segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

...e para 2008... Esperança!



"Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E— ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA..."

Mário Quintana

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Seja bem vindo 2008!!!!



Um ano inteiro de nada... a impressão de ter patinado sem sair do lugar...e havia frente. Não cheguei lá. A sensação oca de ter estado sem estar, sonhado sem realizar, esperado sem produzir.Será mesmo que foi assim? Ou será apenas um estado de espírito ?
E o ano se foi...

Mas outro virá. Carregadinho de promessas e surpresas, algumas boas, outras nem tanto.Não importa.Enquanto houver tempo sempre haverá a satisfação serena ( serena?!!!)de estar viva.

Que venha 2008, trazendo em suas asas chances de realizações!

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

!?...




Verdes e vermelhos...ouro e prata. Perfume de festa no ar...por que , então, meu coração teima tanto em estar tão triste?
Onde foi parar a alegria descompromissada de simplesmente sorrir...de sentir no fundo das alma a inefável sensação de leveza?

Onde foi que me perdi de mim?!...

sábado, 8 de dezembro de 2007

sábado, 1 de dezembro de 2007

Obrigada...



Mais uma vez sua ajuda em minha vida. Obrigada sempre!

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

sábado, 15 de setembro de 2007

Não sei...



Não sei o que quero ou o que não quero.

Deixei de saber querer, de saber como se quer, de saber as emoções ou os pensamentos com que ordinariamente se conhece que estamos querendo, ou querendo querer.

Não sei quem sou ou o que sou.

Como alguém soterrado sob um muro que se desmoronasse, jazo sob a vacuidade tombada do universo inteiro.

E assim vou, na esteira de mim mesmo, até que a noite entre e um pouco do afago de ser diferente ondule, como uma brisa, pelo começo da minha impaciência de mim."

Texto 184 -Livro do Desassossego -Bernardo Soares (F.P.)

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Até quando?



Há dias em que me sinto inconsistente, questionando tudo e todos como se nada tivesse muito sentido...
Porém, como lufadas de ar fresco acontecem manhãs como a de hoje, em que o azul e o amarelo são mais nítidos, têm perfume e, embora não respondam a minhas perguntas me dão a sensação de que o que eu quero está logo ali...tangível, sereno. È só questão de paciência. Saber esperar.

Mas, o que é que eu quero?!!!
E até quando?!...


PS. Hoje,há festa no céu...Pavarotti acabou de chegar.

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

INTERVALO





Antefalhei a vida, porque nem sonhando-a ela me pareceu deleitosa.
Chegou até mim o cansaço dos sonhos... Tive ao senti-lo uma sensação externa e falsa, como a de ter chegado ao término de uma estrada infinita. Transbordei de mim não sei para onde, e aí fiquei estagnado e inutil. Sou qualquer coisa que fui. Não me encontro onde me sinto e se me procuro, não sei quem é que me procura. Um tédio a tudo amolece-me. Sinto-me expulso da minha alma.

Assisto a mim. Presenceio-me. as minhas sensações passam diante de não sei que olhar meu como coisas externas. Aborreço-me de mim em tudo. Todas as coisas são, até às suas raízes de mistério, da cor do meu aborrecimento.

Estavam já murchas as flores que as Horas me entregaram. A minha única acção possível é i-las desfolhando lentamente. E isso é tão complexo de envelhecimentos!
A mínima acção é-me dolorosa como uma heroicidade. O mais pequeno gesto pesa-me no ideá-lo, como se fora uma coisa que eu realmente pensasse em fazer.
Não aspiro a nada. Dói-me a vida. Estou mal onde estou e já mal onde penso em poder estar.

O ideal era não ter mais acção do que a acção falsa de um repuxo - subir para cair no mesmo sítio, brilho ao sol sem utilidade nenhuma a fazer som no silêncio da noite para que quem sonhe pense em rios no seu sonho e sorria esquecidamente.

trecho 182, Livro do Desassossego, Bernardo Soares

sábado, 21 de julho de 2007

Nós...



Afinal o que eu sinto
é o sofrimento atroz
de muito tarde descobrir que nunca
falaremos em nós...

Eu, serei eu; - tu, serás tu,
e eternamente assim
nem nunca me terás como queres que eu seja
nem serás como eu quero que sejas pra mim...
Muito tarde... muito tarde...
-depois que assim te quero, e preciso de ti
como os pulmões de ar
ou os olhos de luz,
é que vou descobrir que se ficarmos juntos,
eu poderei te odiar, tu poderás me odiar!
- Quem diria afinal, ao que o amor se reduz?!

Estraguei tua vida e desgraçaste a minha
e fomos acordar, os dois, tarde demais...
Agora, eu sigo só,
tu, seguirás sozinha,
eu, fugindo, - covarde!...
a este amor que me espinha!
tu, querendo, - medrosa!...
inutilmente a paz!

