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma desenvoltura de toureiro na arena.

(...)

Fixo instantes súbitos que trazem em si a própria morte e outros nascem — fixo os instantes de metamorfose e é de terrível beleza a sua sequência e concomitância.

(...)

E se muitas vezes pinto grutas é que elas são o meu mergulho na terra, escuras mas nimbadas de claridade, e eu, sangue da natureza — grutas extravagantes e perigosas, talismã da Terra, onde se unem estalactites, fósseis e pedras, e onde os bichos que são doidos pela sua própria natureza maléfica procuram refúgio. As grutas são o meu inferno. Gruta sempre sonhadora com suas névoas, lembrança ou saudade? Espantosa, espantosa, esotérica, esverdeada pelo limo do tempo. Dentro da caverna obscura tremeluzem pendurados os ratos com asas em forma de cruz dos morcegos. Vejo aranhas penugentas e negras. Ratos e ratazanas correm espantados pelo chão e pelas paredes. Entre as pedras o escorpião. Caranguejos, iguais a eles mesmos desde a pré-história, através de mortes e nascimentos, parecem bestas ameaçadoras se fossem do tamanho de um homem. Baratas velhas se arrastam na penumbra. E tudo isso sou eu.

(...)

Como se arrancasse das profundezas da terra as nodosas raízes da árvore descomunal, é assim que te escrevo, e essas raízes como se fossem poderosos tentáculos como volumosos corpos nus de fortes mulheres envolvidas em serpentes e em carnais desejos de realização, e tudo isso é uma prece de missa negra, e um pedido rastejante de amém: porque aquilo que é ruim está desprotegido e precisa da anuência de Deus: eis a criação.

(...)

O que diz este jazz que é improviso? Diz braços enovelados em pernas e as chamas subindo e eu passiva como uma carne que é devorada pelo adunco agudo de uma águia que interrompe seu vôo cego. Expresso a mim e a ti com os meus desejos mais ocultos e consigo com as palavras uma orgíaca beleza confusa.

(...)

Não sei sobre o que estou escrevendo: sou obscura para mim mesma. Só tive inicialmente uma visão lunar e lúcida, e então prendi para mim o instante antes que ele morresse e que perpetuamente morre. Não é um recado de idéias que te transmito e sim uma instintiva volúpia daquilo que está escondido na natureza e que adivinho. E esta é uma festa de palavras. Escrevo em signos que são mais um gesto que voz. Tudo isso é o que me habituei a pintar mexendo na natureza íntima das coisas. (...) O mundo não tem ordem visível e eu só tenho a ordem da respiração. Deixo-me acontecer.

(...)

Equilíbrio perigoso, o meu, perigo de morte de alma. A noite de hoje me olha com entorpecimento, azinhavre e visgo. Quero dentro desta noite que é mais longe que a vida, quero, dentro desta noite, vida crua e sangrenta e cheia de saliva. Quero a seguinte palavra: esplendidez, esplendidez é a fruta na sua suculência, fruta sem tristeza. Quero lonjuras. Minha selvagem intuição de mim mesma. Mas o meu principal está sempre escondido. Sou implícita. E quando vou me explicitar perco a úmida intimidade.

De que cor é o infinito espacial? É da cor do ar.

Nós — diante do escândalo da morte.

Clarice Lispector

sábado, 13 de janeiro de 2007

Morre lentamente...


Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não encontra graça em si mesmo.
Morre lentamente quem destrói o seu amor-próprio, quem não se deixa ajudar, morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito, repetindo todos os dias os mesmos trajetos, quem não muda de marca, não se arrisca a vestir uma nova cor ou não conversa com quem não conhece.
Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru.
Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o negro sobre o branco e os pontos sobre os "is" em detrimento de um redemoinho de emoções, justamente as que resgatam o brilho dos olhos, sorrisos dos bocejos, corações aos tropeços e sentimentos.
Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho, quem não se permite pelo menos uma vez na vida a fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente, quem passa os dias queixando-se da sua má sorte ou da chuva incessante... Morre lentamente, quem abandona um projeto antes de iniciá-lo, não pergunta sobre um assunto que desconhece ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.
Evitemos a morte em doses suaves, recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior que o simples fato de respirar. Somente a perseverança fará com que conquistemos um estágio pleno de felicidade.