E o que é estranho afinal, é que nós nos amamos,
e sentimos no entanto que nos separamos,
cada um com a sua sombra dolorosa a sós...
-conformados, na dor cruel nos convencemos.
de que nunca na vida, eu e tu... seremos
nós.

J.G.de Araujo Jorge in "Eterno Motivo"

A segunda "premonição"...em um caderno envelhecido , em uma data próxima da primeira(1961), escrito pela mesma pessoa , com uma letra que eu nunca esqueceria, mesmo que essas páginas tivessem deixado de existir.
Quase acredito que criou-se essa realidade ao projetá-la na escolha de versos.Destino? Desencontro? Na época , apenas poesia...hoje, uma dolorida-mas bonita- lembrança.

sábado, 30 de junho de 2007

O poema




O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Como rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo

Sohia de Mello B.Andresen /Livro Sexto (1962)

terça-feira, 12 de junho de 2007

Ser feliz é...




Ser feliz é, afinal, não esperar muito da felicidade, ser feliz é ser simples, desambicioso, é saber dosar as aspirações até àquela medida que põe o que se deseja ao nosso alcance.

Tolstoi salienta-nos que Pedro, após essa vivência, apreendera, não pela razão mas por todo o seu ser, que o homem nasceu para a felicidade e que todo o mal provém não da privação mas do supérfluo, e que, enfim, não há grandeza onde não haja verdade e desapego pelo efémero. Isto, aliás, nos é repetido por outra figura de Tolstoi, a princesa Maria, ao acautelar-nos com esta síntese desoladora: «Todos lutam, sofrem e se angustiam, todos corrompem a alma para atingir bens fugazes».

Fernando Namora, in 'Sentados na Relva'

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Teu vulto leve ao fundo do passado...



Teu vulto leve ao fundo do passado,
Volve-me às vezes um olhar magoado
Que lembra o luar, por entre névoas finas.
Ainda tenho no espelho das retinas
O parque familiar, e os velhos bancos
Onde a vida juntou em dias vãos,
às tuas lindas mãos as minhas mãos.

Onde estás , minha doce companheira?
Como a rosa que tomba da roseira,
A hora tomba no espaço, sem rumor...
Longe murmura a trompa do pastor,
Pela tarde que morre, lentamente.
E o poente é como aquele mesmo poente
Que a terra toda encheu de um sonho triste
Quando sombra, entre sombras, me fugiste!

Ficaste numa curva do passado...
Como dói recordar o tempo andado
Nas manhãs de ilusão, nas noites calmas
Como um pálido sol num céu de outono.
Um gesto, um longo gesto de abandono,
Um desconsolo, um pouco de saudade,
E nisto está toda a felicidade.

Sobre os campos , em seu vestido louro,
A primavera ri no seus botões de ouro,
Entre as ondas vermelhas das espigas
Voltam cantndo em bandos as raparigas.

E dentre a púrpura que envolve o ambiente
Vai surgindo aos meus olhos lentamente,
Como um rolo de incenso, no ar lavado,
Teu vulto leve ao fundo do passado...

Ronald de Carvalho

Preciosidade encontrada no meu album de recordações, escrita em 11 de agosto de 1960, por alguém que , hoje, é apenas " um vulto leve ao fundo do passado..."
Premonição?!...

terça-feira, 22 de maio de 2007

Chance à vida...



Pode ser difícil fazer algumas escolhas, mas muitas vezes isso é necessário, existe uma diferença muito grande entre conhecer o caminho e percorrê-lo.

Não procure querer conhecer seu futuro antes da hora, nem exagere em seu sofrimento, esperar é dar uma chance à vida para que ela coloque a pessoa certa em seu caminho.

"A tristeza pode ser intensa, mas jamais será eterna"

A felicidade pode demorar a chegar, mas o importante é que ela venha para ficar e não esteja apenas de passagem...

Luís Fernando Veríssimo

sexta-feira, 11 de maio de 2007

O passado não é irrevogável...



Não tenhas medo do passado. Se as pessoas te disserem que ele é irrevogável, não acredites nelas. O passado, o presente e o futuro não são mais do que um momento na perspectiva de Deus, a perspectiva na qual deveríamos tentar viver. O tempo e o espaço, a sucessão e a extensão, são meras condições acidentais do pensamento. A imaginação pode transcendê-las, e mais, numa esfera livre de existências ideais. Também as coisas são na sua essência aquilo em que decidimos torná-las. Uma coisa é segundo o modo como olhamos para ela.

Oscar Wilde, in 'De Profundis'

quinta-feira, 10 de maio de 2007

Apodrecidos...



"Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos"



Eugenio de Andrade.

sábado, 5 de maio de 2007

Felizes para sempre?!...



Antigamente todos os contos para crianças terminavam com a mesma frase, "e foram felizes para sempre", isto depois de o Príncipe casar com a Princesa e de terem muitos filhos.

Na vida, é claro, nenhum enredo remata assim. As Princesas casam com os guarda-costas, casam com os trapezistas, a vida continua, e os dois são infelizes até que se separam. Anos mais tarde, como todos nós, morrem.

Só somos felizes, verdadeiramente felizes, quando é para sempre, mas só as crianças habitam esse tempo no qual todas as coisas duram para sempre.

José Eduardo Agualusa, in 'O Vendedor de Passados'

quarta-feira, 2 de maio de 2007

Reler...



"Deve-se ler pouco e reler muito. Há uns poucos livros totais, três ou quatro, que nos salvam ou que nos perdem. É preciso relê-los, sempre e sempre, com obtusa pertinácia. E, no entanto, o leitor se desgasta, se esvai, em milhares de livros mais áridos do que três desertos."

Nelson Rodrigues

terça-feira, 1 de maio de 2007

A pergunta.



Só a nossa noção de tempo nos faz pensar em Juízo Final, quando é de justiça sumária que se trata.

O suicida é como o prisioneiro que, vendo armar-se uma forca no pátio, imagina que é para ele - foge de sua cela, à noite, desce ao pátio e pendura-se ao baraço.

Os mártires não menosprezam o corpo, apenas fazem-no pregar à cruz: é no que estão de acordo com seus adversários.

As portas são inumeráveis, a saída é uma só, mas as possibilidades de saída são tão numerosas quanto as portas. Há um propósito e nenhum caminho: o que denominamos caminho não passa de vacilação.

Os leopardos invadem o Templo e esvaziam os vasos sagrados... O fato não cessa de reproduzir-se; até que se chega a prever o momento exato e isso entra a fazer parte do ritual.

Os bons vão a passo certo; os outros, ignorando-os inteiramente, dançam à volta deles a coreografia da hora que passa.

Outrora eu não podia compreender que minhas perguntas não obtivessem resposta; hoje em dia não compreendo que jamais tivesse admitido a hipótese de formular perguntas... Bem, eu não acreditava então em coisa alguma - só fazia perguntar.


Franz Kafka

segunda-feira, 30 de abril de 2007

in Memórias de Adriano .


"Como toda gente, só disponho de três meios para avaliar a existência humana:

o estudo de nós próprios, o mais difícil e o mais perigoso, mas também o mais fecundo dos métodos;

a observação dos homens, que na maior parte dos casos fazem tudo para nos esconder os seus segredos ou de nos convencer que os têm;

os livros, com os erros particulares de perspectiva que nascem entre as suas linhas."

Marguerite Yourcenar

quinta-feira, 26 de abril de 2007

Amo os grandes rios...



(...) amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem.
Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas
são tranqüilos e escuros como os sofrimentos dos homens.
Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade.
Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade.

João Guimarães Rosa
Há possibilidade de conviver com a obra de Guimarães sem se contagiar?...Como terá sido ser Guimarães "povoado" por essa obra?

domingo, 22 de abril de 2007

Uma fresta para a liberdade...



Quando todas as possibilidades nos são tiradas, a menor das aberturas se transforma numa grande liberdade... De certa forma, os contos de fadas, ou os romances, nos dão a liberdade que a realidade nos nega."

Azar Nafisi, iraniana, professora de literatura, autora de "Lendo Lolita em Teerã".

terça-feira, 17 de abril de 2007

Canção da manhã feliz



Luminosa manhã Por que tanta luz?
Dá-me um pouco de céu
Mas não tanto azul

Dá-me um pouco de festa, não esta
Que é demais p'ro meu anseio
Ela veio, manhã .Você sabe, ela veio

Despertou-me chorando
E até me beijou
Eu abri a janela .E este sol entrou

De repente em minha vida
Já tão fria e sem desejo
Estes festejos .Esta emoção

Luminosa manhã
Tanto azul, tanta luz
É demais
Para o meu coração...

1962 - Haroldo Barbosa e Luiz Reis

É indescrítivel a beleza das manhãs de abril...

domingo, 15 de abril de 2007

Uma história para minha neta...



Era uma vez...uma floresta encantada, onde bichos falavam , o vento cantava e as flores sorriam.
Em uma manhã de céu azul, todos festejavam o sol, mais ainda as borboletas, menos mamãe Passarinho.Ela, muito quietinha no topo da árvore, chocava dois ovinhos com muito amor. Não via a hora de seus filhotinhos nascerem.