Pablo Neruda

sexta-feira, 12 de janeiro de 2007

Eclesiastes 3: 1-8


Para tudo há um tempo
Debaixo do céu há momento para tudo
E tempo certo para cada coisa
Tempo para nascer e tempo para morrer
Tempo para plantar
E tempo para arrancar a planta
Tempo para matar e tempo para curar
Tempo para destruir e tempo para construir
Tempo para chorar e tempo para rir
Tempo para gemer e tempo para bailar
Tempo para atirar pedras
E tempo para recolher pedras
Tempo para abraçar
E tempo para se separar
Tempo para procurar e tempo para perder
Tempo para guardar e tempo para jogar fora
Tempo para rasgar e tempo para costurar
Tempo para calar e tempo para falar
Tempo para amar e tempo para odiar
Tempo para guerra e tempo para paz.

Que proveito tira das suas fadigas aquele que trabalha?

Eu vi a tarefa que Deus impôs aos filhos dos homens para que dela se ocupem.

Todas as coisas que Deus fez, são boas a seu tempo. Até a eternidade colocou no coração deles, sem que nenhum ser humano possa compreender a obra divina do princípio ao fim.

Eu concluí que nada é melhor para o homem do que folgar e procurar a felicidade durante a sua vida.
Todo o homem que come e bebe e encontra felicidade no seu trabalho, tem aí um dom de Deus.»

Rei Salomão.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

Empadinhas Quentes...


Hummm...cheiro de empadinhas quentes na madrugada. Cheiro de Páscoa na casa da minha madrinha,cheiro de família, cheiro da minha infância.
Amanhece azul luminoso.É 12 de abril de 2003 .São 7.20hs em meu caminho para a escola.O sinal fecha.Olho o outdoor à minha frente, onde gigantescos ovos apregoam as delícias do chocolate, mas meu nariz respira lembranças distantes de empadinhas quentes de frango, na madrugada.
E de repente...já não é cheiro. É gosto.Gosto das lágrimas de sal, onde a lembrança me entra pela boca.
É Páscoa. O mesmo céu, o mesmo sol me levam a 1954.Faz muito tempo...
Mércia e eu na procissão da Ressurreição.A missa na manhã fresca,o ar de festa,manhã iluminada.
É muito cedo para comer empadas!Mas, resistir quem há-de? E outra procissão se inicia, agora diante de uma montanha de empadinhas quentes:Sr Egidio, sempre circunspecto e formal, Sr Ismael no seu amassadíssimo terno de linho ( seria branco sujo?!...)Tio Nené, Sr Nicola Padula, minhas tias Joana, Landa e Amália e minha madrinha, Nina, a responsável por aquela maravilha gastronômica.Ih! chegou D.Véia, D.Nitinha e D. Olinda, as vizinhas-comadres e a festa continua.
Porém, como é que eu, com apenas 10 anos, poderia saber que aquele bacião de empadas quentinhas, partilhadas entre amigos,em uma cozinha rústica, de telhas pretas, sem forro, ao pé de um fogão a lenha, era a felicidade?
Quantas coisas , sei agora,perdi por não saber naquele tempo." Onde estão todos eles?...Todos dormindo, dormindo profundamente!"
O sinal abriu e me encanto mais uma vez com a manhã de outono.Volto a 2003, sem saber exatamente o que faço ali, prá onde vou e porquê.Seco as lágrimas.O trabalho me espera.O sinal abre e devo seguir...
Dentro de mim ficou a sensação de reencontro com a minha vida. Sinto que ainda tenho raízes. Apesar de doer.
Não há mais cheiro de empadinhas quentes. Há sabor...Sabor salgado. E ele está na minha boca. Na minha saudade.

Campinas, 10 de abril de 2003

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