Naquela mesma tarde, escutou um barulhinho e ah! Que alegria : um ovinho quebrou –se e dele nasceu um ser muito pequenino. Ela ficou tão feliz que nem percebeu, na hora , que ali também nascera um problema: o outro ovinho ainda estava inteiro.Quando é que o segundo iria nascer? Percebeu logo que precisava dar comida ao recém-nascido e , portanto, sair para buscá-la.E o ovinho fechado?Como protegê-lo? Pensou, pensou ,pensou e achou uma saída:

-Filhinho...a mamãe está indo buscar comida e você vai tomar conta de seu irmãozinho. Fique em cima dele, proteja-o.
E voou...
Mas o pequeno era muito miudinho e não resistiu. Adormeceu. Assustado acordou com gritos estridentes da mãe, desesperada. O ovinho sumira.

Triste, triste, enquanto a mãe chorava, saiu à procura dele e não soube mais voltar. Durante dois dias inteiros escondeu-se como pode ao rés do chão e entre folhas secas e terra, encontrou –o inteiro, mas oh! Um buraquinho! O irmãozinho, com grande dificuldade, começava a nascer.

Assustado e feliz, juntou restos de árvores e criou um ninho para protegê-lo.Passou, então, por muito sofrimento, porque precisava devolvê-lo à mamãe para deixá-la feliz.O tempo era seu inimigo.

Todos os dias procurava comida, escondia-se com medo, mas foi, aos pouquinhos, aprendendo a voar.O irmãozinho foi ficando forte e ele sentia-se orgulhoso por estar cuidando dele.

Ensiná-lo a voar,então, foi uma aventura maravilhosa .Algum tempo depois , alçaram vôo , juntos.

Dona Passarinho cochilava, quando foi acordada por um pipilar fora do normal. Mas...o que via? Não podia ser? Será? Ah! Nem importava como ou porquê.
Estavam ali, os dois juntinhos. Seus dois filhotes.Ela abriu as asas e os acolheu.

E os três cantaram juntos pela primeira vez.
Na floresta, era primavera!

Para Cíntia, por quem –de novo- eu aprendi a voar...

Gizelda ,18 de abril de 2004

...e cai estrondosamente no chão, 9 anos depois. A pessoinha para que eu escrevi esse texto não existe mais.

06.10.2013

sexta-feira, 13 de abril de 2007

in Poemas Inconjuntos.



Quando tornar a vir a Primavera
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a Primavera nem sequer é uma cousa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo a flores tornam, ou as folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.

Gizelda / Impregnada de Alberto Caeiro :da alma aos ossos.
Semana pródiga em colheita...

quarta-feira, 4 de abril de 2007

Saudade.



Saudade é um pouco como fome.Só passa quando se come a presença. Mas, às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda.Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.


Clarice Lispctos in "Aprendendo a viver" ( crônicas)

sábado, 31 de março de 2007

Uma questão de escolha.



Estou só...

Minha parceira de vida – e de vôo - viajou nesse final de semana. Cíntia,8 anos e 9 meses de uma existência mágica tornaram -na o meu “vale a pena”. Fiquei vazia de vozes, de ruídos,de sorrisos, de beijos estalados, mas repleta de lembranças que teimam em permanecer.

Pairo sobre o que fui e que sou com um poder (?) oco de observar algo que não consigo explicar, nem mudar. Dói. E dói muito.

A consciência de que tudo, desde a primeira vez, não passou de uma escolha, torna-me perplexa e pequena.

Tenho e tive o que escolhi.Não mais. Não menos.

Ir por ali e não por aqui,os caminhos se abrindo (...ou se fechando?) na fluidez do tempo que não me permitiu voltar. Ou parar.

Não há balanço.Nem julgamento.Não sei o bem ou o mal. Não há estrutura emocional para avaliar estragos, nem para dosar sucesso, se algum houve.Do infinito luminoso a um escuro poço sem escada. Ou vice-e-versa.Apenas foi.É.

Minha escala de valores contabiliza dores e alegrias com a mesma profundidade. Irreversíveis. Quase não acredito que as vivi.

Sair de mim, ver-me assim é, paradoxalmente, um soco na boca do estômago com uma rosa entre os dentes...e dói.

Gizelda, 31/03/2007


( Só quando mergulho em Clarice Lispector consigo alguma coragem para falar sobre mim....)

sexta-feira, 30 de março de 2007

in "Coral"



Eu só quero silêncio neste porto
Do mar vermelho, do mar morto

Perdida, baloiçar
No ritmo das águas cheias

Quero ficar sozinha neste espanto
Dum tempo que perdeu a sua forma

Quero ficar sozinha nesta tarde
Em que as árvores verdes me abandonam.

Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 27 de março de 2007

A Alma Transforma-se em Sensações .


Eis um efeito que me será contestado, e que só apresento aos homens que, digamos, são bastante infelizes para terem amado com paixão durante longos anos, um amor contrariado por obstáculos invencíveis:

A vista de tudo o que é extremamente belo, tanto na natureza como nas artes, traz-nos a recordação do que amamos, com a rapidez de um relâmpago. É que, pelo processo do ramo de árvore guarnecido de diamantes da mina de Salzburgo, tudo o que no mundo é belo e sublime faz parte da beleza do que amamos, e esta visão imprevista da felicidade enche-nos os olhos de lágrimas num instante. É assim que o amor do belo e o amor se dão vida um ao outro.

Uma das infelicidades da vida é que a ventura de ver a quem amamos e de lhe falar não deixa recordações distintas. Aparentemente, a alma está demasiado perturbada pelas suas emoções para poder prestar atenção ao que as causa ou as acompanha. Transforma-se na própria sensação.

É talvez porque estes prazeres não se podem renovar sempre que queremos, por simples força de vontade, que se renovam com tanta força, desde que um objeto qualquer nos venha tirar da meditação consagrada à mulher que amamos, e lembrar-no-la mais vivamente por meio de uma nova sugestão (o perfume dela, por exemplo).

Stendhal, in 'Do Amor'

terça-feira, 20 de março de 2007

A Mais Feliz Das Criaturas




Quem foi generosamente dotado pela natureza (aqui a expressão cabe no seu sentido intrínseco) não necessita de mais nada do exterior além do tempo livre para poder usufruir a sua riqueza interior. Se isso lhe bastar, essa pessoa será realmente a mais feliz das criaturas. Assim como é certo que o eu está infinitamente mais próximo de nós que o não-eu, tudo o que é externo é e permanece não-eu. Somente o interior, a consciência e o seu estado constituem o eu, e é nele, exclusivamente, que residem o nosso bem-estar e o nosso mal-estar.

Arthur Schopenhauer in 'A Arte de Ser Feliz'

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Súplica.



Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

Miguel Torga

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Fragmentos...



Passei a vida ( longa?...curta?...) lendo e escrevendo.Muito de mim foi para o papel que se tornou íntimo e pessoal. No entanto, o que é tão fácil no cotidiano,em agendas e papéis quaisquer, torna-se uma árdua tarefa em um blog. Por quê?

Talvez as pessoas que compartilhem comigo desse espaço, diante dos textos selecionados possam entender esse bloqueio . Acho que criei esse blog não para meus devaneios, mas para congregar autores e textos que admiro e dos quais tenho me nutrido.A cada vez que os releio tenho uma sensação de descoberta, de novidade, de prazer, de alegria de ter podido conviver com palavras que se encontraram e se harmonizaram.Passo momentos intermináveis colocando-me no momento dessas criações e me maravilho que tenham existido.

Nessa travessia não consegui, nem de longe, beirar o talento para escrever de modo tão profundo , encontrar e encantar platéia que pudesse reconhecer anseios e beleza, porque me declaro incapaz de fazê-lo.Felizmente, muitos são os escolhidos e premiados que, com uma sensibilidade rara ,transformaram minha vida e minha alma nesse eterno... desassossego.

Gizelda/21/02/2007

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

João e Maria



Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy era você além das outras três
Eu enfrentava os batalhões, os alemães e seus canhões
Guardava o meu bodoque e ensaiava o rock para as matinês

Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei a gente era obrigado a ser feliz
E você era a princesa que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país

Não, não fuja não
Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu pião, o seu bicho preferido
Vem, me dê a mão, a gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido

Agora era fatal que o faz-de-conta terminasse assim
Pra lá desse quintal era uma noite que não tem mais fim
Pois você sumiu no mundo sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar

O que é que a vida vai fazer de mim?


Chico Buarque
Composição: Chico Buarque/ Sivuca

domingo, 18 de fevereiro de 2007

Canção das mulheres.



Que o outro saiba quando estou com medo, e me tome nos braços sem fazer perguntas demais.

Que o outro note quando preciso de silêncio e não vá embora batendo a porta, mas entenda que não o amarei menos porque estou quieta.

Que o outro aceite que me preocupo com ele e não se irrite com minha solicitude, e se ela for excessiva saiba me dizer isso com delicadeza ou bom humor.

Que o outro perceba minha fragilidade e não ria de mim, nem se aproveite disso.

Que se eu faço uma bobagem o outro goste um pouco mais de mim, porque também preciso poder fazer tolices tantas vezes.

Que se estou apenas cansada o outro não pense logo que estou nervosa, ou doente, ou agressiva, nem diga que reclamo demais.

Que o outro sinta quanto me dói a idéia da perda, e ouse ficar comigo um pouco - em lugar de voltar logo à sua vida.

Que se estou numa fase ruim o outro seja meu cúmplice, mas sem fazer alarde nem dizendo 'Olha que estou tendo muita paciência com você!'

Que quando sem querer eu digo uma coisa bem inadequada diante de mais pessoas, o outro não me exponha nem me ridicularize.

Que se eventualmente perco a paciência, perco a graça e perco a compostura, o outro ainda assim me ache linda e me admire.

Que o outro não me considere sempre disponível, sempre necessariamente compreensiva, mas me aceite quando não estou podendo ser nada disso.

Que, finalmente, o outro entenda que mesmo se às vezes me esforço, não sou, nem devo ser a mulher-maravilha, mas apenas uma pessoa: vulnerável e forte, incapaz e gloriosa, assustada e audaciosa - uma mulher.

Crônica de Lya Luft
Pensar é Transgredir /Editora Record, 2004.

sábado, 17 de fevereiro de 2007

Ameixas em calda com chantilly...




A maioria das minhas lembranças não são filmes, nem músicas: são cheiros e sabores.

Não me recordo quando foi que meu pai me prometeu que me levaria a S.Paulo. Pelas minhas contas, hoje, pareceria impossível, porque meu cérebro infantil não conseguia contabilizar a distancia entre o lugarejo em que morávamos e a capital.Mas, se era uma promessa, eu , um dia, iria lá, com certeza.

Quantos anos eu tinha? 10? Não sei.A promessa se cumpriu.Viajamos á noite e chegamos de manhãzinha.Enquanto eu guardava a visão da cidade, absorvendo aquela paisagem inusitada, não sobrava memória para nada mais.

Foi um grande dia...Cinzento, enevoado, e da janelinha do vagão restaurante do trem o que me descortinava era algo muito além das minhas expectativas.

São Paulo me chegou, pela primeira vez, como algo que nunca acabava, poderosa,maior do que cabia na minha imaginação.Tudo era novo e o burburinho de pessoas – de onde vinham tantas ? - me deixava atônita.

Entretanto, a impressão definitiva aconteceu quando fui levada ao “ Restaurante Leão”.Que rua era aquela? Avenida São João...um prédio sisudo, ambiente escuro de mesas com toalhas imaculadamente brancas, tilintar de copos e talheres.

Lembro-me tão bem!Se me pusessem nele , ainda hoje, 50 anos depois, eu seria capaz de parar naquela mesa, bem no meio, encostada numa pilastra quadrada e escura. O cardápio, a escolha por “Tutu à mineira” e então, ela...a sobremesa, irresistível : ameixas em calda com chantilly!

A cada bocado , eu tinha certeza de que não queria que aquilo acabasse. Mas , como tudo, acabou. Meu pai também se acabou... Entretanto, quando me lembro dele em 49 anos convivendo juntos,sinto que esse foi o momento de maior proximidade entre nós dois. Cumplicidade silenciosa e encantada na hora do almoço.

Em minha geladeira nunca faltam ameixas em calda, mesmo que eu não as consuma.Porém aquele gosto nunca mais...

Descobri assim que o que eu sempre busquei não era a sobremesa, mas o sabor da presença do meu pai...Este ficou para sempre, atrelado à imagem de São Paulo, mesmo que eu nunca mais coma ameixas em calda com chantilly...

Gizelda/02/04/2003

domingo, 11 de fevereiro de 2007

Pastelaria.


Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir
de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Nobilíssima Visão (1945-1946), in burlescas, teóricas e sentimentais (1972)
Mário Cesariny de Vasconcelos

domingo, 4 de fevereiro de 2007

As Palavras.



São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam;
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugênio de Andrade em Coração do Dia (1958)

quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

Cíntia.




Linda. Cachos de ouro velho teimosamente caem sobre olhos de avelã , profundos, vivos, inquisidores.Neta, filha, pessoa, companheira de todas as horas. 4 anos e dez meses de puro deleite.

Sabida como ela só, enche de apreensão e alegria minha precária vida.Amo-a tanto que dói.Não sei viver sem esperá-la, sem seu beijo molhado, sem alegrá-la, sem chegar ao seu quarto, de mansinho, e vê-la ressonando abraçada ao seu “querido boi” , um cobertor rosa sujo e desbotado.

Veio ao mundo em uma hora inadequada em que tudo conspirava contra ela, desde as circunstâncias até a frágil saúde. E lutou bravamente para sobreviver , 35 dias na UTI. Conseguiu. Admiro-a, desde então.É uma vencedora.
Por ela e para ela tenho vivido. Talvez para compensar o que lhe foi reservado, muito diferente do que possuem crianças felizes de famílias estruturadas e cobradas pelas convenções.

Porém todas as histórias de fadas se nutrem de bruxas e sombras. E eu não sou Galaaz, Parsifal, nem Lancelot, nem mesmo uma avó com saúde e idade suficientes para enfrentar bruxas malvadas.Se for preciso, no entanto , buscarei forças onde elas existam para ajudá-la a cumprir seu destino.
Só quero que ela seja feliz dentro do possível e, para tanto, preciso me fortalecer para protegê-la até que tenha discernimento para escolher o caminho de sua travessia.

Cíntia, você é luz.É sol.É ouro.É mar.É céu.É azul... Te amo.

Vovó.
Valinhos,19 de abril de 2003.

domingo, 28 de janeiro de 2007

Amar!



Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui...além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente
Amar!Amar!E não amar ninguém!


Recordar?Esquecer?Indiferente!...
Prender ou desprender?É mal?É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!


Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!


E se um dia hei-de ser pó,cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...

Florbela Espanca

sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

AUSÊNCIA



Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.

Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

A Terceira Margem do Rio (excerto)

(...) amo os grandes rios, pois são pro fundos como a alma do homem.
Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas
são tranqüilos e escuros como os sofrimentos dos homens.
Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade.
Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade.
João Guimarães Rosa



Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.

Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.


(Meu Deus, como um homem consegue escrever assim? Lindo, lindo...)

segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

de O Vendedor de Passados.



Passa-se com alma algo semelhante ao que aontece à água: flui.Hoje está um rio.Amanhã estará mar.A água toma a forma do recipiente.Dentro de uma garrafa parece uma garrafa. Porém, não é uma garrafa.Eulálio será sempre Eulálio, quer encarne ( em carne) quer em peixe.Vem-me à memória a imagem em branco e preto de Martim Luther King discursando à multidão:eu tive um sonho. Ele deveria ter dito antes : eu fiz um sonho.

Há alguma diferença, pensando bem, entre ter um sonho ou fazer um sonho.

José Eduardo Agualusa

domingo, 21 de janeiro de 2007

Paixão.



“…o único afrodisíaco verdadeiramente infalível é o amor. Nada consegue deter a paixão acesa de duas pessoas apaixonadas. Neste caso não importam os achaques da existência, o furor dos anos, o envelhecimento físico ou a mesquinhez das oportunidades; os amantes dão um jeito de se amarem porque, por definição, esse é o seu destino.”


“Afrodite: Contos, Receitas e Outros Afrodisíacos”
Isabel Allende

sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

Uma oração.



Minha boca pronunciou e pronunciará, milhares de vezes e nos dois idiomas que me são íntimos, o pai-nosso, mas só em parte o entendo. Hoje de manhã, dia primeiro de julho de 1969, quero tentar uma oração que seja pessoal, não herdada. Sei que se trata de uma tarefa que exige uma sinceridade mais que humana. É evidente, em primeiro lugar, que me está vedado pedir.

Pedir que não anoiteçam meus olhos seria loucura; sei de milhares de pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias. O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que se rompa um elo dessa trama de ferro, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre.

Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não o ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar a coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo.

Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém repita uma cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu à meia-noite a árvore que sangra, a Cruz, e pense que pela primeira vez a ouviu de meus lábios.

O restante não me importa; espero que o esquecimento não demore. Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não nos serão revelados.

Quero morrer completamente; quero morrer com este companheiro, meu corpo.

Jorge Luis Borges

quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Recomeço.




Recomeça... se puderes, sem angústia e sem pressa e os passos que deres, nesse caminho duro do futuro, dá-os em liberdade, enquanto não alcances não descanses, de nenhum fruto queiras só metade."

Miguel Torga

terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Resíduo




De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco


Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).


Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.


Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.


Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.


Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.


Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?


Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.


De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.


E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.


Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 14 de janeiro de 2007

De Água-viva (excertos)



É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica. Porque ninguém me prende mais. Continuo com capacidade de raciocínio — já estudei matemática que é a loucura do raciocínio — mas agora quero o plasma — quero me alimentar diretamente da placenta. Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois o próximo instante é o desconhecido. O próximo instante é feito por mim? Ou se faz sozinho? Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma desenvoltura de toureiro na arena.

(...)

Fixo instantes súbitos que trazem em si a própria morte e outros nascem — fixo os instantes de metamorfose e é de terrível beleza a sua sequência e concomitância.

(...)

E se muitas vezes pinto grutas é que elas são o meu mergulho na terra, escuras mas nimbadas de claridade, e eu, sangue da natureza — grutas extravagantes e perigosas, talismã da Terra, onde se unem estalactites, fósseis e pedras, e onde os bichos que são doidos pela sua própria natureza maléfica procuram refúgio. As grutas são o meu inferno. Gruta sempre sonhadora com suas névoas, lembrança ou saudade? Espantosa, espantosa, esotérica, esverdeada pelo limo do tempo. Dentro da caverna obscura tremeluzem pendurados os ratos com asas em forma de cruz dos morcegos. Vejo aranhas penugentas e negras. Ratos e ratazanas correm espantados pelo chão e pelas paredes. Entre as pedras o escorpião. Caranguejos, iguais a eles mesmos desde a pré-história, através de mortes e nascimentos, parecem bestas ameaçadoras se fossem do tamanho de um homem. Baratas velhas se arrastam na penumbra. E tudo isso sou eu.

(...)

Como se arrancasse das profundezas da terra as nodosas raízes da árvore descomunal, é assim que te escrevo, e essas raízes como se fossem poderosos tentáculos como volumosos corpos nus de fortes mulheres envolvidas em serpentes e em carnais desejos de realização, e tudo isso é uma prece de missa negra, e um pedido rastejante de amém: porque aquilo que é ruim está desprotegido e precisa da anuência de Deus: eis a criação.

(...)

O que diz este jazz que é improviso? Diz braços enovelados em pernas e as chamas subindo e eu passiva como uma carne que é devorada pelo adunco agudo de uma águia que interrompe seu vôo cego. Expresso a mim e a ti com os meus desejos mais ocultos e consigo com as palavras uma orgíaca beleza confusa.

(...)

Não sei sobre o que estou escrevendo: sou obscura para mim mesma. Só tive inicialmente uma visão lunar e lúcida, e então prendi para mim o instante antes que ele morresse e que perpetuamente morre. Não é um recado de idéias que te transmito e sim uma instintiva volúpia daquilo que está escondido na natureza e que adivinho. E esta é uma festa de palavras. Escrevo em signos que são mais um gesto que voz. Tudo isso é o que me habituei a pintar mexendo na natureza íntima das coisas. (...) O mundo não tem ordem visível e eu só tenho a ordem da respiração. Deixo-me acontecer.

(...)

Equilíbrio perigoso, o meu, perigo de morte de alma. A noite de hoje me olha com entorpecimento, azinhavre e visgo. Quero dentro desta noite que é mais longe que a vida, quero, dentro desta noite, vida crua e sangrenta e cheia de saliva. Quero a seguinte palavra: esplendidez, esplendidez é a fruta na sua suculência, fruta sem tristeza. Quero lonjuras. Minha selvagem intuição de mim mesma. Mas o meu principal está sempre escondido. Sou implícita. E quando vou me explicitar perco a úmida intimidade.

De que cor é o infinito espacial? É da cor do ar.

Nós — diante do escândalo da morte.

Clarice Lispector

sábado, 13 de janeiro de 2007

Morre lentamente...


Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não encontra graça em si mesmo.
Morre lentamente quem destrói o seu amor-próprio, quem não se deixa ajudar, morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito, repetindo todos os dias os mesmos trajetos, quem não muda de marca, não se arrisca a vestir uma nova cor ou não conversa com quem não conhece.
Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru.
Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o negro sobre o branco e os pontos sobre os "is" em detrimento de um redemoinho de emoções, justamente as que resgatam o brilho dos olhos, sorrisos dos bocejos, corações aos tropeços e sentimentos.
Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho, quem não se permite pelo menos uma vez na vida a fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente, quem passa os dias queixando-se da sua má sorte ou da chuva incessante... Morre lentamente, quem abandona um projeto antes de iniciá-lo, não pergunta sobre um assunto que desconhece ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.
Evitemos a morte em doses suaves, recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior que o simples fato de respirar. Somente a perseverança fará com que conquistemos um estágio pleno de felicidade.

Pablo Neruda

sexta-feira, 12 de janeiro de 2007

Eclesiastes 3: 1-8


Para tudo há um tempo
Debaixo do céu há momento para tudo
E tempo certo para cada coisa
Tempo para nascer e tempo para morrer
Tempo para plantar
E tempo para arrancar a planta
Tempo para matar e tempo para curar
Tempo para destruir e tempo para construir
Tempo para chorar e tempo para rir
Tempo para gemer e tempo para bailar
Tempo para atirar pedras
E tempo para recolher pedras
Tempo para abraçar
E tempo para se separar
Tempo para procurar e tempo para perder
Tempo para guardar e tempo para jogar fora
Tempo para rasgar e tempo para costurar
Tempo para calar e tempo para falar
Tempo para amar e tempo para odiar
Tempo para guerra e tempo para paz.

Que proveito tira das suas fadigas aquele que trabalha?

Eu vi a tarefa que Deus impôs aos filhos dos homens para que dela se ocupem.

Todas as coisas que Deus fez, são boas a seu tempo. Até a eternidade colocou no coração deles, sem que nenhum ser humano possa compreender a obra divina do princípio ao fim.

Eu concluí que nada é melhor para o homem do que folgar e procurar a felicidade durante a sua vida.
Todo o homem que come e bebe e encontra felicidade no seu trabalho, tem aí um dom de Deus.»

Rei Salomão.